OS DRAGÕES NÃO CONHECEM O PARAÍSO
Para
Marion Frank,
lembrando os dragões de
Alex Flemming
“Por ver com muita clareza as causas e os efeitos,
ele completa, no tempo certo, as seis etapas
e sobe no momento adequado rumo aos céus, c
omo que conduzido por seis dragões.”
(Ch‘ien, O Criativo: I Ching, o Livro das Mutações)
TENHO um dragão que mora comigo.
Não, isso não é verdade.
Não tenho nenhum dragão. E, ainda que tivesse, ele não moraria
comigo nem com ninguém. Para os dragões, nada mais inconcebível que
dividir seu espaço - seja com outro dragão, seja com uma pessoa banal
feito eu. Ou invulgar, como imagino que os outros devam ser. Eles são
solitários, os dragões. Quase tão solitários quanto eu me encontrei,
sozinho neste apartamento, depois de sua partida. Digo quase porque,
durante aquele tempo em que ele esteve comigo, alimentei a ilusão de
que meu isolamento para sempre tinha acabado. E digo ilusão porque,
outro dia, numa dessas manhãs áridas da ausência dele, felizmente
cada vez menos freqüentes (a aridez, não a ausência), pensei assim: Os
homens precisam da ilusão do amor da mesma forma como precisam da
ilusão de Deus. Da ilusão do amor para não afundarem no poço horrível
da solidão absoluta; da ilusão de Deus, para não se perderem no caos
da desordem sem nexo.
Isso me pareceu grandiloqüente e sábio como uma idéia que não
fosse minha, tão estúpidos costumam ser meus pensamentos. E tomei
nota rapidamente no guardanapo do bar onde estava. Escrevi também
mais alguma coisa que ficou manchada pelo café. Até hoje não consigo
decifrá-la. Ou tenho medo da minha - felizmente indecifrável - lucidez
daquele dia.
Estou me confundindo, estou me dispersando.
O guardanapo, a frase, a mancha, o medo - isso deve vir mais
tarde. Todas essas coisas de que falo agora - as particularidades dos
dragões, a banalidade das pessoas como eu -, só descobri depois. Aos
poucos, na ausência dele, enquanto tentava compreendê-lo. Cada vez
menos para que minha compreensão fosse sedutora a ponto de
convencê-lo a voltar, e cada vez mais para que essa compreensão
ajudasse a mim mesmo a. Não sei dizer. Quando penso desse jeito,
enumero proposições como: a ser uma pessoa menos banal, a ser mais
forte, mais seguro, mais sereno, mais feliz, a navegar com um mínimo
de dor. Essas coisas todas que decidimos fazer ou nos tornar quando
algo que supúnhamos grande acaba, e não há nada a ser feito a não ser
continuar vivendo.
Então, que seja doce. Repito todas as manhãs, ao abrir as
janelas para deixar entrar o sol ou o cinza dos dias, bem assim: que
seja doce. Quando há sol, e esse sol bate na minha cara amassada do
sono ou da insônia, contemplando as partículas de poeira soltas no ar,
feito um pequeno universo, repito sete vezes para dar sorte: que seja
doce que seja doce que seja doce e assim por diante. Mas, se alguém me
perguntasse o que deverá ser doce, talvez não saiba responder. Tudo é
tão vago como se fosse nada.
Ninguém perguntará coisa alguma, penso. Depois continuo a
contar para mim mesmo, como se fosse ao mesmo tempo o velho que
conta e a criança que escuta, sentada no colo de mim. Foi essa a
imagem que me veio hoje pela manhã quando, ao abrir a janela, decidi
que não suportaria passar mais um dia sem contar esta história de
dragões. Consegui evitá-la até o meio da tarde. Dói, um pouco. Não
mais uma ferida recente, apenas um pequeno espinho de rosa, coisa
assim, que você tenta arrancar da palma da mão com a ponta de uma
agulha. Mas, se você não consegue extirpá-lo, o pequeno espinho pode
deixar de ser uma pequena dor para transformar-se numa grande
chaga.
Assim, agora, estou aqui. Ponta fina de agulha equilibrada entre
os dedos da mão direita, pairando sobre a palma aberta da mão
esquerda. Algumas anotações em volta, tomadas há muito tempo, o
guardanapo de papel do bar, com aquelas palavras sábias que não
parecem minhas e aquelas outras, manchadas, que não consigo ou não
quero ou finjo não poder decifrar.
