As frangas

0

Acho que a melhor história sobre galinhas que eu conheço chama-se A vida íntima de Laura. Laura era uma galinha, claro. Lendo esse livro você vai descobrir que As galinhas também têm uma vida íntima. Quem contou a história de Laura foi uma grande escritora, a Clarice Lispector. Ela entendia muito de galinhas. De gente também. Bem no finzinho lá do livro dela, a Clarice diz assim: “Se você conhece alguma história de galinha, quero saber. Ou invente uma bem boazinha e me conte”.
Foi por isso que resolvi escrever esta história. Eu gostava muito da Clarice e queria agradar um pouco a ela. Ela ja morreu, mas sempre acho que a gente pode continuar querendo agradar a quem já morreu. Gosto de pensar que quem já morreu fica num lugar quentinho, que a gente não vê, cuidando de quem ainda não morreu. E se você quiser agradar a essa pessoa, é só fazer coisas que ela gostava. Aí ela fica ainda mais quentinha e cuida ainda melhor da gente. Pois como eu sei umas histórias de galinhas bem engraçadas, vou tentar contar elas pra Clarice e pra vocês, certo? Mas antes de começar tenho que explicar que gosto muito mais de chamar galinha de franga do que de galinha. Por quê? Olha, pra dizer a verdade, nem sei direito. Quando olho para uma galinha, acho ela muito mais com cara de franga. Acho mais engraçado.
Ou só acho que acho, nem sei. Faz tanto tempo que digo franga que agora já acostumei. A história que quero contar é uma história de frangas. Mas se você quiser dizer que é uma história de galinhas, tudo bem. Pode dizer, eu não me importo. Antes de começar tenho que explicar também que nasci numa cidade muito pequena, numa casa com um pátio enorme. Hoje em dia as pessoas quase não moram mais em casas com pátios. Nem enormes nem pequenininhos. Principalmente as que moram em cidades grandes.
Eu também moro agora numa cidade grande. Mas isso só vou contar daqui a pouco. O que eu ia dizendo é que no pátio enorme dessa casa em que eu nasci tinha todas as coisas que têm em pátios. Uma porção de árvores, por exemplo. A que eu mais lembro é uma pereira. No verão ela enchia de peras. Daquelas meio avermelhadas, que nem bochecha de bebê gordinho.
Tinha também formiga, passarinho, cachorro. Os cachorros mudavam muito, porque uns iam embora, outros ficavam velhos e morriam. Tem casa que cachorro muda muito. A nossa era dessas.
Mas eu me lembro bem de dois. Um era o Faruque. Ele tinha esse nome porque era o mesmo de um rei da Pérsia que estava muito na moda, naquele tempo. A Pérsia agora virou Irã, nem tem mais rei. O Faruque não era rei nem nada. Pra ser bem sincero, era um cachorro bem vagabundo até. Desses que adoram roer as pernas das cadeiras. Acho que pensava que tudo era osso. Me diga você: que rei você conhece que gosta de roer osso ou perna de cadeira? É por isso que eu digo que o Faruque não era rei coisíssima nenhuma. Mas era ótimo. Também, não precisa ser rei pra ser legal, não é? A minha mãe, que sempre foi boa pra dar nomes, foi quem acho que Faruque é nome de cachorro mesmo. Que nem Duque ou Rex. Só que Faruque é muito mais original: nunca mais encontrei outro cachorro com esse nome. O outro que eu lembro não era cachorro, era uma cadela. Como ela era muito grandona e desajeitada — e acho também que todo mundo estava com preguiça de inventar um nome — , a gente chamava ela de Cadeluda.
O pátio era tão enorme que tinha três partes. Uma ficava ao lado da casa. Era mais um jardim que um pátio. Era cheio de hortênsia, uma flor bem grande — como é que eu vou explicar? Uma flor assim feita de cachos com florzinhas azuis, brancas ou cor-de-rosa. As lá de casa eram das azuis. Tinha também um jasmineiro tão cheiroso que dava até tontura na gente, umas margaridas e uma bergamoteira. Você sabe o que é ber-ga-mo-tei-ra? Pois é a árvore que dá a bergamota, entendeu? Não? Tá bom, eu explico. É que tudo isso aconteceu bem lá no Sul do Brasil. Lá tem umas coisas que também tem aqui, só que a gente chama de outro nome. Bergamota, por exemplo, é essa frutinha amarela que em outros lugares chamam de mexerica. Sempre achei que ela tinha mais cara mesmo era de bergamota. Assim como o Faruque, mesmo não sendo rei, tinha a cara perfeita dum Faruque. Assim que nem chamar galinha de franga. E agora eu estou pensando que o bom, quando a gente conta uma história, é poder chamar as coisas como a gente quer chamar, não como todo mundo chama. Experimente só, você vai ver. Outra coisa boa de inventar uma história é que você pode ir contando aquilo que tem vontade de contar. Foi assim que eu comecei a falar das frangas e acabei falando no pátio. Depois parei de falar no pátio e comecei falar no que eu estava inventando. Agora me lembrei do pátio e vou continuar.



A segunda parte do pátio
Na segunda parte do pátio tinha aquela pereira que eu já falei. Tinha também um tanque de lavar roupa e uma parreira de uvas pretas, brancas e cor-de- rosa. As cor-de-rosa eram as mais doces. Claro que também eram as que todo mundo gostava mais, que ninguém é bobo. Esquisito é que as uvas cor-de-rosa sempre eram as últimas a amadurecer. Desde dezembro, ficava todo mundo de olho nelas, na maior impaciência. Lá pelo Natal, amadureciam as pretas. As brancas só amadureciam no meio de janeiro, na época do aniversário do meu irmão, Gringo. Mas as cor-derosa... Meu Deus, como as diabas demoravam: só na altura do Carnaval. Isso que todo dia a gente cuidava.
Acho que era implicância delas. Pura birra. Ou medo de serem comidas, sei lá. Quem pode saber se uma fruta sente coisas, que nem a gente? Eu é que não. Vezenquando acho que até as pedras sentem. (Por falar nisso, você sabia que tem umas pedras que não param nunca de crescer?)
Outra coisa que eu penso quando me lembro daquelas uvas cor-de-rosa é que, na vida, as coisas mais doces custam muito a amadurecer. Mas isso é pensamento de gente grande, deixa pra lá. (Vocês já repararam como estou dispersivo? Dispersão é quando a gente começa a contar uma coisa, aí interrompe e começa a contar outra, no meio daquela, depois começa a contar de novo a primeira coisa, e interrompe também para contar uma terceira. Por aí vai. Prometo que daqui a pouco vou me controlar. Mas por enquanto estou bem dispersivo mesmo.) Bem, naquela parte do pátio tinha também um poço. Esse poço tem uma história tão estranha que eu não posso deixar de contar. A gente nunca sabia onde tinha água. Claro, a água fica no fundo da terra, a gente não vê ela. Aí, para descobrir, o meu pai mandou chamar um descobridor de água muito famoso na cidade. Ele veio com uma forquilha enorme — um pedaço de madeira assim meio parecido com a letra Y. O homem segurava as duas pontas de cima da forquilha e a ponta de baixo ficava apontando para a terra. Ele ficou a tarde inteira caminhando pelo pátio. Quando chegou atrás da pereira, nem te conto. Pois não é que a tal da forquilha começou a se mexer sozinha? Então ele garantiu que ali tinha água. A gente duvidou e fez pouco. Mas meu pai chamou uns outros homens, que eram uns fazedores de poços muito famosos na cidade. Eles começaram a cavar, cavar, cavar, muito fundo. Pois não é que, lá naquele fundo bem fundo, tinha água mesmo?
Esse é um dos mistérios mais misteriosos que eu me lembro. Se você não acredita, meu pai, minha mãe e meus irmãos estão de prova até hoje. É só falar com eles, lá no Sul. O telefone é (51) 233-4197. Nessa segunda parte do pátio, tinha também uma casinha de madeira cheia de coisas que a gente não usava mais, e minha mãe chamava de galpulo. Galpão é mais ou menos isso que noutros lugares chamam de barraco. Dum lado do galpão, ficava a casinha que vezenquando era do Faruque, da Cadeluda, do Rex ou do Duque. Do outro, estava o galinheiro, O galinheiro ficava, então, bem ali onde terminava a segunda parte do pátio e começava a terceira.



A terceira parte do pátio
Essa era a maior de todas. Meio que dava medo na gente de tão misteriosa. Quase ninguém ia lá, cheio de mato, de sombra, de grama alta. Tão alta que todo mundo pensava que podia ter cobra ali no meio. Acho que não tinha, pelo menos nunca ninguém viu uma. Mas cadê coragem pra ir lá conferir? Eu é que não tinha mesmo, nem me envergonho de dizer.
Por causa desse medo, a gente sempre parava de brincar ali por perto do galinheiro mesmo. Por isso também a gente olhava tanto as galinhas... Ah, mas me bateu de novo a tal dispersão: sabe que também tinha uma horta por ali? Eu já ia esquecendo, deixa eu contar rapidinho, depois volto pro galinheiro. Era tão bonita, a horta. Uma as coisas boas de quem mora numa casa com um pátio assim enorme é que pode ter uma horta e lantar. Hoje em dia as pessoas só compram legumes. Na feira, na quitanda, no supermercado, você sabe. Mas você sabia que os plantadores botam remédio nesses legumes pra eles crescerem mais, e mais depressa? Juro que é verdade: esses remédios são o maior veneno. Então, pensa bem: se você plantar você mesmo o seu legume, você não vai botar veneno nele, certo? Nem vai se importar se ele não crescer muito, porque não vai precisar chamar a atenção de ninguém na feira. Daí que a gente tinha uma porção de legumes sem veneno nenhum. Alface, cenoura, couve-flor, repolho, pimentão, cebola, rabanete, vagem, mandioca e até uns pés de milho altos, com aquela espécie de cabeleira loura. Milho era o que eu mais gostava. Já couve-flor eu achava que deviaera botar na sala, enfeitando, não na panela. Couve-flor é tão bonita, você já reparou? Mas, com aquele monte de legumes, era só ir lá e colher. Não precisava comprar.
E o galinheiro? Pois o galinheiro era pertinho de onde a gente mais brincava. Daí que eu acho que veio esse meu gosto por galinhas, de tanto ver elas ciscando e cacarejando o dia inteiro. Mesmo agora, morando numa cidade grande, sem um pátio enorme como aquele, continuo tendo um galinheiro. Como? Pois é justamente essa história que estou querendo contar. Sai pra lá, dispersão...



O galinheiro na geladeira
Como quase todo mundo numa cidade grande, moro num apartamento. Sei, agora você vai me perguntar assim: mas como é que você consegue ter um galinheiro dentro de um apartamento? Pois não é que tenho mesmo? Bem, claro que não é um galinheiro de verdade. Mas, aqui entre nós, também não estou nem um pouco me importando com o que é ou o que não é de verdade. Eu comecei esse galinheiro meio sem querer. No começo, nem me dava conta que estava criando frangas em cima da geladeira. Só depois que tinha umas três foi que comecei a prestar atenção. Agora pensei outro pensamento de gente grande. É assim: vezenquando, uma coisa só começa mesmo a existir quando você também começa a prestar atenção na existência dela. Quando a gente começa a gostar duma pessoa, é bem assim.



