METAIS ALCALINOS

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Não sabia dominar um privilégio. E metais alcalinos eram os metais do subgrupo I e subgrupo IA da classificação periódica dos elementos: lítio, sódio potássio, rubídio e césio. Era isso, permitiu-se enquanto os alunos copiavam rápidos. Observou os três rostos confiantes enquanto ditava, e uma liberdade até então ignorada, a consciência dessa liberdade aflorou, pois que podia pensar e falar ao mesmo tempo, independente do pensamento ser a palavra ou da palavra ser o pensamento. Os olhos azuis pintados da menina de quatorze anos desfilavam pela tampa escura da mesa, mas isso tornava a sua liberdade quase grosseira. Não, grosseira não. Desonesta, isso. Apalpou de leve a palavra e acumulou contradições que, por assim dizer, cerceavam a sua capacidade de pensar e não-dizer, ou vice-versa. Mas mal suportando a alegria da descoberta, imediatamente pensou em dispensar os alunos e entregar-se. Entregar-se a que, homem de deus? agrediu-se quase ríspida, pois. Era preciso adequar -adequar uma necessidade íntima a uma necessidade externa? Então estendeu a tabela para que copiassem. E uniu braços e pernas num movimento de quem se levanta. Cortado em meio, o gesto prendeu-o ao lugar que ocupava. Do lugar que ocupava, o campo de visão era restrito: as cabeças baixas dos três alunos, lado alado, a parede por trás. A parede branca, as cabeças escuras, concentradas. A janela, à esquerda. E o gato. Sempre aquele enorme gato branco sobre o muro do vizinho.
Seguiu atrás do primeiro pensamento, mas não conseguiu recordar. A lucidez vinha sempre assim tão rápida e ofuscante que vivia toda uma vida naquela brevidade, sem deixar marcas, era isso? Era. A existência da lucidez era talvez longa para a lucidez, compreende? aquele menos que um segundo, menos que um grito ou uma iluminação, menos que qualquer coisa que atinja os sentidos -aquilo, pois não havia uma palavra exata para defini-lo, aquilo cumpria a necessidade da coisa. Mas a sua necessidade era mais ampla, reconheceu, por isso não se encontravam, em termos de tempo, a sua necessidade era mais ampla, não que tivesse um raciocínio difícil, mas porque havia todo um processo de despir-se de conceitos anteriores, de barreiras e resistências, para poder compreender. Isso levava horas. Levava horas o despir-se.
Que mais, professor. Os olhos pintados e a exigência da menina de quatorze anos. Estamos no começo, estamos no começo, repetiu várias vezes até reassumir-se. Em tudo precisava de tempo, muito tempo para que as coisas fossem bem-feitas, e não houvesse, não houvesse... Ditou pausado um exercício, não, não havia perigo de ser surpreendido. Os três alunos eram informes em seus invólucros de adolescente. Toda uma estrutura ainda não solidificada, imprecisa, hesitante. Uma natureza que, por incompreensão ou falta de meios para atingir a compreensão, recusava medrosa qualquer aproximação: não lucrariam nada em surpreendê-lo. E mesmo que, independentemente de suas três vontades, o conseguissem, seria só uma coisa brusca e meio espástica como eles próprios -não saberiam o que fazer daquilo e iriam embora sem formular. Era essa a raiz aos poucos ele se sorria, entendendo os próprios processos. Não saberiam formular. E não saber formular uma coisa compreendida é o mesmo que não compreender. Pelo menos para aqueles três, limitou rápido, pois tinha medo de qualquer afirmação. Como explicar a eles que uma coisa pode trazer no seu ser o seu próprio não-ser, ao mesmo tempo e, desculpem, con-co-mi-tan-te-men-te, eles não compreenderiam, e não havia interesse em explicar-lhes, não havia nem mesmo interesse em observá-los: nenhum deles continuaria sendo o que agora era. Aqueles três corpos descobririam de repente a sua força oculta, e apoiados nessa força é que se construiriam em massas sólidas, bem delineadas. Por enquanto, os contornos apenas ameaçavam. Ninguém poderia impor uma definição antes dessa definição impor-se por si mesma: seria como tentar forçar uma natureza a ser aquilo que ela só seria se quisesse.