Ainda não comecei.
Queria tanto saber dizer Era uma vez. Ainda não consigo. Mas
preciso começar de alguma forma. E esta, enfim, sem começar
propriamente, assim confuso, disperso, monocórdio, me parece um jeito
tão bom ou mau quanto qualquer outro de começar uma história.
Principalmente se for uma história de dragões. Gosto de dizer tenho um
dragão que mora comigo, embora não seja verdade. Como eu dizia, um
dragão jamais pertence a nem mora com alguém. Seja uma pessoa
banal igual a mim, seja unicórnio, salamandra, harpia, elfo,
hamadríade, sereia ou ogro. Duvido que um dragão conviva melhor com
esses seres mitológicos, mais semelhantes à natureza dele, do que com
um ser humano. Não que sejam insociáveis. Pelo contrário, às vezes um
dragão saber ser gentil e submisso como uma gueixa. Apenas, eles não
dividem seus hábitos. Ninguém é capaz de compreender um dragão.
Eles jamais revelam o que sentem. Quem poderia compreender, por
exemplo, que logo ao despertar (e isso pode acontecer em qualquer
horário, às três da tarde ou às onze da noite, já que o dia e a noite deles
acontecem para dentro, mas é mais previsível entre sete e nove da
manhã, pois essa é a hora dos dragões) sempre batem a cauda três
vezes, como se estivessem furiosos, soltando fogo pelas ventas e
carbonizando qualquer coisa próxima num raio de mais de cinco
metros? Hoje, pondero: talvez seja essa a sua maneira desajeitada de
dizer, como costumo dizer agora, ao despertar - que seja doce.
Mas no tempo em que vivia comigo, eu tentava - digamos -
adaptá-lo às circunstâncias. Dizia por favor, tente compreender,
querido, os vizinhos banais do andar de baixo já reclamaram da sua
cauda batendo no chão ontem às quatro da madrugada. O bebê
acordou, disseram, não deixou ninguém mais dormir. Além disso,
quando você desperta na sala, as plantas ficam todas queimadas pelo
seu fogo. E, quando você desperta no quarto, aquela pilha de livros vira
cinzas na minha cabeceira.
Ele não prometia corrigir-se. E eu sei muito bem como tudo isso
parece ridículo. Um dragão nunca acha que está errado. Na verdade,
jamais está. Tudo que faz, e que pode parecer perigoso, excêntrico ou no
mínimo mal-educado para um humano igual a mim, é apenas parte
dessa estranha natureza dos dragões. Na manhã, ira tarde ou na noite
seguintes, quando ele despertasse outra vez, novamente os vizinhos
reclamariam e as prímulas amarelas e as begônias roxas e verdes, e
Kafka, Salinger, Pessoa, Clarice e Borges a cada dia ficariam mais
esturricados. Até que, naquele apartamento, restássemos eu e ele entre
as cinzas. Cinzas são como seda para um dragão, nunca para um
humano, porque a nós lembram destruição e morte, não prazer. Eles
trafegam impunes, deliciados, no limiar entre essa zona oculta e a mais
mundana. O que não podemos compreender, ou pelo menos aceitar.
Além de tudo: eu não o via. Os dragões são invisíveis, você sabe.
Sabe? Eu não sabia. Isso é tão lento; tão delicado de contar - você ainda
tem paciência? Certo, muito lógico você querer saber como, afinal, eu
tinha tanta certeza da existência dele, se afirmo que não o via. Caso
você dissesse isso, ele riria. Se, como os homens e as hienas, os dragões
tivessem o dom ambíguo do riso. Você o acharia talvez irônico, mas ele
estaria impassível quando perguntasse assim: mas então você só
acredita naquilo que vê? Se você dissesse sim, ele falaria em unicórnios,
salamandras, harpias, hamadríades, sereias e ogros. Talvez em fadas
também, orixás quem sabe? Ou átomos, buracos negros, anãs brancas,
quasars e protozoários. E diria, com aquele ar levemente pedante:
“Quem só acredita no visível tem um mundo muito pequeno. Os dragões
não cabem nesses pequenos mundos de paredes invioláveis para o que
não é visível”.
Ele gostava tanto dessas palavras começadas por in - invisível,
inviolável, incompreensível -, que querem dizer o contrário do que
deveriam. Ele próprio era inteiro o oposto do que deveria ser. A tal
ponto que, quando o percebia intratável, para usar uma palavra que ele
gostaria, suspeitava-o ao contrário: molhado de carinho. Pensava às
vezes em tratá-lo dessa forma, pelo avesso, para que fôssemos mais
felizes juntos. Nunca me atrevi. E, agora que se foi, é tarde demais para
tentar requintadas harmonias.