Ulla e Gabi
A mais antiga delas é a Ulla. Ela tem esse nome esquisito porque veio de um país chamado Suécia. Esse é um nome muito comum lá, que nem Maria aqui. A Ulla é assim toda pequenininha, gordinha, marrom-clara com o bico amarelo. Quem me deu a Ulla foi um amigo, o Augusto. Ele morou muito tempo na Suécia, depois mudou para um país ali perto, a Noruega, onde só tem gente loira e alta. Cada vez que o Augusto me escreve, pede notícias da Ulla. Eu sempre respondo: vai bem, mandou lembranças. E mandou mesmo, ela é supereducada. Ganhei a Ulla faz uns quatro anos. Como o galinheiro ainda não existia, ela viajou comigo por uma porção de lugares. Até na Bahia já foi, e adorou. Imagina que na terra dela não faz calor, não tem palmeiras nem samba. Depois que mudei pra este apartamento, ela veio morar no meu quarto. Agora estou olhando pra ela e achando que ela não está nem um pouco assustada por estar aqui de novo. É que a Ulla já se acostumou com esses livros todos e com o barulho da máquina de escrever.
Logo depois da Ulla, veio a Gabi. Quem me deu a Gabi foi uma amiga minha que acho que é a pessoa que eu conheço que mais gosta de frangas. Depois de mim, é claro. O nome dela é Cacaia. Pois agora não é que me lembrei que foi com a Cacaia que aprendi a falar franga em vez de galinha? A Cacaia mora no Rio de Janeiro, mas vezenquando vem a São Paulo me visitar. Um dia ela chegou de viagem e perguntou assim:
— Adivinha o que eu trouxe de presente pra você?
Eu disse:
— Um disco.
Ela disse:
— Er-ra-do. Tenta de novo.
Eu disse:
— Um livro.
Ela disse:
— Puxa, mas você só pensa em disco e livro? Erradíssimo. Pode tentar só mais uma vez, senão não ganha nada.
Eu disse:
— Um... um... um...
Ela falou:
— Uma franga!
Não é que era mesmo, gente?
Ela me deu um pacotinho que fui desembrulhando, desembrulhando até encontrar a Gabi. A Cacaia me contou que ia passando por um camelô nordestino, em Copacabana, quando olhou e viu um tabuleiro cheio de frangas. Aí ficou encantada e escolheu a que parecia mais franga de todas. Era a Gabi. A Gabi parece meio de verdade. Mas é falsa, claro. Ela tem penas de verdade. Os pés e o bico são de cartolina; a crista de pano vermelho. Mas ela é bem assim da cor de uma franga mesmo. Meio despenteada, como toda franga que se preza. A Gabi ficou morando urna porção de tempo na sala, perto dos discos. Como a Cacaia me garantiu que ela era nordestina (da Paraíba, tenho quase certeza), eu sempre colocava uns forrós e uns xaxados pra ela ouvir. Aí comecei a notar que, quando eu colocava algum disco da Elba Ramalho, a Gabi ficava toda animadinha. Até hoje fica: é nordestina mesmo. Acontece que toda criança que chegava em casa inventava de arrancar as penas da pobre Gabi. É que o lugar onde ficam os discos é baixinho, qualquer criança alcança. Não que eu não goste de criança, mas a coitada estava ficando toda depenada, horrorosa.
Foi por isso que resolvi colocá-la em cima da geladeira. Para que a Gabi não se sentisse muito sozinha, peguei a Ulla no quarto, coloquei ao lado dela. Vi que as duas tiveram uns desentendimentos no começo, porque a Ulla fala português muito mal e a Gabi só fala com sotaque nordestino. Nenhuma conseguia compreender direito a outra. Mas aos pouquinhos foram se acostumando. Hoje são grandes amigas.



As três irmãs
Depois disso, vieram as três irmãs: Maria Rosa, Maria Rita e Maria Ruth. Elas andam sempre juntas, porque são de madeira e estão pregadas numa tabuinha. Aí você puxa uma cordinha que tem embaixo e elas começam a bicar feito umas desesperadas, como se estivessem comendo milho.
A Maria Rosa, a Maria Rita e a Maria Ruth fui eu mesmo que comprei. Isso foi num dia meio triste. Eu estava caminhando com um amigo meu, o Jacob, no centro da cidade, ali perto da Praça da República, O Jacob é outro que adora frangas. Como ele é desenhista, até desenha umas de vez em quando. E desenha tribem, umas frangas da pesada. Mas aquele dia tinha acontecido uma coisa de gente grande com a gente: nós tínhamos sido despedidos do trabalho. Estávamos caminhando meio de bobeira quando vimos as três. Eram umas gracinhas: verdes e amarelas, com a crista vermelha, uns olhos azuis bem redondinhos. Elas pareciam tão alegres naquela esquina, bicando sem parar, que de repente a gente ficou alegre também. Eu falei assim:
— Jacob, você sabia que franga dá sorte?
Aí ele comprou três e eu comprei mais três. Não é que deram sorte mesmo? Hoje em dia eu e ele temos um trabalho bem melhor que o outro, graças a Deus. Ou às frangas. Tive certeza que a Ulla e a Gabi iam gostar muito delas. Pois dito e feito: a-do-ra-ram. É que a Maria Rosa, a Maria Rita e a Maria Ruth são muito novinhas ainda, não incomodam ninguém. Só perguntam o tempo todo, são frangas perguntadeiras: o que é isto, o que é aquilo. Como a Gabi e a Ulla são muito sabidonas, até ensinam coisas pra elas.
Foi quando coloquei as três em cima da geladeira é que me dei conta que estava formando um galinheiro. Aí corri, peguei A vida íntima de Laura e coloquei embaixo delas, que nem um tapetinho. Pronto: ficaram ótimas.



Otília
A próxima que chegou foi a Otília. E de novo a Cacaia estava envolvida na história. Eu gosto muito de mar. Como São Paulo não tem mar, vez em quando vou ao Rio de Janeiro só pra ir à praia. Quase sempre fico na casa da Cacaia. Uma noite, a gente ia voltando pra casa quando passamos num parque de diversões e resolvemos brincar um pouco. A gente estava saindo do trem fantasma quando vi a Otília. Ela estava numa daquelas barraquinhas onde tem uma porção de coisas. Você joga uma argola e, onde a argola cair, você ganha aquilo que a argola argolou, quer dizer, pegou. Eu de cara fiquei louco pela Otília. Inclusive porque já tinha visto uma igualzinha na casa duns amigos meus, que também adoram frangas: a Maria Emília, o Reinaldo e o Ruy.
E a Maria Emília tinha me garantido que a Otília dela tinha muito bons sentimentos.
Mas acontece que a minha pontaria é péssima. Sou daqueles que não acerta num elefante a três passos de distância. Aí a Cacaia disse que jogava a argola pra mim. Na terceira argolada, mirou bem e argolou em cheio a franga. Tive a impressão que a Otília até deu uma cacarejada, de puro gosto. E a primeira coisa que falou foi que estava doida de vontade de vir para São Paulo morar com a Ulla, a Gabi e as três Marias. A Otília, nem te conto, é empinadíssima. Toda de louça bege, com um olho preto e um bico meio aberto, como se estivesse sempre reclamando de alguma coisa. Ela é carioca de nascimento, fala tudo chiadinho, adora praia, pizza e chope.
Gosta de viajar, também. Ela contou pra Ulla que uma vez fez uma excursão pela Europa. Só que era daquelas de visitar uns vinte países nuns dez dias. Então ela mistura tudo. Outro dia ouvi ela dizendo, toda importante: — Sabe, Ulla, o que eu mais gostei em Londres foi... da Torre Eiffel.

A Ulla, que sabe que a Torre Eiffel fica em Paris, e é muito bem-educada, nem disse nada. Só piscou um olho pra mim. Mas a Otília mistura tanto as coisas que até hoje pensa que a Ulla nasceu na Suíça, não na Suécia. A Ulla nem corrige mais. Outro dia a Ulla veio me contar em segredo que a Otília despreza a Gabi, porque as únicas viagens que a Gabi fez foram da Paraíba para o Rio de Janeiro, e depois do Rio de Janeiro para São Paulo. Ainda por cima é analfabeta. A Ulla contou que a Gabi disse assim:
— Mas por que é que uma franga precisa saber ler, Otília?
— Pra saber das coisas, ora — respondeu a Otília, toda estufada. E começou a ler o jornal. Ela adora ler jornal. Principalmente notícias sobre frangas. Que, aliás, são muito raras, não sei se vocês já repararam. A Gabi é boa gente, não fica chateada. O divertimento principal dela é ensinar coisas para a Maria Rosa, a Maria Rita e a Maria Ruth. Que coisas ela ensina? Ah, são coisas bem de franga. Pra gente pode parecer até meio besta, mas pra uma franga é interessantíssimo, quer ver? Grão de milho, por exemplo, tem um jeito certo de bicar. Não pode ser de lado, senão ele pula fora. Tem que ser bem em cima. E uma bicada só, bem rapidinho. É esse tipo de coisa que a Gabi ensina. Não falei que parecia meio besta? Só que, como a Maria Rosa, a Maria Rita e a Maria Ruth só pensam em comer, acham da maior importância. E deve ser mesmo.



Juçara
A outra que chegou depois foi a Juçara. A Juçara, gente, é um caso à parte. Pro meu gosto pessoal, cá entre nós — e que ninguém nos ouça, senão sai a maior briga dentro do galinheiro, daquelas de voar pena —, bem, a Juçara é a mais bonita de todas. A Jacqueline, que mora comigo, também acha. E isso que a Jacqueline entende horrores de franga também. Quem me deu a Juçara foi o Pedro. O Pedro mora lá no Sul, tinha vindo passar uns dias em São Paulo. Toda pessoa que vem passar uns dias aqui em casa tem primeiro que ser apresentada às frangas. Senão elas fazem o maior escarcéu na hora em que a pessoa vai abrir a geladeira pra comer alguma coisa. Tem coisa mais barulhenta que escarcéu de franga? É aquela gritaria, aquele cá-cá-cá, có-có-có, voa pena pra tudo que é lado. Uma zona. Franga, eu já disse, tem muito medo de quem não conhece. Sempre acham que vão torcer o pescoço delas, depenar e enfiar numa panela pra servir no almoço de domingo. Acho que têm razão, coitadas. A maioria das pessoas só pensa numa franga como uma coisa que a gente pode comer, não gostar. Estas aqui de casa estão acostumadas só comigo, com a Jacqueline e com a Lourdes, a empregada. Que está proibidíssima de torcer o pescoço delas, depenar e cozinhar. Quando avisei a Lourdes disso, ela ficou meio espantada:
— Ué, gente, mas como é que eu ia cozinhar elas se elas não são de verdade?
A Ulla me piscou um olho, eu não disse nada. Só pisquei o olho de volta pra ela. Como é que a gente vai explicar pra uma pessoa que qualquer coisa pode ser de verdade, é só a gente acreditar nela?

O que sei é que as frangas adoraram de paixão o Pedro. As três Marias até paravam de bicar quando ele chegava perto. A Otília ficava toda nervosa, falou até em mudar de penteado. Umas frangas, mesmo. Pois um dia o Pedro trouxe da rua a Juçara, de presente. Já falei que ela é lindíssima, não é? Pois é mesmo. Tem a cabeça e o peito inteirinhos brancos, depois o corpo, até o rabo, é azulmarinho com bolinhas brancas.
Você já viu uma franga azul com bolinhas brancas até o rabo? Nem eu, nunca tinha visto. Pelo menos até conhecer a Juçara. Além disso, ela tem as pernas amarelas e está em cima duma coisinha verde que parece capim. É toda empinadinha, mais empinada que a Otília, só que não é metida como ela. Na loja disseram pro Pedro que a Juçara veio da ilha de Marajó, uma ilha imensa, lá em cima, perto do Pará. Será que é por isso que ela é toda empinadinha assim? Deve ter o maior orgulho de ter nascido numa ilha...
Com o tempo, fui descobrindo que a Juçara é muito séria e adora comida natural. Em vez de bicar milho, por exemplo, ela só bica arroz integral. Tem horror de comida em lata, de barulho de cidade, automóvel, televisão. E sabe histórias incríveis do tempo em que ainda era meio índia e morava lá em Marajó. Outro dia contou uma que achei tão linda. Até vou repetir aqui pra vocês.



O chorão, a Lua e o Lago
Vocês conhecem o chorão? Aquela árvore assim alta, magra, meio despencada, com uns galhos compridos até o chão? Pois diz a Juçara que o chorão não era assim.
Era uma árvore toda esticadinha, muito orgulhosa e antipática. Ela morava na beira de um lago bem clarinho. Pois imagina que o Chorão — que naquele tempo não se chamava chorão, mas salgueiro — inventou de se apaixonar pela Lua. Só que o Lago também se apaixonou, ao mesmo tempo.

Ficavam os dois, o Chorão e o Lago, todos suspirosos quando a Lua aparecia atrás da montanha, ao anoitecer. Tantas caras e bocas fizeram que um vaga-lume muito fofoqueiro ouviu a história da tal paixão e foi contar pra Lua. A Lua, claro, ficou muito envaidecida. Quem que não gosta que os outros se apaixonem pela gente? Pois a Lua mandou dizer aos dois apaixonados que, na próxima sexta-feira, quando estivesse bem cheia e aparecesse atrás da montanha, o pretendente que estivesse mais bonito, na hora ela ficava noiva. O Chorão ficou na maior empolgação. Fez amizade com o vaga-lume, interesseiro que era. E pediu a ele que chamasse todos os amigos vaga-lumes para enfeitá-lo todo, na sexta-feira de tardezinha. O pobre do Lago era muito desajeitado e humildezinho. Até tentou se enfeitar um pouco, mas os enfeites todos scorregavam na superfície dele e acabavam afundando. Quando chegou a sexta-feira, o Chorão estava lindaço, cheio de vaga-lumezinhos vaga-lumeando brilhosos nos galhos. Parecia uma árvore de Natal. E tão atrevido! Debochava horrores do pobre Lago, que só tinha uns peixinhos muito assustados espiando de vez em quando. A Juçara diz que aquele salgueiro estava um nojo, de tão exibido e certo de que ia ficar noivo da Lua. Mas acontece que, na hora em que a Lua apareceu atrás da montanha, ela viu todo aquele brilho do salgueiro refletido — onde? Ora, nas águas do pobrezinho do Lago, umas águas muito limpinhas e quietas. Claaaaaaaaro que ela achou o Lago muitíssimo mais bonito. Aí ficou noiva dele na hora, e nas sete noites de lua cheia vem se banhar nua nas suas águas quentinhas. O salgueiro? Ah, ficou tão desapontado que começou a despencar, despencar, despencar até virar essa árvore tristonha que a gente agora chama de chorão. Não é bonita a historinha da Juçara? Você pode achar um pouquinho triste, também, mas eu acho ótimo que o chorão tenha sido castigado pelo seu orgulho. Daí, penso também outra coisa de gente grande: não adianta muito você se enfeitar todo pra uma pessoa gostar mais de você. Porque, se ela gostar, vai gostar de qualquer jeito, do jeito que você é mesmo, sem brilhos falsos. A Ulla me disse depois que a Juçara contou a história bem alto, num dia em que a Otília estava insuportável, agredindo sem parar a pobre da Gabi. Quem sabe assim a Otília se toca um pouco, não é?



