DIÁRIO IX

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23 de maio
Quando se deseja realmente dizer alguma coisa, as palavras são inúteis. Remexo o cérebro e ela vêm, não rara, mas toneladas. Deixam sempre um gosto de poeira na boca — a poeira do que e tentava expressar, e elas dessolveram. Quanto mais palavras ocorrem para vestir uma idéia, mais essa idéia resiste a ser identificada. As sucessivas roupas sufocam a sua nudez. E todas as palavras são uma grande bolha de sabão, às vezes brilhante, mas circundando o vazio.
Ah, se eu pude se escrever com os olhos, com as mãos, com os cabelos — com todos esses arrepios estranhos que um entardecer de outono, como o de hoje, provoca na gente.
Escrevi isso pensando no passeio que dei hoje a tarde. Fui até a minha praça, na volta do Gasômetro, e é só la que encontro céu e rio à vontade, azuis, imensos, quase fundidos um com o outro. O céu e o rio vistos daqui da cidade são aváros, mostram pedacinhos pequenos, perdidos no meio dos edifícios. Parecem ter vergonha de se mostrar. Lá, não. Quase não há olhos para o verem, e então se expandem sem avareza nenhuma.
Acontecem coisas estranhas quando estou num espaço muito amplo. Uma vontade de voar, parece que bastaria abrir os braços para fundir-me com o céu. Ao mesmo tempo, dá vontade também de ficar na terra, e viver, viver muito, com todas as miudezas do cotidiano. Impressão de ser maior que tudo, sensação de força, certeza de vitória, vitória tão certa e fácil como a coisas da natureza que se mostram ali. E também uma grande humildade, consciência
de ser ínfimo em relação ao azul-azul do céu, ao azul-em-cor do rio. Procuro palavra para definir o que sinto e não encontro. Talvez elas nem sequer existam, talvez seja apenas um fluxo mais forte de vida abrindo os sentidos, embrutecendo o raciocínio.
Chorei ao chegar em casa, quando entrei no meu quarto e lembrei daquelas coisas todas, da natureza se oferecendo de um jeito que poderia ser obsceno, não fosse tão puro — e esbarrei com Edu na sala, dormindo, os pés nu e gordo, o jornal no chão. Fiquei perto da janela enquanto escurecia. É domingo, as ruas estão vazias. Não havia ninguém lá embaixo. De vez em quando passavam carros, mas parecia não haver pessoas dentro deles, como se fossem dirigidos por controle remoto. Parecia que estava chovendo.
Depois bateram à porta, chamaram para jantar. Levei muito tempo, de propósito, para lavar o rosto, e quando entrei na sala a mesa estava vazia. Todos me olharam, e não sei se havia susto ou amor ou censura em seus olhares. Sei que de repente me deu um enorme acesso de ternura, daquele jeito que já descrevi aqui uma vez. Pensei que, bons ou maus, eles são meus, me viram nascer, crescer, e me querem de uma maneira completa, como ninguém mais poderia me querer, porque eles me conhecem. Como se soubessem mais de mim do que eu mesmo, e tive a sensação de estar nu.
Fui até a cozinha, mamãe foi atrás, tirou meu prato do forno. Colocou-o na minha frente, tirou um guardanapo da gaveta, arrumou os talheres, perguntou se eu queria do vinho que Edu havia comprado. E de repente decidi ser bom com ela. Eu quis dizer alguma coisa, mas ela voltou para a sala. Enquanto comia, fiquei ouvindo a voz dela contando coisas à tia Clotilde, enquanto Edu ria muito alto.
Agora estou aqui, escrevendo. Continuo a ouvir as vozes deles, não sei se só na imaginação ou se falam ainda, lá na sala.
Quero mudar a minha vida. Tenho dezenove anos, é tempo de fazer alguma coisa. Talvez eu tenha medo demais, e isso chama-se covardia. Fico me perdendo em páginas de diário, em pensamentos e temores, e o tempo vai passando. Covardia é uma palavra feia. Receio de enfrentar a vida cara a cara. Descobri que não me busco ou, se me busco, é sem vontade nenhuma de me achar, mudando de caminho cada vez que percebo uma luz. Fuga, o tempo
todo fuga, intercalada por períodos de reconhecimento. Suavizada às vezes, mas sempre fuga.
Quero ser eu mesmo. Será difícil? Com tudo de mau que isso possa trazer. Mesmo não sendo mau, fácil não será, mas estou disposto a correr o risco. É preciso agora concretizar a idéia: tirá-la dos limites do pensamento, arrancá-la apenas do papel e torná-la um pedaço de mim, decisão cravada no corpo. Não sei como fazer, por onde começar, mas sei que o farei. Hoje, amanhã ou depois. De uma vez só ou pouco a pouco, eu o farei.
Parei de escrever, fui até a janela, voltei. A cidade vazia. A ruas lavadas dão a impressão de que vai acontecer alguma coisa. Não sei o que seria. Por isso mesmo me assusta e, ao mesmo tempo, fascina.
Conversam ainda na sala. Não era só imaginação. As minhas pernas doem. Vou dormir.

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