Ele cheirava a hortelã, a alecrim. Eu acreditava na sua
existência por esse cheiro verde de ervas esmagadas dentro das duas
palmas das mãos. Havia outros sinais, outros augúrios. Mas quero me
deter um pouco nestes, nos cheiros, antes de continuar. Não acredite se
alguém, mesmo alguém que não tenha um mundo pequeno, disser que
os dragões cheiram a cavalos depois de uma corrida, ou à cachorros das
ruas depois da chuva. A quartos fechados, mofo, frutas podres, peixe
morto e maresia - nunca foi esse o cheiro dos dragões.
A hortelã e alecrim, eles cheiram. Quando chegava, o
apartamento inteiro ficava impregnado desse perfume. Até os vizinhos,
aqueles do andar de baixo, perguntavam se eu andava usando incenso
ou defumação. Bem, a mulher perguntava. Ela tinha uns olhos azuis
inocentes. O marido não dizia nada, sequer me cumprimentava. Acho
que pensava que era uma dessas ervas de índio que as pessoas
costumam fumar quando moram em apartamentos, ouvindo música
muito alto. A mulher dizia que o bebê dormia melhor quando esse
cheiro começava a descer pelas escadas, mais forte de tardezinha, e que
o bebê sorria, parecendo sonhar. Sem dizer nada, eu sabia que o bebê
devia sonhar com dragões, unicórnios ou salamandras, esse era um
jeito do seu mundo ir-se tornando aos poucos mais largo. Mas os bebês
costumam esquecer dessas coisas quando deixam de ser bebês, embora
possuam a estranha facilidade de ver dragões - coisa que só os mundos
muito largos conseguem.
Eu aprendi o jeito de perceber quando o dragão estava a meu
lado. Certa vez, descemos juntos pelo elevador com aquela mulher de
olhos-azuis-inocentes e seu bebê, que também tinha olhos-azuisinocentes.
O bebê olhou o tempo todo para mim. Depois estendeu as
mãos para o meu lado esquerdo, onde estava o dragão. Os dragões
param sempre do lado esquerdo das pessoas, para conversar direto com
o coração. O ar a meu lado ficou leve, de uma coloração vagamente
púrpura. Sinal que ele estava feliz. Ele, o dragão, e também o bebê, e
eu, e a mulher, e a japonesa que subiu no sexto andar, e um rapaz de
barba no terceiro. Sorríamos suaves, meio tolos, descendo juntos pelo
elevador numa tarde que lembro de abril - esse é o mês dos dragões -
dentro daquele clima de eternidade fluida que apenas os dragões, mas
só às vezes, sabem transmitir.
Por situações como essa, eu o amava. E o amo ainda, quem sabe
mesmo agora, quem sabe mesmo sem saber direito o significado exato
dessa palavra seca - amor. Se não o tempo todo, pelo menos quando
lembro de momentos assim. Infelizmente, raros. A aspereza e o avesso
parecem ser mais constantes na natureza dos dragões do que a leveza e
o direito. Mas queria falar de antes do cheiro. Havia outros sinais, já
disse. Vagos, todos eles.
Nos dias que antecediam a sua chegada, eu acordava no meio da
noite, o coração disparado. As palmas das mãos suavam frio. Sem saber
por que, nas manhãs seguintes, compulsivamente eu começava a
comprar flores, limpar a casa, ir ao supermercado e à feira para encher
o apartamento de rosas e palmas e morangos daqueles bem gordos e
cachos de uvas reluzentes e beringelas luzidias (os dragões, descobri
depois, adoram contemplar berinjelas) que eu mesmo não conseguia
comer. Arrumava em pratos, pelos cantos, com flores e velas e fitas,
para que o espaço ficasse mais bonito.
Como uma fome, me dava. Mas uma fome de ver, não de comer.