Blondie, a Lourinha
Mas ainda está faltando uma franga que não falei. Pois é a Blondie, gente. A Blondie eu ganhei faz pouco tempo, do Valdir. Depois da Cacaia, o Valdir é a pessoa que eu conheço que mais gosta de frangas. Aliás, pra gostar de frangas, entre o Valdir e a Cacaia, não sei quem ganha. A decoração da casa dele é toda à base de frangas. Na sala tem até um móbile de frangas de papel. Quando o vento bate, elas ficam cacarejando pra todo lado. Dá gosto ver.
O Valdir gosta tanto de frangas que chegou a dar de presente pra namorada dele, a Lena, uma camiseta com três frangas desenhadas bem no peito. Eu faço aula de dança junto com a Lena, lá no Viola, e juro que quando ela faz aula vestindo a tal camiseta de frangas ela dança muito, mas muito melhor.
Não estou dizendo tem horas que frangas fazem bem pra qualquer pessoa?
A Blondie é norte-americana, por isso tem esse nome, que na língua que eles falam lá quer dizer lourinha. E é justamente isso que ela mais é: inteirinha amarela, com o bico e os pezinhos cor de laranja. A Blondie tem um botãozinho do lado direito, que você vira e ela sai bicando sem parar. O que estiver pela frente, ela bica. Acho que foi principalmente por isso que ela e as irmãs Maria Rosa, Maria Rita e Maria Ruth se deram tão bem. As quatro juntas só pensam em bicar o tempo todo. E bicam qualquer coisa — não são como a Juçara, que é naturalista e só bica arroz integral.
A Blondie foi muito bem recebida no galinheiro. Pela Gabi nem se fala, porque a Gabi gosta de todo mundo. Franga, gente — menos cozinheira. Pela Ulla, porque as duas são estrangeiras. E como a Ulla é muito culta e também fala inglês, as duas podem falar bastante. Imagina que até a Otília recebeu bem a Blondie: ela acha muito chique ser estrangeiro. E a melhor coisa do mundo pra ela, a mais importante, é ser chique. Maria Rosa, Maria Rita e Maria Ruth, nem se fala: enfim, uma companhia para bicar sem parar. A única que teve umas dificuldades, no começo, foi a Juçara. Éque a Blondie adora coca-cola, e come muita porcaria, hambúrguer, cachorro-quente, catchup, coisas enlatadas. A Juçara achava um horror, mas acabou desculpando. Agora, vira e mexe, estão as duas de papo. A Juçara conta histórias de índio; a Blondie conta histórias de caubóis: dá tudo certo. Mas o que a Blondie mais gosta mesmo é de um bom rockand-roll. É só botar um disco da Rita Lee e virar o botãozinho dela que ela já sai dançando. Numa boa, acho que aprendeu com a Lena.



Oito bons-dias
Agora que já contei a história de cada uma delas, vou colocá-las de novo em cima da geladeira. Mas acho que elas gostaram de ficar uns dias no meu quarto. A Ulla, que é a mais minha amiga e me conta tudo que elas falam, me disse há pouco que até a Otília achou muito chique essa porção de livros. A Gabi, coitada, analfabeta, perguntou — imaginem — pra que serviam. A Ulla disse que de vez em quando tem vontade de ensinar ela a ler, mas depois pensa que a Gabi é muito burra, não vale a pena.
Por natureza, franga é mesmo meio burra. Umas mais, outras menos. Tem exceções, claro. A Juçara, por exemplo, eu acho triinteligentinha, Mas a Gabi... Já falei sobre isso com a Jacqueline, ela também acha a Gabi burríssima. Mas melhor ser burra e boazinha como ela do que burra e metida como a Otília, não é? (Ai, que medo me deu agora que a Gabi e a Otília descubram que ando falando essas coisas pra vocês!) Mas mesmo que a Gabi soubesse ler, ela não ia se importar nem um pouco. A Gabi nunca guarda mágoa de ninguém. Pensando bem, acho que ela é a mais franga de todas. Porque franga que se preza é assim mesmo: boa o tempo todo, nunca pensa em machucar ninguém. E burra de pedra. Vai ver, é por isso mesmo que gosto tanto de frangas. Pensando melhor, também porque quando eu era criança brinquei tanto perto daquele galinheiro que fiquei conhecendo bem a intimidade delas. A intimidade de uma franga é a coisa mais bonita que tem. Exatamente porque é meio boba. Não é que pensei outra coisa de gente grande? Esta é assim: tudo que parece meio bobo é sempre muito bonito, porque não tem complicação. Coisa simples é lindo. E existe muito pouco. Às vezes penso que quando eu puder, um dia, morar de novo numa casa com um pátio enorme — nem precisa ser muito enorme — vou ter galinheiro de verdade. Já pensou?
Aí podia até ter um cachorro que se chamasse Faruque — esse ia ser o Faruque II, mais nome de rei ainda. Ou então uma cadela que se chamasse Cadeluda. Nossa! Pensei agorinha que podia também ter uma horta que nem aquela que falei. Como a casa ia ser minha, eu ia colocar couve-flor na sala, em vaso, que nem rosa. Até um poço de água encontrada com forquilha, podia ter. E peras. E uvas cor-de-rosa. E legumes sem veneno nenhum. É que vezenquando dá uma saudade na gente dessas coisas. São todas coisas simples. Meio bobas, muito bonitas. Que nem as frangas. Mas tudo bem. A gente sempre pode inventar. Inventar é uma das melhores coisas que tem no mundo. A Otília ainda não descobriu, mas a coisa mais chique do mundo é inventar. Que nem a Clarice, que inventou a história da Laura. Só que eu não inventei quase nada da Ulla, da Gabi, da Maria Rosa, Maria Rita e Maria Ruth, da Otília, da Juçara, da Blondie. Elas existem mesmo, são bem como eu disse. Estão em cima da geladeira aqui de casa pra quem quiser ver. em tomar um guaraná comigo que eu te mostro. Se você quiser, invente uma história e mande pra mim. Se for história de franga, melhor ainda. Prometo ler pra elas ouvirem. E, se você não tem um pátio enorme nem um galinheiro de verdade, também pode inventar um em cima da geladeira ou em qualquer outro cantinho. Eu gosto muito quando acordo de manhã e vou fazer café na cozinha. Aí as oito frangas cacarejam e repetem assim, oito vezes, uma cada uma:
— Bom dia!
— Bom dia!
— Bom dia!
— Bom dia!
— Bom dia!
— Bomdia!
— Bom dia!
— Bom dia!

Não é que dá certo? Quase sempre, o dia é bom mesmo. Principalmente quando eu invento sem parar. Pois não estou falando o tempo todo que franga, além de ser um bicho bom de ter por perto, dá sorte? Se elas não existissem, eu nem tinha escrito esta história. E acho que escrever uma história é uma coisa muito boa. O coração da gente fica mais quentinho e a gente gosta mais das pessoas. A coisa que uma pessoa mais precisa na vida é gostar das outras pessoas e ser gostada, também. Aí, pra ser gostado, a gente escreve histórias. Você gostou desta? Daí está tudo certo, porque então você gostou de mim e eu gostei de você também. Qualquer dia conto outra, combinado?

Ler mais »

DIVAGAÇÕES DE UMA MARQUESA

0

A Marquesa tomou seu chá às cinco horas. Depois, como de hábito, colocou a xícara sobre a mesa e ficou olhando pela janela. Pela janela a Marquesa não via muita coisa: o cimento do viaduto invadindo o bloco de edifícios no lado oposto da rua cobria quase toda a visão. Restavam pequenas frestas entre as paredes de cimento, cinco ou dez centímetros de rio, mas tão longe que era impossível sentir seu cheiro, o cheiro podre do rio. Por cima a Marquesa via o céu, um céu quase sempre rosado de sujeira, algumas estrelas à noite, poucas, vesgas; por baixo a rua, os carros que passavam, mas era desinteressante ver carros passando e pessoas tão pequenas que a Marquesa não podia desvendar seus rostos, atribuir-lhes passados, desgraças e futuros, como antigamente. A Marquesa gostava de pessoas? Achava que sim, quando estava sozinha achava ardentemente que sim, mesmo aquelas do bloco de edifícios na calçada oposta, que espiavam a sua vida por entre as frestas das persianas, como se ela andasse sempre nua. A Marquesa também espiava a vida das pessoas do outro lado, mas espiava sem curiosidade de ver, um que outro rapaz saindo do banho, cabeça molhada, um homem beijando uma mulher, nunca ninguém se masturbando ou fazendo amor ou injetando algo na veia ou tentando o suicídio com navalha. Então a Marquesa olhava desinteressada, procurava um resto de chá no fundo do bule ou perdia-se em pequenas ações, como acender outro cigarro ou escovar cem vezes os cabelos ou lixar cuidadosamente as unhas. Depois, ou mesmo durante, mas nunca antes: a Marquesa pensava na espuma dos rios.
Imaginava-a roxa. No máximo verde. Ou roxa e verde ao mesmo tempo. (Roxos tinham sido os panos cobrindo estátuas na Semana Santa; verde era o podre avançando nos cadáveres.) Roxa, verde, a espuma crescia sobre os rios, depois o vento soprava amontoando-a em grandes blocos que levava pelas ruas. A espuma chocava-se contra portas fechadas, depositava-se sobre vidraças, a madeira e o cimento, corroia-os lentamente. A espuma avançava enquanto as pessoas buscavam o fundo de suas próprias casas, até ficarem encurraladas contra a última parede. Então a espuma tocava macia suas peles, aos poucos roía em roxo e verde a carne, os músculos, os próprios ossos. Nada restava daquelas pessoas. Nem mesmo poeira que o vento soprasse.
Quando chegava nesse ponto, os músculos das espáduas da Marquesa se enrijeciam ― e pensava então no seu passeio pelas ruas, sábado à tarde, que seu repertório não era muito. Mas pensar no passeio levava-a à Cidade Baixa, e, na esquina duma das ruas da Cidade Baixa, a farmácia. E na farmácia (a Marquesa caminhava devagar na rua. Havia poucos automóveis. Aos sábados era fácil atravessar as ruas sem olhar muito para os lados nem sentir dor nos ouvidos. A Marquesa caminhava descuidada. Às vezes chegava a comprar flores e até mesmo uma maçã, a mais vermelha que conseguisse encontrar. E ia assim, as flores apertadas junto ao peito, esfregando a maçã contra o vestido, lentamente, porque alguém lhe dissera que as maçãs - não somente as maçãs, mas também as goiabas, as pêras e os pêssegos, mas deixara de comprar pêssegos desde que soubera do veneno por trás da casca veludosa ― mas enfim, embora, as maçãs, as frutas: alguém dissera que só gostavam de ser comidas assim, num ritual. A Marquesa caminhava Prepararia o ritual ao chegar em casa, colocando as flores no vaso de louça, acendendo velas e dizendo sorridente à maçã: ― "Um dia meu corpo servirá de adubo para muitas macieiras crescerem". A Marquesa. Tão distraída vinha que não chegava a perceber quando começava a acontecer a cena da farmácia. Assim: quando tomava consciência de si e do que a cercava, já estava dentro do que acontecia A. E o que acontecia, dentro da farmácia) era um homem com uma arma na mão e um crioulo forte, vestido de branco. Percebia mais o crioulo como uma mancha escura dentro de outra mancha clara Rapidamente: aquelas manchas escuras e claras que eram o crioulo recuavam, móveis, enquanto o homem apontava a arma e disparava. O crioulo caía primeiro para trás, contra uma prateleira de remédios, depois ele e os remédios caíam juntos sobre o balcão e de algum lugar entre aquelas manchas nascia uma outra, vermelha que escorria em direção aos pés da Marquesa enquanto muita gente corria e empurravam-na e gritavam muito alto e seguravam o homem com a arma que tornava a disparar e uma coisa quente passava zunindo junto a seus cabelos. Perdia-se depois entre o barulho das motocicletas, a poeira seca das ruas e as vibrações coloridas dos televisores atrás das persianas abaixadas. Um tempo depois, não sabia quanto, de mãos vazias, a Marquesa estava novamente em casa.
A Marquesa suspirava, esmagada pelo difícil de pensar em si mesma sem maçã nem flores, e tomava a olhar pela janela e ratos. (Eram ratos, na rua, no ônibus, na praça, ratos trocadores correndo de toca em toca com seus objetos presos entre os dentes arreganhados. A Marquesa lembrava: alguém dissera, talvez aquele mesmo do ritual, que outro alguém colocara alguns casais de ratos a reproduzirem-se num determinado espaço. Depois de algum tempo os ratos tornavam-se agressivos, entredevoravam-se, enlouqueciam, comiam os próprios filhos, mantinham relações homossexuais, alguém dissera, os ratos. E os sagüis.) Era uma vez dois sagüis presos numa gaiola. Até que um dia um começou a roer a cauda do outro. Então o dono dos sagüis retirou da gaiola o de cauda semidevorada e no dia seguinte o sagüi antropófago tinha começado a devorar a própria cauda. Não sabia como terminava a estória, talvez acabasse aí mesmo com reticências. Mas a Marquesa não conseguia segurar o pensamento, e em breve tinha dentro da sala uma gaiola com os ossos de um sagüi devorado por si mesmo. Talvez restassem os olhos, arriscava, fosforescência, dentes saciados, um pequeno estômago repleto de si mesmo.
A Marquesa fascinava-se de horror e ia até a quitinete encher o bule para fazer mais chá. Mas a água sempre acabava nas torneiras e ela precisava sair à rua para buscar água mineral, chegava a colocar a chave no bolso e os dedos no trinco da porta. Quando os dedos fechavam-se em torno do trinco para iniciar o movimento de baixá-lo, a Marquesa pensava rapidamente, e por ordem: 1) na espuma; 2) na farmácia; 3) nos ratos; 4) nos sagüis ― e recuava, a Marquesa ia recuando contra a janela de vidro. Poderia imaginar também bolhas ou ratos escorregando por baixo da porta, mas preferia sentar na cadeira junto à janela e comprimir o rosto contra o vidro, olhando para além da grade. Mas fora, fora só havia caixas e caixas de cimento, latas transbordantes de lixo, automóveis zunindo, espuma sobre os rios, tiros nas farmácias, sagüis entredevorados. Bebericava com nojo dois dedos de água açucarada e fria no fundo da xícara. A xícara bonita, com alguns pastores e florezinhas azuis ― admirava sem emoção, indicador e polegar segurando firmes a asa, dedo mínimo suspenso no ar. ― "Se eu fosse uma personagem de romance antigo" ― pensava ― "agora jogaria a xícara, ou melhor, a taça ao chão". O autor certamente saberia tirar algum efeito dos: a) cacos espalhados pelo assoalho, talvez um último raio de sol brincando na coroa de flores da pastora; b) ou então faria com que ela olhasse fixamente para um quadro na parede: em algum lugar, numa praia deserta e distante, uma onda batia forte contra um rochedo, espalhando espuma em todas as direções; c) ou faria com que o Marquês, devia haver um Marquês qualquer naquela ou nesta estória, entrasse de repente para possuí-la sobre tapetes persas, jogando as inúmeras saias sobre a baixela de prata; d) ou que enchesse sôfrega a seringa, procurando a veia enquanto um rock tocasse na vitrola; e) ou apenas gritasse muito alto, durante muito tempo, até ficar rouca e muda, sem ninguém ouvir. Qualquer coisa, a Marquesa pediu, encolhendo-se contra a última parede da gaiola, qualquer coisa aqui, agora ― antes do ponto final.

