DIÁRIO V

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19 de maio
Ontem eu estava tão deprimido que consegui escrever apenas meia página aqui. Mas acho que disse tudo que eu sentia, tudo que me fazia triste. Escrever mais não teria sido um consolo, porque sei que o motivo deste diário é unicamente solidão e, quando ela não mais existir, o diário também não mais existirá. Escrever, ontem, teria sido como se a solidão ficasse ainda mais clara. Cada linha que eu vencesse, cada página branca seria essa solidão gritada em todas as palavras escritas, fossem elas quais fossem: “Tu estás só, tu estás só. “Hoje não me sinto menos só, apenas menos triste. Por isso tenho vontade de escrever. Escrever muito.
Sexo. Preciso escrever sobre isso. É verdade que hesito, a própria palavra sugere coisas escondidas, vergonhosas, parece que o diário vai-se tornar ainda mais secreto. Sei que isso é uma grande bobagem, e me envergonho, e luto. Mas ainda tenho na memória tudo que ouvi na infância. Sexo era coisa suja, parece fazer somente à noite, de preferência pela madrugada, quando o silêncio é maior, e sempre debaixo das cobertas, no escuro. Não tive nenhuma orientação, nenhuma educação nesse sentido. O que aprendi foi através da boca não muito limpo dos colegas de aula, dos livro de anatomia folheados na biblioteca. Mesmo quando vi Laurinda e Zeca, não consegui compreender exatamente o que era aquilo. Parecia engraçado e, ao mesmo tempo, terrivelmente excitante. Agora, depois de tanto tempo, lendo e pensando sobre isso, fui desmistificando um pouco o negócio. Mesmo assim, a palavra ainda me deixa de ouvidos em pé — uma coisa independente de minha vontade. Acho que são sobras da infância, da educação (ou falta de) que recebi. Mas continuo sem saber como lidar com isso.
Marlene diz que sexo é urna coisa natural, e deve ser feito como se troca um beijo, e aperta a mão de alguém ou se dá um abraço. Duas pessoas
gozando uma com o corpo da outra. Cada uma toma emprestado da outra aquilo que lhe falta para a satisfação, e por um instante se completam. Eu gostaria de pensar assim. No mínimo, é uma boa maneira de não sofrer por causa disso. Mas não consigo, não sei se pela minha formação, ou se por estreiteza de pensamento. Acho animalesco demais que uma pessoa sirva apenas de receptáculo ao esperma de outra. Talvez eu esteja me libertando do “mito do vergonhoso” para passar ao “mito do sublime”, pode ser. Mas acho que deveria haver outras coisas além do desejo nu e simples, o desejo apenas da carne de outra pessoa. Se não há nada afora isso, satisfeita a carne, vem o nojo. Tive duas experiências. Desastrosas. A primeira, fiquei completamente indiferente. Longe. Decepcionado. Provavelmente porque havia cercado aquilo de um enorme mistério. Na aula, ficava olhando com ar maravilhado para os colegas que “já sabiam o que era “. Eu os dividia em dois grupos — o do que “já sabiam” e o dos que “ainda não sabia”. Claro, eu fazia parte desses últimos. Queria sair do meio dele. Os outros pareciam muito seguros em tudo que diziam ou faziam. Fumavam, diziam coisas que eu não entendia bem, mas que admirava porque partiam deles, e na segunda-feira sempre chegavam ao colégio ainda mais inatingíveis, contando a experiência da “caçada” do fim de semana. Fiz amizade com um deles e, a partir de um sábado passei a integrar a turma dos sabidos. Às vezes, agora, penso que nem eles mesmos confessavam a si próprios a decepção que sentiam. A mulher era limpa, mas meio velha, mostrava a falha de um dente quando sorria e tinha um cachorrinho de pelúcia cor-de-rosa em cima da cama. Na hora de deitar, ela atirou num canto o cachorrinho, e foi isso que fiquei olhando. O jeito dele, atirado, as perna viradas para o ar, orelhas caída. Eu tentei fechar o olhos e imaginar Anna Karina, mas não consegui. Foi uma coisa seca, ardida.
Na segunda vez, tive nojo. Quando abri os olhos, era um quartinho sórdido, um cheiro estranho, de esperma antigo, flutuando no ar, uma mulher que eu não conhecia falando com voz rouca e pedindo um cigarro que eu não tinha. Vomitei, depois. E ainda não houve uma terceira vez.
E quando houver— eu queria tanto conhecer alguém. Talvez o tempo traga uma pessoa, uma pessoa especial. Talvez eu resolva isso ao poucos,
sem sentir, depois de resolver a mim mesmo. Talvez eu esteja demasiado perto da adolescência ainda — dentro dela, até — e seja difícil, por enquanto, me libertar de todas as idiotices que ouvi. Me masturbo, às vezes, mas sempre sinto culpa, depois. E imagino certas coisas que não me atrevo a escrever aqui. Faz frio hoje. O inverno está chegando. Estranho, o inverno sempre me deixa um pouco mais profundo. Me volto para dentro de mim mesmo, tenho a impressão exata de que me pareço com um dos plátanos da praça aí de baixo: hirto, seco, mas guardando alguma coisa por dentro. Quem sabe se essa tristeza que tenho, tão parecida com esse frio envergonhado de não ser frio — quem sabe, se não é apenas o derrubar das folhas? Os plátanos também as perdem, uma por uma, e o chão em volta fica todo dourado, até ficarem completamente nus. Depois, em setembro, as folhas começam a voltar. Mais novas, mais verdes. Gosto de plátanos, gosto de folhas. Gosto de tudo o que ameaça morrer e de repente se levanta, mais vivo ainda, surpreendendo a todos. Papai está na fazenda. Não é difícil imaginá-lo lá, é seu ambiente natural. Ele só fica ele mesmo quando está no meio do campo, ou dentro daquele casarão branco enorme. Gosta das salas quase vazias de móveis, da camas rústicas, da luz dos lampiões — daquele silêncio quase angustiante que o anoitecer traz, quando os bois começam a mugir e a voltar para perto da casa. Aqui ele se sente como se sentiria uma bota velha e gasta numa vitrine, ao lado de sapatos finos. Para estarem paz precisa ter ao redor dele coisas também um pouco velhas, um pouco gastas e usadas da fazenda. A fazenda é um sapateiro que periodicamente conserta a bota. E ela torna a voltar à vitrine, mais uma vez tenta adaptar-e, ma precisa sempre voltar ao sapateiro. Talvez esteja velha demais, inconcertável. Jamais fará parte da vitrine.
De repente senti vontade de fumar. Já fumei durante algum tempo, depois deixei. O que eu mais gostava não era do cigarro, era do gesto. Eu me sentia mais seguro, mais adulto, quando fumava. Não sei bem porque deixei. Agora o que me falta é novamente o gesto. Um gesto qualquer para encher este momento. Um gesto ou uma palavra. Posso cantar, mas não vai adiantar nada. A voz é minha e me irrita, a palavras são de canções que já conheço, e
me aborrecem. E gesto — só o de abrir um livro e ler, ou o de fechar este caderno. Falta, falta alguma coisa que não sei o que é.

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