Era verdade, não sabia dominar um privilégio. Mais além, não sabia dominar. Imediatamente após uma descoberta, um reconhecimento de força, impunha-se uma alegria tão descontrolada que o próximo passo seria um rompimento do processo. Não um concretizar, mas uma destruição. Curvou o corpo, tentando segurar, segurar, segurar. Conseguia. Mas precisava voltar atrás para sintetizar tudo. O processo natural: um reconhecimento de força sobre alguma coisa, o emprego da força sobre essa coisa e as conseqüentes vantagens -era isso? O processo interrompido: um reconhecimento de força sobre alguma coisa, a alegria frenética que isso lhe dava e a destruição não só da força em relação à coisa, mas da força em relação a si mesma, isto é, da própria força. Entendo, suspirou exausto. E olhou o gato lá fora. Mas olhar o gato cansava. Não tinha nada a ver com aquela existência, a menos que começasse a elaborar uma aproximação através de gestos e palavras cotidianos. Havia ainda outro ponto: era preciso descobrir se a força agindo sobre a coisa lhe daria alguma vantagem. Ou desvantagem. Ou nem mesmo vantagem nem desvantagem: nada. Se agisse sobre o gato, o gato lhe daria algo? Algo além do calor de seus pêlos, da dissimulação implícita em seus olhos verdes, do roçar em suas pernas, talvez uma unhada ocasional? O gato não lhe daria nem isso, daria apenas isso ou mais que isso? Mas a menos que tornasse o gato numa coisa que o gato não era, não teria nada.
Os olhos azuis pintados da menina de quatorze anos. Estava certa, sim. Quase mulher, a menina olhou vitoriosa sobre os dois rapazes, ainda curvados sobre a mesa, em cálculos e testas franzidas. Nesse silêncio criado pelo que a menina chamaria, secreta e despudorada, de: uma superioridade -nesse silêncio, era preciso dizer alguma coisa. Então disse estou com um pouco de dor de cabeça. Ah, sim, tenho um comprimido na minha bolsa. Aceitou o comprimido, colocou-o na boca. Sem água? , perguntou a menina. É, sem água. Engoliu. Com isso permitia-se uma extravagância, e a menina provavelmente diria a seus pais na hora do jantar: imaginem, o professor toma comprimidos sem água. E além de ser um professor, passaria a ser também um professor que tomava comprimidos sem água. O que não deixava de ser uma intromissão na sua intimidade. Tentou reassumir a postura omissa, mas os olhos azuis pintados da menina olharam-no dum jeito que seria o mesmo se ela não tivesse olhos azuis pintados. E sorriram, os olhos sorriram, por sobre a boca imóvel. Eu não permito, pensou ele, e deu as costas à menina. Anoitecia, a necessidade de acender a luz concedia um gesto no momento exato.
Acendeu a luz. As coisas tornadas mais claras feriram por um momento. Pareciam os três mais firmes, mais precisos e o sorriso, o sorriso era perigoso. No entanto, as coisas se acumulavam para salvá-lo: os dois rapazes estenderam os cadernos ao mesmo tempo e, ainda bem, um dos exercícios estava errado. O lítio, o sódio e o potássio são os únicos metais menos densos que a água, esclareceu, e o rapaz fez ah! a voz tremida como numa emoção. Olhou-o com curiosidade. O rapaz tremeu mais ainda. Era o mais vago dos três. E por ser o mais vago, justamente o mais perigoso, pois a sua precisão poderia explodir súbita, não anunciada por sinais externos: a sua neblina não permitia uma exploração cuidadosa, e ele podia vir a ser finalmente o que todos temiam. Mas o outro, o outro, procurou amedrontado com os olhos. Ah, o outro tinha pômulos salientes que esticavam a pele dominando todos os movimentos, o outro tinha uma cara lisa, limpa, de pômulos salientes, e o professor não conseguia ir além do rosto sem espinhas, arado. Inesperado olhou os três e não conteve um desespero varrendo pensamento. Disse assim bruto por hoje estamos prontos e, de repente, o professor chorou.

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