Ler mais »

LONDON, LONDON OU AJAX, BRUSH AND RUBBISH

0

Para Carlos Tèmple Troya

Meu coração está perdido, mas tenho um mapa de Babylon City entre as mãos. Primeiro dia de fog autênti¬co. Há um fantasma em cada esquina de Hammersmith, W14. Vou navegando nas waves de meu próprio assobio até a porta escura da casa vitoriana.
― Good morning, Mrs. Dixon! Fm the cleaner!
― What? The killer?
― Not yet, Lady, not yet. Only the cleaner...
Chamo Mrs. Dixon de Mrs. Nixon. É um pouco sur¬da, não entende bem. Preciso gritar bem junto à pérola (jamaicana) de sua orelha direita. Mrs. D(N)ixon usa um colete de peles (siberianas) muito elegante sobre uma malha negra, um colar de jade (chinês) no pescoço. Os olhos azuis são duros e, quando se contraem, fazem osci¬lar de leve a rede salpicada de vidrilhos (belgas) que lhe prende o cabelo. Concede-me algum interesse enquanto acaricia o gato (persa):
― Where are you from?
― I’m Brazilian, Mrs. Nixon.
― Ooooooooooouuuuuu, Persian? Like my pussy cat! It's a lovely country! Do you like carpets?
― Of course, Mrs. Nixon. I love carpets!
Para auxiliar na ênfase, acendo imediatamente um cigarro. Mas Mrs. Nixon se eriça toda, junto com o gato:
― Take care, stupid! Take care of my carpets! They are very-very expensive!
Traz um cinzeiro de prata (tailandês) e eu apago meu cigarro (americano). But, sometimes, yo hablo también un poquito de español e, if il faut, aussi un peu de français: navego, navego nas waves poluídas de Babylon City, depois sento no Hyde Park, W2, e assisto ao encon¬tro de Carmen Miranda com uma Rumbeira-from-Kiúba. Perhaps pelas origens tropicais e respectivos back-grounds, comunicam-se por meio de requebros brejeiros e quizá pelo tom dourado das folhas de outono (like "Le Bonheur", remember "Le Bonbeur"?), talvez, maybe amam-se imediatamente. Mas Cármen foge da briga, fiel às suas já citadas origens e repete enl(r)ouquecida, em português castiço, que aquele amor ledo e cego acabaria por matá-la. A Rumbeira-from-Kiúba, cujo nome até hoje não foi devidamente esclarecido (something between Remédios and Esperanzá), decide tomar providências no sentido de abandonar a old-fashion e matricula-se no beginnerde dança moderna do The Place, Euston, NW1. Para consolar-se de seu frustrado affair, todos os sábados vai a Portobello Rd, Wll, onde dedica-se à pesquisa e eventual aquisição de porcelana chinesa. Su pequena habitación em Earl's Court Rd, W8, está quase toda toma¬da. Ainda ontem substituiu o travesseiro por uma carís¬sima peça da dinastia Ming. Entrementes, Cármen ganha €20 por semana cantando "I-I-I-I-I-I-I like very much" nos intervalos das sessões do Classic, Nothing Hill Gate, Wll. Aos sábados compra velhos tamancos de altíssimas plata¬formas, panos rendados e frutas nas barracas de Porto¬bello ― para preencher el hueco de su (c)hambre. Muito tarde da noite, cada uma en sus pequenas habitaciones, lêem respectivamente Cabrera Infante e a lírica de Camões. Secretamente ambas esperam encontrar-se qualquer Saturday desses, entre lustres art nouveau, rou¬pas de pajem renascentista, couves-de-bruxelas e pastéis da Jamaica, bem em frente ao Ceres, Portobello Rd, W14, onde tudo acontece. Ou quase. Mas secretamente, ape¬nas. Nenhuma falará primeiro. Nenhuma deixará transpa¬recer qualquer emoção por detrás do make-up. It's so dangerous, money, e, de mais a mais, na Europa é assim, meu filho, trata de ir te acostumando. Pero siempre puede ser que sus ojos digan todo. Como nessas melosas e absur¬das histórias de Rumbeiras-from-Kiúba meeting Carmen-mirandas pelas veredas outonais do Hyde Park ― onde as folhas, a quem interessar (f)possa, continuam caindo.
― I think all Latin-American writers should write in English. Spanish is very difficult. But don't worry, dear: Joseph Conrad learned to write only at nineteen...
Bolhas nas mãos. Calos nos pés. Dor nas costas. Músculos cansados. Ajax, brush and rubbish. Cabelos duros de poeira. Narinas cheias de poeira. Stairs, stairs, stairs. Bathrooms, bathrooms. Blobs. Dor nas pernas. Subir, descer, chamar, ouvir. Up, down. Up, down. Many times got lost in undergrounds, corners, places, gardens, squares, terraces, streets, roads. Dor, pain. Blobs, bolhas.
― You're not just beautiful. I think you've got some-thing else.
I’ve got something else. Mas onde os castelos, os príncipes, as suaves vegetações, os grandes encontros ― onde as montanhas cobertas de neve, os teatros, bales, cultura, História ― onde? Dura paisagem, hard landscape. Tunisianos, japoneses, persas, indianos, congoleses, pana¬menhos, marroquinos. Babylon City ferve. Blobs in strangers' hands virando na privada o balde cheio de sifilização, enquanto puxo a descarga para que Mrs. Burnes (ou Lascelley ou Hill ou Simpson) não escute meu grito.
― What you think about the Women's Lib?
― Nothing. I prefer boys.
― Chauvinist!
Ela está descalça, embora faça frio. Tem uma saia de retalhos coloridos até quase o chão cheio de lixo. Os cabelos vermelhos de hena, algumas mechas verdes. Nos olhos, um pincel stone traçou enormes asas de purple butterfly. Como se seu rosto fosse um jardim. Empurra um carrinho de bebê vazio e canta. Qualquer coisa assim: "I'm so happy / I’m so happy/ 'cause today is The Day/ 'cause today is a Sunny Day". É muito jovem, mas a heroína levou embora a rosa de suas faces. O boá azul esvoaça com o vento dos ônibus. Ela sorri ao passar e se detém e faz meia-volta e retira de dentro do carrinho de bebê uma bolsa de vidrilhos e cordões dourados e apa¬nha um vidrinho escuro e salpica algumas gotas de óleo na ponta dos dedos e passa ― slowly, slowly ― na minha testa, na minha face, no meu peito, nas cicatrizes suici¬das de meus pulsos de índio:
― You know and I know that you know: today is just The Day.
Cheira a sândalo, a Oriente. Eu não quero dizer nada, em língua nenhuma, eu não quero dizer absolutamente nada. Eu só sorrio e deixo ela ir embora com seus pés descalços e muito sujos dançando embaixo dos trapos coloridos da saia. Ela canta, ainda. Eu aproximo os pulsos das narinas e aspiro, até o ônibus chegar, eu aspiro. Sândalo, Oriente.
― Won’t you finisb your bloody cigarette?
― Fuck off!
― Very eccentric!
Mrs. Austin aponta as pombas no quintal e diz que não pode morrer, you know?, que tem oitenta anos mas não pode morrer. O que seria das pombas se Mrs. Austin morresse agora? Fico parado na esquina, as mãos cheias de pombas, os pés no jardim dourado de Mrs. Austin, que me deu cinqüenta pence a mais. Elas passam, eles passam. Alguns olham, quase param. Outros voltam-se. Outros, depois de concluir que não mordo, apesar de meu cabelo preto e olho escuro, aproximam-se solícitos e, como nesta ilha não se pode marcar impunemente pelas esquinas, com uma breve curvatura agridem-me com sua British hospitality:
― May I help you? May I help you?
― No, thanks. Nobody can help me.
Something else. Toco o pequeno cacto com os dedos cheios de bolhas rosadas. É um frágil falo verde, coberto de espinhos brancos. Comprimo os espinhos brancos contra a pele rosada das bolhas de meus dedos. Mas nada acontece. Something else. Eu queria tocar "Pour Élise" ao piano, sabia? É meio kitsch, eu sei, mas eu queria, e en el Brazil, cariño, en el otro lado del mar, hay una tierra encantada que se llama Arembepe, y un poco más al sur hay otra, que se llama Garopaba. En estos sitios, todos los días son sunny-days, todos. Mon cher, apanhe suas maracas, sua malha de bale, seus pratos chineses ― apanhe todos os pedaços que você perdeu nessas andanças e venha para o meu tapete mágico. Te quieres volar conmigo hasta los sitios encantados? Something else. Coño. Aperto minhas bolhas contra o pequeno falo verde. E nada continua acontecendo. Como César Vallejo: "Tenemos en uno de los ojos mucha pena, y también en el otro, mucha pena, y en los dos, cuando miran, mucha pena". Cármen hesita, o telefone nas mãos. Flash-back: Cármen-menina hesita com o pintinho do vizinho entre as mãos de unhas verde-menta, esmalte from Biba, High Street Kensington, W8. Quizá Remédios, Soledad o Esperanza.
Zoom no olho de cílios de visom. A boca escarlate repe¬te enr(l)ouquecida:
― Pero si no te gusta esa de que te hablo, hay otra más al sur, o más al centro, donde Io quieras, cielo, donde Io quieras, locura. Sometimes, penso que mio cuore es una basura, but "your body hurts me as the world hurts God". I car it forget it.
― Look deep on my eyes. Can you see? They're lost. They're completely lost. And I can do nothing.
Caminho, caminho. Rimbaud foi para a África, Virginia Woolf jogou-se num rio, Oscar Wilde foi para a pri¬são, Mick Jagger injetou silicone na boca e Arthur Miller casou com Norma Jean Baker, que acabou entrando na Hi$tória, Norman Mailer que o diga. Mrs. Burnes não vem, não vem. Wait her and after call me. Espero, espe¬ro. Mrs. Burnes não vem. Amsterdã até que é legal, mas nunca vi tanta merda de cachorro na rua. Na Nicarágua um terço da população fala ahuara, que é uma língua hindu. No muro perto de casa alguém escreveu com san¬gue: "Flower-power is dead". É fácil, magro, tu desdobra numa boa: primeiro procura apartamento, depois traba¬lho, depois escola, depois, se sobrar tempo, amor. Depois, se preciso for, e sempre é, motivos para rir e/ou chorar ― ou qualquer coisa mais drástica, como viciar-se defini-tivamente em heroína, fazer auto-stop até o Katmandu, traficar armas para o Marrocos ou ― sempre existe a old-fashion ― morrer de amores por alguém que tenha nojo de sua pele latina. Why notP
― Please, can you clean the other side of that door?
Primeiro, a surpresa de não encontrar. Surpresa branca, longa, boca aberta. €10. O aluguel da semana mais um ou dois maços de Players Number Six. Alguns sanduíches e ônibus, porque metrô a gente descola, five na entrada e five, please, na saída. Reviro a bolsa: passaporte brasileiro, patchuli hindu, moedas suecas, selos franceses, fósforos belgas, César Vallejo e Sylvia Plath. Olho no chão. Afasto as pernas das pessoas, as latas de lixo, levanto jornais, empurro bancos. Tenho duas opções: sentar na escada suja e chorar ou sair correndo e jogar-me no Tâmisa. Prefiro tomar o próximo trem para a próxima casa, navegar nas waves de meu próprio assobio e esperar por Mrs. Burnes, que não vem, que não vem.
― WHY?
― I beg your pardon?
Sempre anoitece cedo e na sala discutem as virtudes da princesa Anne, alguém diz que o marido sim, é uma tesão, e ouvem rock que fala numa “ilha-do-Norte-onde-não-sei-se-por-sorte-ou-por-castigo-dei-de-parar-por-algum-tempo-que-afinal-passou-depressa-como-tudo-tem-de-passar-hoje-eu-me-sinto-como” se agora fosse tam¬bém ontem, amanhã e depois de amanhã, como se a pri¬mavera não sucedesse ao inverno, como se não devesse nunca quebrar a casca do ovo, como se fosse necessário acender todas as velas e todo o incenso que há pela casa para afastar o frio, o medo e a vontade de voltar. Mas o carrinho de bebê está vazio. A pedra de Brighton pare¬ce um coração partido. O taro esconde a Torre Fulmi¬nada. As flores amarelas sobre a mesa branca ainda não morreram. O telefone existe, mas não chama. Na parede tem um mapa-múndi do século não sei quantos. O cacto. A agulha faz a bolha na ponta do dedo de Saturno liber¬tar um líquido grosso e adocicado. Sinto dor: estou vivo. Meu último olhar do dia repousa, como num poema an¬tigo, sobre o uniforme da Terceira Grande Guerra joga¬do ao chão para a ofensiva da manhã seguinte: tênis francês (trinta francos), blue jeans sueco (noventa coroas), suéter inglês (quatro libras), casaco marroquino (novecentas pesetas). Agora custo um pouco mais caro e meu preço está sujeito às oscilações da bolsa internacional. Quando você voltar, vai ver só, as pessoas falam, apon¬tam: "Olha, ele acaba de chegar da Europa", fazem caras e olhinhos, dá um status incrível e nesse embalo você pode comer quem quiser, pode crer. Magrinha, você me avisou, eu sei, mas onde estão teus dedos cheios de anéis? Mas na sala, na sala discutem as virtudes do mari¬do da princesa Anne e cantam rock. David Bowie é uma grande mulher, mas meu coração é atlante. Tenho Sol em Virgo, Marte em Scorpio, Vênus em Leo e Júpiter em Sagittarius. Situo, situo-me. Coloco o despertador para as sete horas, ainda é escuro, os carros ficam cobertos de gelo, apago a luz e puxo o cobertor roxo para cima de mim. E ainda por cima diz alguém longe, ainda por cima no fim do ano tem o cometa. Procuro o fósforo, acendo um cigarro. A pequena ponta avermelhada fica brilhando no escuro. Sorry, in the dark: red between the shadows. Quase como um farol. Sorry: a light house. Magrinha, lá na Bahia, localiza minha pequena luz, estende tua mão cheia de anéis por sobre o mar e toca na minha testa caliente de índio latino-americano e fala assim, com um acento bem horroroso, que Shakespeare se retorça no túmulo, fala assim:
- De beguiner is ólueis dificulti, suiti ronei, létis gou tu trai agueim. Iuvi góti somessingui élsi, donti forguéti iti.
I don’t forget. Meu coração está perdido, mas tenho um London de A a Z na mão direita e na esquerda um Collins dictionary. Babylon City estertora, afogada no lixo ocidental. But I’ve got something else. Yes, I do.

Ler mais »

PEQUENO MONSTRO

0

Para
Grace Giannoukas
e
Marcos Breda

1
NAQUELE verão, quando a Mãe avisou que o primo Alex vinha
passar o fim de semana conosco na casa da praia alugada, eu não
gostei nem um pouco. Não por causa dele, que eu mal lembrava a cara
direito, podia até ser qualquer outro primo, tio, avô. Mais por minha
causa mesmo, que tinha começado a crescer para todos os lados, de um
jeito assim meio louco. Pernas e braços demais, pêlos nos lugares
errados, uma voz que desafinava igual de pato, eu queria me esconder
de todos. Só tardezinha saía de casa, na hora que as empregadas
domésticas - as dosas, o Pai dizia - estavam voltando da praia. Então
caminhava quilômetros na beira do mar, me rolava na areia, vez
enquando chorava e repetia: pequeno monstro, pequeno monstro,
ninguém te quer. Não suportava ninguém por perto. Uma Mãe
insistindo o tempo inteiro pra tu ires à praia na mesma hora que todo
mundo normal vai e um Pai que te olha como se tu fosses a criatura
mais nojenta do mundo e só pensa em te botar no quartel pra aprender
o que é bom - isso já é dose suficiente para um verão. Como se não
bastasse a minha desgraça, agora ia ter que dividir meu quarto com o
tal de primo Alex. E não queria que ninguém ouvisse minha voz de pato
grasnando, visse meus braços compridos demais, minhas pernas de
avestruz, meus pêlos todos errados.
Fiz cara feia, a Mãe nem ligou. Falou que ele vinha e pronto, que
tinha estudado muito o ano todo, passado no vestibular não sei de que
e precisava descansar e tal e tudo e que ela devia aquela obrigação à tia
Dulcinha coitada tão só e que além do mais o Alex era um bom rapaz
tão esforçado o pobre. Isso eu odiava mais que tudo: aqueles bons
rapazes tão esforçados e de óculos sempre saindo com sacolas de lona
na hora do almoço para comprar cervejas e coca-colas e cigarros pra
todo mundo, ajudando a lavar pratos e jogando aquelas chatíssimas
canastras sobre o cobertor verde na ponta da mesa. Empurrei a
compota de pêssego argentino, a calda virou na toalha, armei a tromba.
Esse era meu jeito de dizer: não careço nem ver a cara dele para ter
certeza que é um coió.
Quase dormindo, mais tarde, naquela mesma noite que a Mãe
avisou que oprimo Alex vinha, eu tentava lembrar a cara dele e não
conseguia. Na verdade, não conseguia lembrar a cara de ninguém desde
uns dois anos atrás, desde que eu tinha começado a ficar meio monstro
e os parentes se cutucavam quando eu passava, davam risadinhas,
falavam coisas baixinho, olhando disfarçado pra mim. Eu tinha horror
deles, que achavam que sabiam tudo sobre mim. Sabiam nada, sabiam
bosta do meu ódio enorme por um por um de cada um deles, aquelas
barrigonas, aqueles peitos suados, pés cheios de calos. Eu nunca ia ser
igual a eles - pequeno monstro, seria sempre diferente de todos. Era
assim mesmo que ia me comportar com o primo Alex, decidi: pequeno
monstro cada vez mais monstro, até ele não agüentar mais um minuto
e dar o fora pra sempre. Fiquei olhando com força pro colchão sem
lençol da cama ao lado onde ele ia dormir, até encher o colchão com
todo o meu ódio, pra ele se sentir mal e ir embora no mesmo dia.
2
No dia que era o dia que ele vinha - e eu sabia porque a Mãe não
falava outra coisa, arrumou lençóis limpos na cama ao lado, mandou eu
empilhar os gibis, guardar no guarda- roupa a roupa da guarda da
cadeira -, saí de casa um pouco mais cedo e fiquei caminhando séculos
na praia. Eu gostava de ir até aquele farol no caminho de Cidreira, onde
tinha umas dunas e era bom ficar deitado na areia, olhando o mar sem
fim. Vez enquando passava um navio, eu perguntava pra onde vai? pra
onde vai? Bem besta mesmo, não pensava o lugar, só perguntava
assim: pra onde vai, sem pensar o nome nem nada. Depois pensava
também se eu saísse agora reto daqui e entrasse no mar e que nem
Jesus Cristo fosse capaz de pisar sobre as águas e fosse andando
sempre em frente sem parar - ia dar onde? Achava que na África, na
Índia, sei lá. Em algum lugar, ia dar. Longe dali, de Tramandaí. Aí
começou a sair do mar uma lua cheia bem redonda, e eu primeiro fiquei
tentando ver nela São Jorge e o dragão, depois lembrei que era besteira,
coisa de criança, e pensei crateras, desertos, quase via, Mar da
Serenidade. Ou era Fertilidade? Fui olhando as coisas, me atrolhando
por ali, até que de repente tinha anoitecido total, e eu tinha que voltar
pra merda daquela casa com aquele Pai e aquela Mãe. Ainda por cima,
fui lembrando no caminho, cada vez mais puto, e por causa disso
caminhava mais devagar ainda e ficava cada vez mais noite, agora com
aquele tal de primo Alex lá, enfiado no meu quarto.
Passaram uns bagaceiras com violão e uma garrafa de cinzano,
abraçados, cantando uma música de parque. Desviei deles, fui enfiando
os pés na água morna do mar, de cabeça baixa pra não mexerem
comigo. Vez enquando olhava pra trás e só ouvia aquelas vozes bem de
bagaceiras mesmo, cada vez mais longe, cantando a noite tá tão
escura/ a lua fez feriado/ estou sofrendo a tortura/ de não sentir-te ao
meu lado. Bestas, pensei, porque a lua não tinha feito feriado coisa
nenhuma, feriado era lua nova, não aquela luona enorme, redonda,
amarela, bem ali em cima do mar e da cabeça da gente. Quando eu. já
tinha caminhado um pouco em direção ao norte, e os bagaceiras tinham
sumido, olhando por cima do ombro direito pensei quem sabe agora,
saindo reto aqui eu dou justo ali, no sulzinho da África, cabo das
Tormentas. Ou era o da Boa Esperança? Aí de repente despencou uma
baita estrela cadente, quase do tamanho da lua, tão grande que cheguei
a parar pra ouvir o tchuááááááááááááááá da estrela caindo dentro do
mar. Não aconteceu nada, então falei bem alto, imitando aquela vozinha
de taquara rachada da dona Irineide, professora de Geografia: bó-li-dos,
isso que o populacho chama de estrelas cadentes na verdade são bó-lidos.
Me senti muito culto e tudo, mas meio sem graça, daí lembrei que
podia fazer um pedido, ou três, não sei bem, a gente podia. Então
peguei e fiz. Que já que o primo Alex tinha mesmo que estar lá naquela
merda de casa - e era impossível pedir que não viesse, porque já tinha
vindo - que pelo menos ele fosse legal e não me enchesse o saco.
Bem devagarinho, fui me distraindo com essas coisas pelo
caminho. Daí me atrasei tanto que, quando cheguei em casa, estava
armado um começo de alvoroço. O Pai já estava de chinelo e pijama, me
chamou de desgranido e disse que ia me proibir de ir à praia a essa
hora de louco e eu respondi que se me proibisse de ir nessa hora eu ia
ficar no quarto trancado e não ia em hora nenhuma nunca mais, e a
Mãe falou baixo, mas eu escutei, é a idade não liga, não implica com o
guri, criatura, e me deu uma janta meio fria com milho duro e eu
cheguei a abrir a boca pra falar que não era cavalo quando ela disse que
o primo Alex já tinha chegado e estava dormindo, podre da viagem. Nem
precisava dizer nada: sentado na ponta da mesa, eu já tinha visto
aquela campeira xadrez pendurada numa guarda de cadeira. Mesmo
que não pudesse ver nada, farejava um cheiro no ar. Nem bom nem
mau, cheiro de gente estranha recém-chegada de viagem. Polvadeira,
bodum, sei lá. Quase não consegui comer, de tanto ódio. O Pai foi
dormir azedo, falando que no quartel eu ia ver. A Mãe ficou mexendo no
rádio, mas só dava descarga no meio dumas rádios castelhanas êleêrre-
uno-êle-êrre-dôs. Nada de Elvis, que eu gostava e ela fingia que
não, só Gardel, que ela gostava e eu tinha certeza que não. Falei que ia
dormir também, a Mãe botou a mão no meu ombro e muito séria pediu
pra mim prometer que ia ser educado com o primo Alex coitado que o
pai dele tinha morrido e a tia Dulcinha passava muito trabalho e coisa e
tal. Até prometi, não custava nada. Mas fiquei torcendo os dedos,
rezando prela não repetir que ele era um bom rapaz tão esforçado o
pobre, senão meu ódio voltava. Ela acabou falando, bem na hora que
Gardel cantava sabia que nel mundo no cabía toda la humilde alegría
de mi pobre corazón, e eu fui dormir com muito ódio. Dela, do Pai, do
primo Alex, da tia Dulcinha, dos bagaceiras da praia, do Gardel, de
tudo.
3
Tirei a areia dos pés no bidê, lavei a cara e fiquei parado na
frente do espelho. Pequeno monstro, falei. Mais de uma vez, três, doze,
vinte, eu repetia sempre, me olhando no espelho antes de dormir:
pequeno, pequeno monstro, ninguém, ninguém te quer. Mijei, escovei os
dentes, gargarejei. Me deu vontade de vomitar, sempre me dava. Mas
não vomitei, nunca vomitava. Tive vontade de me encolher ali mesmo,
embaixo da pia, feito cusco escorraçado, e dormir até a manhã seguinte,
para que todos vissem como eu era desgraçado. Meu quarto agora não
era mais só meu, não podia ficar lendo até tarde nem nada, luz acesa
até altas: a droga do primo Alex estava lá, e eu tinha prometido ser bem
educado com ele, coitado.
Aquele quarto que agora não era mais meu, mas. meu e do tal de
primo Alex, ficava na parte de trás da casa de tábuas, numa espécie de
puxado, ao lado de um banheiro que antes dele chegar também era só
meu, mas agora era meu e dele, que nojo. Apaguei a luz, parei na porta
do banheiro e fiquei remanchando um pouco por ali, parado no corredor
escuro, antes de entrar. Eu tinha que estar preparado para enfrentar
aquele tapume de óculos, que certamente - eu conhecia bem essa gente
- tinha deixado seus óculos sebentos na minha mesinha de cabeceira, e
aqueles vulcabrás nojentos com umas meias duras no garrão saindo
pra fora e um fedor de chulé no ar, escarrapachado na cama, roncando
e peidando feito um porco. Que ódio, que ódio eu sentia parado naquele
biricuete escuro entre o banheiro e o quarto que não eram mais meus.
Abri a porta devagarinho. A janela-guilhotina estava levantada, a
luz apagada. Não tinha nenhum fedor no ar. A luz da lua entrando pela
janela era tão clara que eu fui me guiando pelo escuro até a minha
cama, sem precisar estender a mão nem nada. Sentei, levei a mão até a
mesinha de cabeceira e apalpei: não tinha nenhum óculos em cima
dela. Só meu livro Tarzan, o Invencível, da coleção Terramarear. Pelo
menos isso, pensei: a trolha não usa óculos. Fiquei de cueca, camiseta,
me deitei. Não tinha nenhum barulho de ronco, nenhum cheiro de
peido no ar, só aquele perfume meio enjoativo do jasmineiro ali no pátio
ao lado. Os meus olhos foram se acostumando mais no escuro, e eu
comecei a olhar para a cama onde o primo Alex estava deitado, do outro
lado do quarto.
A luz da lua batia direto nele. Ele estava deitado por cima do
lençol, completamente pelado. Meus olhos se acostumavam cada vez
mais, e eu,podia ver o primo Alex virado sobre o lado direito, as duas
mãos juntas fechadas no meio das pernas meio dobradas. Ele parecia
muito grande, tinha que encolher um pouco as pernas, senão os pés
batiam lá na guarda do fim da cama-patente. Ele tinha muitos pêlos no
corpo, a luz da lua batendo assim neles fazia brilhar as pontas dos
pêlos. Ele tinha a cara virada de lado, afundada no travesseiro, eu não
podia ver. Via aqueles pêlos brilhando - uns pêlos nos lugares certos,
não errados, que nem os meus - descendo para baixo do pescoço, pelo
peito, pela barriga, escondidos e mais cerrados naquele lugar onde ele
enfiava as mãos, depois espalhados pelas pernas, até os pés. Os pés
encolhidos do primo Alex eram muito brancos, o pai dele tinha morrido,
ele tinha estudado o ano inteiro e passado no vestibular não sei de quê,
lembrei. E não fazia barulho nenhum quando dormia, coitado.
Fiquei deitado na minha cama, olhando para ele. Depois de um
tempo, comecei a ouvir a respiração dele e fui prestando atenção na
minha própria respiração, até conseguir que ela ficasse igual à dele. Eu
respirava, ele respirava. Eu cruzei as mãos no peito e encostei a cabeça
na guarda da cama para poder olhar melhor. Ele tinha cruzado as mãos
no meio das pernas decerto para dormir melhor, o pobre, podre da
viagem. Fiquei olhando pra ele, respirando devagar, no mesmo ritmo.
Bem devagar, para não acordá-lo. Não sei por quê, mas de repente todo
o meu ódio passou. Ali deitado, olhando pro primo Alex dormindo
inteiramente pelado, embaixo daquela lua enorme, o cheiro enjoativo
dos jasmins entrando pela janela aberta, me dava uma coisa assim que
eu não entendia direito se era tontura, sono, nojo ou quem sabe aquele
ódio se transformando devagarzinho em outra coisa que eu ainda não
sabia o que era.
4
De manhã, fiquei na cama até quase meio-dia. Escutei uns
barulhos de gente acordando, mas não me mexi nem olhei, virado pra
parede. Aí vieram outros barulhos, descarga de privada, torneira aberta,
colher batendo em xícara na cozinha, a voz da Mãe dizendo que eu era
assim mesmo, dormia até o cu fazer bico, e uma voz mais grossa, que
não era a do Pai, falando outra coisa que não consegui ouvir. Depois
uns barulhos de porta batendo, e silêncio. Eu sabia que eles tinham ido
todos pra praia, e pensei em me levantar pra mexer um pouco nas
tralhas do primo Alex, ninguém ia ver. Mas comecei a cair naquela coisa
que eu chamava de entre-sono, porque não era bem um sono. Meu pau
ficava tão duro que chegava a doer, toda manhã, então eu apertava ele
contra o lençol, parecia que tinha uma coisa dentro que ia explodir,
mas não explodia, tudo começava a ficar quente dentro e fora de mim,
enquanto eu pensava numas coisas meio nojentas. Não sabia direito se
eram mesmo meio nojentas - um peito da negra Dina que eu vi uma vez
na beira do tanque, uns gemidos de gente e rangidos de cama no quarto
do Pai e da Mãe. Eu não sabia quase nada dessas coisas. Mas era justo
nelas que ficava pensando sempre no entre-sono, o pau apertado contra
o colchão, até tudo ficar mais sono do que entre. Daí eu caía fundo no
poço sem me lembrar de mais nada.
Só saí da cama quando a Mãe bateu na porta e falou que estava
quase na mesa. Olhei pra cama do primo Alex, toda desarrumada, e
pensei que o idiota devia estar na sala, sentado como se a casa fosse
dele, tomando cerveja com o Pai. Enfiei a bermuda, lavei a cara no
banheiro e remanchei o mais que pude, pra não ver a cara de ninguém
nem ninguém ver a minha. Mas quando saí e fui entrando pela casa, só
tinha a Mãe remexendo na cozinha e o Pai sentado no degrau da
varanda, lendo O Correio do Povo. Olhei em volta, não tinha nenhum
sinal do primo Alex além da campeira xadrez desde a noite passada ali
naquela guarda de cadeira. Não perguntei nada, fiquei sentado na
ponta da mesa, riscando a toalha com a ponta da faca. Até que a Mãe
disse:
- O Alex se encantou com a praia. O pobre nunca tinha visto o
mar. Precisava ver, parecia uma criança. Ficou lá, não teve jeito de
querer voltar.
Bem feito, pensei, vai ficar vermelho que nem um camarão. E de
noite vai ter que passar talco nas costas e pasta de dente no nariz e
ficar se rebolcando na cama sem conseguir dormir, porque quando a
gente tá assim queimado até lençol dói na pele. Vai gemer e encher o
saco a noite inteira e amanhã ou depois vai começar a descascar feito
cobra trocando de pele até queimar tudo de novo e a pele ficar grossa
que nem couro e ele começar a se sentir o máximo, de mocassim, calça
branca e camisa banlon vermelha, todo queimado e idiota idiota idiota.
Fui pensando nessas coisas enquanto a Mãe servia a comida e o Pai
nem olhava direito pra mim, só lia o jornal, sacudia a cabeça e dizia
barbaridade-mas-que-barbaridade, e eu nem conseguia comer direito
nem sentir muito ódio. Que era mais um exercício de ruindade minha
pensar aquelas coisas, precisava treinar todo dia pra não perder o jeito
de ser pequeno monstro. Tomei quase um litro de quis- suco de
groselha, puro açúcar, me deu um asco na boca do estômago, empurrei
o prato, sem fome. Disse que não estava me sentindo muito bem, e o
Pai falou também pudera, o lorde, dormindo feito um condenado, vai
acabar tuberculoso, a Mãe falou deixa o guri, também que implicância,
ele falou que era por isso mesmo que eu estava assim baseado, que ela
parecia uma escrava minha, ela disse que tinha alugado aquela casa na
praia pra ver se descansava um pouco, não pra ele infernizar ainda
mais a vida dela, que já era um martírio - e os dois estavam começando
a gritar cada vez mais alto quando eu aproveitei e peguei e fugi pro
quarto sem ninguém ver.
O quarto virava um forno depois do almoço. O sol batia no
telhado de zinco, ficava tudo fervendo. Pensei que se eu ficasse ali todo
aquele maldito quissuco ia começar a ferver na minha barriga, até sair
uma espuma vermelha pela boca e cair no chão babujando e me
batendo pelas paredes. Podia ser que pelo menos assim alguém no
mundo prestasse atenção em mim. Peguei o livro de Tarzan, passei pela
cozinha, onde eles continuavam berrando, fui deitar na rede embaixo
dos ema- momos onde batia uma fresca. Mas mesmo ali, na sombra
boa, não conseguia parar de pensar que a minha vida era um inferno. E
que se um dia eu saísse mesmo caminhando reto por cima do mar,
mesmo que não pisasse sobre a bosta das águas que nem Jesus Cristo,
ia ser ótimo pra todo mundo se eu afundasse de uma vez e ninguém me
encontrasse nunca mais afogado para sempre no fundo do mar igual ao
Titanic. Tentei ler, mas aquela lenga-lenga dos sacerdotes nas cavernas
de Opar estava me enchendo um pouco o saco.
5
Uma cara morena, de cabelo preto, me espiava por cima da rede.
Uma cara morena muito próxima, um cheiro forte de suor e de mar.
Quase gritei, porque logo que abri os olhos e dei com aquela cara e
aquele cheiro não lembrei que tinha deitado ali na rede, depois do
almoço. Acho que estava sonhando com Jad-bal-ja, o leão de ouro, e foi
nisso que pensei quando vi aquela cara morena me espiando por cima
da rede. Mas toda morena, meio de cigano, não era cara de leão - era a
cara do primo Alex, de sobrancelhas pretas bem cerradas grudadas em
cima do nariz. Ele sorriu pra mim, mas a cara estava perto demais, não
consegui sorrir de volta nem nada, por educação que fosse. Desviei os
olhos para o livro de Tarzan no meu colo, depois franzi as sobrancelhas
pra ver se ele se tocava. Mas parece que não se tocou. Empurrou a rede,
se afastou um pouco e ficou me olhando enquanto eu balançava feito
um idiota, com ele me olhando de braços cruzados e pernas abertas.
- A tia disse que tem um chuveiro aqui fora - ele falou com uma
voz meio rouca, mais grossa que a do Pai, e muito educada. - Pra mim
tirar a areia antes de entrar em casa. Onde que é?
- Ali, ó - eu apontei o fundo da casa. Ele me olhou mais um
pouco, os braços cruzados. Eu só podia ver a cara dele com os cabelos
duros de sal e areia e uns pedaços de corpo que subiam e desciam, com
o balanço da rede, as pernas abertas. Pelo menos não Jsa calção-saia,
pensei, aqueles calções de náilon todos largões que estava na cara que
uma pessoa que usava um calção desses nunca tinha ido à praia na
vida, calção de baiquara. Mas o dele era preto, bem decente até.
- Tu não gosta de ir à praia? - ele perguntou. - A tia...
- Não - eu falei. E já sabia: a Mãe tinha dito que eu não gostava
de ir à praia, que não falava com ninguém, que dormia até a hora do
almoço, que ficava trancado no quarto, que dava pontapés na porta e
tudo, tudo ela decerto já tinha contado pra ele: que eu era um monstro.
Depois achei que ele não tinha culpa, coitado, ela é que ficava falando
sem parar, e tentei ser mais educado: - Só gosto de tardezinha, na hora
do pôr-do-sol.
- Ah - ele disse. E achei bacana ele não dizer mais nada, que eu
devia acordar mais cedo, aproveitar o sol e todas aquelas besteiras. Eu
não conseguia olhar direito pra ele, aí estendi uma perna, finquei os
dedos do pé na grama e fiz a rede parar de balançar. Então olhei. Ele
tornou a rir, uns dentes muito brancos - ou só pareciam muito brancos
porque ele estava supermoreno. Não tinha ficado nem um pouco
vermelho do sol. Passou as mãos pelo peito, pela barriga, pelas pernas,
a areia caiu no chão. A voz da Mãe gritou lá de dentro pra ele ir
almoçar. Eu abri o livro, fiz que ia começar a ler, aí ele riu de novo e foi
caminhando devagar pro chuveiro. Parecia um leão, mesmo moreno,
pensei, andando daquele jeito, meio de lado. Eu comecei a ler.
Seus musculosos dedos de aço firmaram-se no centro de uma
das barras. De costas para mim, embaixo do chuveiro, as costas dele
eram retas, largas, com um pequeno triângulo de pêlos crespos e pretos
mais largos onde subiam para a cintura, mais estreitos quando desciam
em direção à bunda. Ele abriu o chuveiro, soltou um grito quando a
água gelada começou a cair. Com a mão esquerda segurou na outra e,
apoiando um dos joelhos de encontro à porta, vagarosamente dobrou o
cotovelo direito. Cada braço dele era assim quase da grossura da minha
coxa. A água começou a levar embora a areia da praia, e agora eu podia
ver melhor o corpo dele, escondido embaixo da camada de areia. Eu não
conseguia parar de olhar. Ondulando como aço plástico, os músculos
de seu antebraço e os bíceps cresceram até que gradualmente a barra
arqueou na sua direção. Ele virou de frente, com as duas mãos afastou
o calção e avançou um pouco o corpo, para a água bater na barriga e
descer por dentro do calção. Enfiou as mãos por dentro do calção,
depois olhou pra mim, entre as gotas do chuveiro, e virou a cabeça,
cuspindo água. O homem-macaco sorriu, enquanto agarrava de novo na
barra de ferro. Quando ele fechou o chuveiro, sacudindo os cabelos
molhados, quando as gotas do cabelo dele respingaram na minha cara e
a Mãe tornou a chamar lá de dentro - de repente e sem querer eu fechei
com força o livro, pulei pra fora da rede e saí correndo em direção à
porta da casa.
6
Pelo resto daquele dia, não consegui fazer mais nada. Até parece
que nos outros dias eu fazia alguma coisa mais, além de me atrolhar
pelos cantos, morto de calor, dormir ou caminhar vadio pela praia. Pois
nem isso consegui. Me deu assim um disparo no coração, feito susto
que não era bem susto, porque não tinha medo de nada. Ou tinha:
medo de uma coisa sem cara nem nome, porque não vinha de fora, mas
de dentro de mim. Uns frios, mesmo parado embaixo do sol de rachar,
olhando minha sombra achatada igual à de um marciano monstro
verde, e uns calorões, mesmo atrás da casa onde até lesma tinha, de
tão úmido. Eu só sabia que por nada desse mundo queria ficar perto do
primo Alex.
Escondido, vi quando ele entrou no quarto e encostou a persiana
da janela, porque decerto ia tirar uma sesta. Todos tiravam sesta no
mundo, menos eu, pequeno monstro. Fiquei acompanhando com a
ponta do dedo um rastro prateado de lesma, naquele lugar frio atrás da
casa, até passar um tempo. E, quando saí no sol outra vez, vi que o
tempo tinha passado, porque a minha sombra já não estava tão
achatada nem tão monstra. Então cheguei bem devagarinho perto da
janela do quarto e, sem barulho nenhum, empurrei a persiana. De leve,
como se fosse um vento. Ele estava nu, de costas para a janela. Um
pouco mais abaixo daquele triângulo de pelos crespos e pretos na
cintura, o calção tinha deixado uma marca branca, que parecia mais
branca ainda, agora que o vermelho do sol começava a acender. Ele
estava deitado em cima do braço esquerdo. O braço direito dele, que eu
só podia ver até a metade, estava dobrado na cintura, desaparecia na
frente do corpo. E se mexia. Todo parado o primo Alex, só mexia o braço
direito que eu não via inteiro, porque ele estava de costas para mim.
Cada vez mais depressa, eu tranquei a respiração, o queixo apoiado na
janela, e cada vez mais depressa, até que ele primeiro gemeu baixinho,
depois mais alto, suspirou, o corpo inteiro tremendo, virou de bruços na
cama e afundou a cara no travesseiro. O braço direito caiu ao lado da
cama. Da ponta dos dedos dele, que quase tocavam o chão, escorria
uma gosma meio branca, meio prateada, que foi deixando no piso um
rastro igual ao das lesmas nos fundos da casa.
Ainda era muito cedo, mas fui caminhar na praia. Saí correndo
pela areia em direção ao farol, e quando vi que não tinha mais ninguém
por perto comecei a gritar: Sumatra Tantor Zanzibar Bukula Mensahib
Nikima Jad-bal-ja. Umas coisas assim, que nem música. Podia até
cantar, e cantei. Cada vez que um dos pés batia na areia eu gritava
Sumatra ou Bukula ou Nikima, parecia louco de hospício. Não
conseguia parar. Só parei quando o coração disparou demais, e minha
cara ficou lavada de suor, bem na frente do farol. Então olhei em volta,
vi que não tinha ninguém, e fiz uma coisa que nunca tinha feito antes.
Tirei a bermuda e a camisa, larguei na areia e fui entrando na água
completamente pelado.
Abri as duas pernas, os dois braços, me joguei no meio da
espuma. Dei de bunda na areia do fundo do mar, mas não doeu. Aí me
virei de bruços e comecei a esfregar meu pau completamente duro na
areia molhada molinha. Ficava cada vez mais duro, parecia que tinha
uma coisa que queria sair de dentro dele, um fio prateado brilhante.
Mas não saía nada, a areia ardia, o sal queimava. Aí eu peguei e abri a
minha bunda com as duas mãos bem no lugar onde as ondas
arrebentavam, e fiquei assim, deixando as ondas arrebentarem e a
espuma morna do fim da tarde entrar pela minha bunda aberta.
Foi me dando uma tontura, eu sem querer pensei no braço
direito do primo Alex, cada vez mais depressa, parecia assim que ia
explodir alguma coisa. Não explodiu nada, eu cravei as unhas no braço,
falei quinze vezes pequeno-monstro-pequenomonstro-ninguém-te-quer e
não sabia mais o que fazer da vida, daquele medo ou coisa que queria
porque queria sair de dentro de mim sem encontrar o jeito.
Meu coração batia batia quando cheguei em casa. A Mãe já
estava botando a mesa da janta. Vai lavar as mãos, o Pai falou sem me
olhar, ele nunca me olhava. Deixei a água correr sem me olhar no
espelho. Quando voltei, o primo Alex já estava sentado, riscando o
xadrez da toalha com a ponta serrilhada da faca. Eu não olhei pra ele,
mas mesmo sem olhar dava pra ver que ele tinha vestido uma camisa
branca de banlon bem alvinha e penteado o cabelo. Eu não queria olhar
pra ele. Mas aí a Mãe foi colocar o ovo e o bife no meu prato e o Pai
falou tira as aspas do prato, guri, também que cosa, parece um bugre.
Eu fiquei vermelho de vergonha dele falar assim daquele jeito comigo na
frente do primo Alex, e sem querer ergui a cabeça, levantei os olhos. Ele
apertou aquelas sobrancelhas pretas grudadas em cima do nariz e
piscou pra mim. Como se a gente tivesse um segredo. Fiquei ali feito
besta olhando de vez em quando pra ele. Ele sempre olhava de novo pra
mim por cima da jarra de quissuco que na janta era de laranja, não de
groselha. Vez enquando piscava, vez enquando ria, sem ninguém ver.
Como se tivesse uma coisa que só acontecia entre ele e eu. Uma coisa
que era um pouco essa vontade minha de ficar olhando sem parar pra
ele? Podia ser essa vontade, misturada com aquele medo, aquele braço
se mexendo cada vez mais depressa, aquele fio prateado de gosma
brilhante estendido no chão. Parecido com a calda da compota de
pêssego que outra vez eu virei na toalha quando a Mãe parou um pouco
de falar e, antes que o Pai me chamasse de porco, perguntou assim:
- Tu não quer convidar o Alex pra dar uma volta na praça e
tomar um chope no centro?
Ficaram os três me olhando. Passei o dedo na calda do pêssego,
e lambi bem devagar quando olhei pro primo Alex e convidei:
- Vamos?
Ele sustentou o olhar. E disse que sim.
7
Azul, mas não era bem bem azul. Isso eu só vi na metade da
primeira cerveja. Azul-escuro que clareava aos poucos, meio
esbranquiçada nas partes em que encostava no corpo. Nos joelhos, na
bunda, na frente onde roçava no volume do pau, atrás do fecho. Tinha
fecho ecler que nem saia de mulher, em vez de botão igual à minha. Já
tinha visto umas assim, mais em filme de mocinho, e só umas poucas
nuns caras meio metidos ali na praia mesmo. Dava um jeito especial na
pessoa. Um jeito bonito, um jeito moderno. Eu não tinha falado quase
nada, mas depois daquele gole de cerveja tomei coragem e disse:
- Bacana a tua calça.
- É Lee - ele disse. - Americana, importada.
- Onde a gente compra?
- Só de contrabando. Quer que te consiga uma?
Perguntei se era difícil, ele disse que tinha jeito, conhecia um
faixa em Porto. Depois falou que novinha não era tão legal, mas a gente
podia desbotar com queboa no tanque. Melhor desbotar sozinha
mesmo, só que levava tempo. Perguntei se a dele era desbotada de
queboa ou de tempo. Ele estava distraído, não ouviu. Tirou o maço de
Minister do bolso, perguntou se eu queria um. Falei que não, se o Pai
soubesse. Ele acendeu, jogou a fumaça pra cima, erguendo um pouco a
cabeça. De novo, eu pensei no leão de ouro. Acho que eu estava ficando
meio borracho com aquela cerveja toda, porque de repente fiquei outra
vez olhando sem conseguir parar o primo Alex sentado ali ao meu lado
na mesinha da calçada do bar. Ele parecia enorme, ele parecia
brilhante, ele parecia bonito. Sem fazer nenhum esforço pra parecer
nada, ele não era exibido. Acho que ele nem sabia direito o jeito que ele
mesmo era. Ficava ali sentado do meu lado como se fosse um cara
comum, fumando, bebendo cerveja e rindo de vez em quando pra mim.
Achei que todo mundo que passava e nas outras mesas ficava olhando
pra ele e pensando mas quem será esse moço. De repente me deu assim
como uma vaidade daquelas pessoas todas estarem me vendo ali, ao
lado dele, e aí aconteceu uma coisa maluca. Por um segundo, parei de
me sentir monstro.
Olhei para o meu braço na mesa. Meu braço um pouco fino
demais, moreno de sol. Mas parecia bonito também. Eu olhei a minha
mão morena, quase sem pêlos, depois levei ela até o cabelo e pensei que
podia deixar ele crescer um pouco, que nem o do primo Alex. E quando
levei a mão desse jeito na cabeça, percebi que as minhas costas
estavam muito curvadas para a frente, como se eu quisesse sempre
defender do mundo alguma coisa funda escondida no meu peito. Então
forcei os ombros para trás, e não estava me sentindo nem um pouco
monstro quando olhei de novo para o primo Alex e vi a lua cheia
subindo por trás da cabeça dele e do telhado da Taberna do Willy.
O garçom chamou ele de senhor quando perguntou se queria
outra cerveja. Ele tinha um jeito de quem sabe sentar num bar, aquele
jeito que eu ia ter um dia. Ele perguntou se eu também queria, eu disse
que sim, apesar de estar meio borracho. Ele encheu o meu copo até
transbordar. Enquanto eu passava o dedo na espuma, ele falou assim:
- A tia me contou que anda preocupada contigo. - Eu pensei que
saco, ela já andou enchendo os ouvidos dele, agora vai ficar dando
opinião, conselho e tudo. Mas ele não deixou eu dizer nada. Só falou: -
Ela diz que acha que tu anda muito sozinho. Que tu não tem nenhum
amigo.
Foi o que bastou. Quando ele falou isso - como num Shazam! ao
contrário, que ao invés do cara virar super, ficava ainda mais coió -, eu
comecei a me sentir monstro de novo. Coitado coitado coitado de mim,
pensei, o meu olho ficou cheio de lágrima de pura pena de mim mesmo,
todo troncho. Estava meio enjoado daquela cervejada toda, tive vontade
de me levantar e dizer que ia embora já pra casa. Aí o primo Alex disse:
- Falei pra ela que é da idade. Que passa. Que eu mesmo era
assim que nem tu, meio arisco. Mas passa, tu vai ver que passa.
Eu quase disse que tinha certeza que, comigo, não ia passar
nunca. Que ia ficar para sempre e até o fim do mundo assim pequeno,
pequeno monstro nojento, diferente de todas as outras pessoas, todo
mundo rindo baixinho, falando coisas quando eu passava. Mas ele
disse:
- Eu sou teu amigo.
Parei outra vez de me sentir monstro. Nunca ninguém tinha me
dito isso antes. Foi aí que as coisas começaram a acontecer muito
depressa, me deu vontade de rir, comecei a falar sem parar, ele
começou a falar sem parar também no curso dele de Medicina, nas
coisas todas que ia estudar, umas coisas da cabeça das pessoas, de
nome complicado, psico não sei o quê, nuns livros duns caras de nome
complicado também, duns discos, duns filmes, e disse que ia me dar
umas coisas pra mim ler, pra mim ouvir, pra mim gostar, e eu fiquei
pensando que não ia dar porque eu ficava o ano todo lá naquele
cafundó do Passo da Guanxuma e ele em Porto Alegre e perigava então,
até a gente não se ver nunca mais, e comecei a ficar triste, aí ele contou
que a Mãe tinha falado que andava pensando em me mandar estudar
em Porto Alegre, e primeiro me deu um baita cagaço, depois foi me
vindo uma coragem boa e uma alegria no coração, ia ser que nem filme,
andar de bonde sozinho do centro até o tal de Partenon, onde ele falou
que morava, e eu ia lá todo domingo de tardezinha, ficava no quarto
dele ouvindo na eletrola aqueles discos que ele disse que ia me mostrar,
eu com a minha calça lee igualzinha à dele, no começo desbotada de
queboa mesmo, depois desbotada do tempo, do sol, da chuva, e todo
mundo olhava quando a gente entrava junto no cinema e falavam
baixinho de um jeito diferente, porque eu não era mais monstro, só
porque a gente era bonito junto, só por isso falavam e apontavam, eu e
o primo Alex, caminhando de tardezinha por uma praça ou numa
calçada mesmo ali daquele lugar onde eu nunca tinha ido chamado
Partenon, e Partenon era quase tão bonito e longe quanto Sumatra,
Zanzibar, Uganda, e eu criei coragem e falei pra ele que queria ser
músico, fazer rock que nem o do Elvis, que eu sabia de cor uns
pedacinhos dumas músicas em inglês mesmo e ele cantou rindo it ‘s
now or never, só um pedaço, depois passou a mão no meu cabelo e
disse que eu tinha que deixar um topete crescer pra cair na testa
quando eu fizesse yeah remexendo as cadeiras, e só de sarro eu fiz yeah
yeah yeah, e ele morreu de rir e eu morri de rir também, e ele pediu
outra cerveja e eu acendi um cigarro e tossi tossi e ele bateu nas
minhas costas, as pessoas em volta olhavam, e ele começou a contar
que depois de formado ia viajar muito de navio pelo mundo inteiro, e eu
perguntei se Zanzibar também e ele morreu de rir de novo e falou que
sim, se eu queria ir junto com ele pra Zanzibar, lógico eu disse e fiquei
imaginando tudo enquanto ele contava que ia ser um grande médico
desses modernos que curam a cabeça dos outros pra deixar todo
mundo feliz o tempo todo pra sempre sem nenhuma culpa, ele disse, ele
era tão bonito, todo mundo em volta olhava, eu ria, ele ria, e a gente
estava ficando cada vez mais bêbado quando eu tentei levantar pra ir ao
banheiro e quase caí em cima da mesa. Então ele me segurou pelo
braço, e rindo sem parar falou que tava na hora de ir embora se não o
Pai e a Mãe iam ficar umas feras.
8
A gente só parou de rir no caminho da porta de casa até o
quarto, pro Pai e a Mãe não acordarem. Passado de meia-noite, Alex viu
no pulso. Ele acendeu a luz, se jogou na cama e continuou rindo. Eu
fechei a porta, me joguei ria cama e continuei rindo. Vez enquando a
gente olhava um pro outro e ria mais ainda. Um tempão assim, feito
dois mangolões. A barriga doía de tanto rir, eu falei que ia no banheiro
mijar e já voltava. Demorei um pouco, parecia que tinha bebido um
açude inteiro. Quando voltei, ele tinha tirado toda a roupa e estava
deitado de costas na cama. Tu vai te gripar, pensei em dizer. Só pensei,
em seguida vi que não tinha vento nem nada. E fui andando pra minha
cama enquanto olhava pra calça lee, a camisa banlon, o mocassim e a
cueca dele jogados no chão, sem saber direito o que fazer com a janela
aberta, a lua cheia e o primo Alex completamente pelado na cama ao
lado. Tentei não olhar pra ele. Mas ele olhava bem pra mim quando
falou estranho, como se o que quisesse dizer não fosse o que estava
dizendo:
- Tá muito quente, tu não acha?
- É - eu disse. E aí não consegui mais parar de olhar pra ele. Fui
ficando meio descarado e comecei a olhar mesmo, porque tinha vontade
e era bom de olhar. Desci os olhos pelo peito dele, acompanhando
aqueles pêlos que se amontoavam lá em cima, pouco embaixo do
pescoço, em volta das mamiquinhas cor-de-rosa, depois se estreitavam
enquanto desciam pela barriga e ficavam assim um fiozinho crespo, até
começarem a encrespar mais e a aumentar de novo, no meio das
pernas. Ele estava com a mão no meio das pernas, lá onde os pêlos
encrespavam mais.
- Eu te espiei dormindo hoje de tarde - contei.
- Eu vi - ele disse. - Eu não estava dormindo, eu estava batendo
punheta.
Me deu um vermelhão. Desviei os olhos para o livro de Tarzan, o
Invencível, na cabeceira. Em cima duma árvore, Tarzan apontava uma
flecha para um bwana falando com dois negros pigmeus na frente de
uma barraca. E se ele disparar a flecha? pensei.
- Tu já esporrou? - ele perguntou.
- Não - eu disse. - Nunca, nem sei como é que se faz.
- Quer que eu te ensine? - Estava rindo outra vez. Aquela cabeça
de leão de ouro, dentes muito brancos.
- Quero - eu disse.
Ele tirou a mão do meio das pernas, bateu na cama ao lado dele
e chamou:
- Senta aqui, eu te mostro como é. Tira a roupa e senta do meu
lado.
Tirei, joguei no chão, em cima da roupa dele. Depois sentei na
cama dele, só de cueca. Uma cueca feia, toda esbragalada, não era que
nem a dele. Ele suava um pouco. O cheiro de suor misturava com o de
um perfume que acho que era colônia de barba, mais o do jasmineiro
entrando pela janela aberta. Eu podia ouvir o tum-tum do meu coração
no peito. Ele estava bem perto de mim. Eu cruzei as pernas, de costas
para ele, de frente para a janela.
- Vira pra cá - ele pediu.
Estendeu a mão, tocou no meu joelho. Fui virando, até ficar de
frente pra ele. Ele sentou na cama, ficou de frente pra mim, cruzou as
pernas também. Ele encostou umas das mãos na minha coxa, depois foi
subindo e puxou devagarinho a minha cueca. Estendi a perna para que
ele pudesse tirar e jogar no chão, em cima das roupas dele e das
minhas. Agora eu também estava completamente nu, de pau tão duro
quanto o dele, eu tinha visto. Ele não escondia, não era feio. Quase
fiquei com vergonha, mas ele segurava os olhos dele bem dentro dos
meus, sem sorrir nem piscar. Ele levou a mão direita até o seu pau
duro, enquanto com a mão esquerda pegava a minha mão direita e
levava até o meu pau duro. Ele segurou meu braço, mexendo devagar
para que eu movimentasse para cima e para baixo, que nem ele fazia.
Ele era tão bonito. Ele se torceu e gemeu um pouco. Fechei os olhos: se
sair reto daqui sempre em frente vou dar na África, pensei idiota.
Aquela coisa querendo explodir vinha subindo de novo. Eu abri mais as
pernas, joguei o corpo para a frente. Ele chegou mais perto. Então
pegou outra vez no meu, braço, cuspiu na palma da minha mão e levou
até o pau dele. Ele cuspiu na palma da mão dele e levou até o meu pau.
Quente molhado rijo macio. A cama rangia. Eu cheguei ainda mais
perto. Aquela coisa crescia dentro de mim feito louca de atar, como se o
meu corpo fosse arrebentar e de dentro dele saíssem balões,
bandeirinhas coloridas de Santo Antônio, penduricalhos dourados de
árvore de Natal, confete e serpentina de Carnaval, sei lá que mais. Mais
depressa, ele disse. Mais depressa, vem junto. Parecia que a gente
estava sozinho só os dois num barco solto no mar no meio duma
tempestade. Sumatra Tantor Bukula Nikima, eu ia gritar alto quando
aquela coisa começou a se juntar dentro de mim feito uma onda que vai
se armando longe da praia enquanto a gente espera que ela venha ali
na beira sem me importar nem um pouco que o Pai e a Mãe ouvissem e
a vizinhança toda e a cidade inteira acordassem. Ele chegou ainda mais
perto. Eu colei meu peito no peito dele. Ele afundou a boca na minha
enquanto eu sentia a palma da minha mão aos poucos ficar molhada
daquele fio de prata brilhante que saía de dentro dele e sabia que de
dentro de mim saía também um fio de prata molhado brilhante igual ao
que saía de dentro dele.
Vem comigo, ele chamou. E eu fui.
Ele passou as mãos molhadas nas minhas costas. Eu passei as
mãos molhadas nas costas dele. Ele afastou a boca da minha, depois
deitou a cabeça no meu ombro. Meu coração batia batia, ele podia
ouvir. O suor da gente se misturava, O coração dele batia batia, escutei
quando deitei a cabeça no seu ombro. Eu fiquei passando as mãos nas
costas dele. Elas ficaram todas meladas da água de prata que ele tinha
me ensinado a tirar de dentro de mim. Ele não se importava de ficar
melado da água de mim. Eu também não me importava de ficar melado
da água dele. Nojo nenhum, eu sentia. Ele passou a língua na curva do
meu pescoço. Eu enrolei os dedos naquele triângulo de pêlos crespos na
cintura dele. Não sei quanto tempo durou. Sei que de repente a gente se
afastou e, olhando um pro outro, começamos a rir feito loucos outra
vez.
9
Bem cedo, na manhã seguinte, fomos à praia juntos. Ele me
ensinou a mergulhar e a boiar, eu apontei o horizonte e mostrei o
caminho da África, das Indias. Depois do almoço, no forno quente do
quarto coberto de zinco, ele me ensinou outros caminhos. Na hora de ir
embora, de tardezinha, ajudei ele a arrumar suas roupas. Mas não fui
até a rodoviária. Espiei da esquina, escondido. Depois corri pela calçada
atrás do ônibus, até que ele saísse na janela e gritasse alguma coisa
que não entendi direito. Parecia Zanzibar, Partenon, qualquer o coisa
assim. Ele ficou abanando até o ônibus fazer a curva, na polvadeira
vermelha da estrada de Osório.
À noite, fiquei procurando umas músicas no rádio. Nem Gardel
nem Elvis: encontrei Maísa, que o Pai disse que eu não tinha idade pra
ouvir. Depravada, falou, e eu não sabia o que isso queria dizer. Na hora
de dormir, a Mãe olhou bem pra mim e disse baixinho:
- Parece que tu está sentindo muita falta do Alex.
Eu falei que não. E não estava mentindo. Eu sabia que ele tinha
ficado para sempre comigo. Ela foi dormir, apaguei o rádio. Sozinho na
sala, em silêncio, eu não era mais monstro. Fiquei olhando minha mão
magra morena, quase sem pêlos. Eu sabia que o primo Alex tinha ficado
para sempre comigo. Guardado bem aqui, na palma da minha mão.

Ler mais »