Sentava na sala toda arrumada, tapete escovado, cortinas lavadas,
cestas de frutas, vasos de flores - acendia um cigarro e ficava
mastigando com os olhos a beleza das coisas limpas, ordenadas, sem
conseguir comer nada com a boca, faminto de ver. À medida que a casa
ficava mais bonita, eu me tornava cada vez mais feio, mais magro,
olheiras fundas, faces encovadas. Porque não conseguia dormir nem
comer, à espera dele. Agora, agora vou ser feliz, pensava o tempo todo
numa certeza histérica. Até que aquele cheiro de alecrim, de hortelã,
começasse a ficar mais forte, para então, um dia, escorregar que nem
brisa por baixo da porta e se instalar devagarinho no corredor de
entrada, no sofá da sala, no banheiro, na minha cama. Ele tinha
chegado.
Esses ritmos, só descobri aos poucos. Mesmo o cheiro de hortelã
e alecrim, descobri que era exatamente esse quando encontrei certas
ervas numa barraca de feira. Meu coração disparou, imaginei que ele
estivesse por perto. Fui seguindo o cheiro, até me curvar sobre o
tabuleiro para perceber: eram dois maços verdes, a hortelã de folhinhas
miúdas, o alecrim de hastes compridas com folhas que pareciam
espinhos, mas não feriam. Perguntei o nome, o homem disse, eu não
esqueci. Por pura vertigem, nos dias seguintes repetia quando sentia
saudade: alecrim hortelã alecrim hortelã alecrim...
Antes, antes ainda, o pressentimento de sua visita trazia
unicamente ansiedade, taquicadias, aflição, unhas roídas. Não era bom.
Eu não conseguia trabalhar, ir ao cinema, ler ou afundar em qualquer
outra dessas ocupações banais que as pessoas como eu têm quando
vivem. Só conseguia pensar em coisas bonitas para a casa, e em ficar
bonito eu mesmo para encontrá-lo. A ansiedade era tanta que eu
enfeiava, à medida que os dias passavam. E, quando ele enfim chegava,
eu nunca tinha estado tão feio. Os dragões não perdoam a feiúra.
Menos ainda a daqueles que honram com sua rara visita.
Depois que ele vinha, o bonito da casa contrastando com o feio
do meu corpo, tudo aos poucos começava a desabar. Feito dor, não
alegria. Agora agora agora vou ser feliz, eu repetia: agora agora agora. E
forçava os olhos pelos cantos para ver se encontrava pelo menos o
reflexo de suas escamas de prata esverdeadas, luz fugidia, a ponta em
seta de sua cauda pela fresta de alguma porta ou a fumaça de suas
narinas, cujas cores mudavam conforme seu humor. Que era quase
sempre mau, e a fumaça, negra. Naqueles dias, enlouquecia cada vez
mais, querendo agora já urgente ser feliz. Percebendo minha ânsia, ele
tornava-se cada vez mais remoto. Ausentava-se, retirava-se, fingia
partir. Rarefazia seu cheiro de ervas até que não passasse de uma
suspeita verde no ar. Eu respirava mais fundo, perdia o fôlego no
esforço de percebê-lo, dia após dia, enquanto flores e frutas apodreciam
nos vasos, nos cestos, nos cantos. Aquelas mosquinhas negras miúdas
esvoaçavam em volta delas, agourentas.
Tudo apodrecia mais e mais, sem que eu percebesse, doído do
impossível que era tê-lo. Atento somente à minha dor, que apodrecia
também, cheirava mal. Então algum dos vizinhos batia à porta para
saber se eu tinha morrido e sim, eu queria dizer, estou apodrecendo
lentamente, cheirando mal como as pessoas banais ou não cheiram
quando morrem, à espera de uma felicidade que não chega nunca. Eles
não compreenderiam, ninguém compreenderia. Eu não compreendia,
naqueles dias - você compreende?
Os dragões, já disse, não suportam a feiúra. Ele partia quando
aquele cheiro de frutas e flores e, pior que tudo, de emoções
apodrecidas tornava-se insuportável. Igual e confundido ao cheiro da
minha felicidade que, desta e mais uma vez, ele não trouxera. Dormindo
ou acordado, eu recebia sua partida como um súbito soco no peito.
Então olhava para cima, para os lados, à procura de Deus ou qualquer
coisa assim - hamadríades, arcanjos, nuvens radioativas, demônios que
fossem. Nunca os via. Nunca via nada além das paredes de repente tão
vazias sem ele.
Só quem já teve um dragão em casa pode saber como essa casa
parece deserta depois que ele parte. Dunas, geleiras, estepes. Nunca
mais reflexos esverdeados pelos cantos, nem perfume de ervas pelo ar,
nunca mais fumaças coloridas ou formas como serpentes espreitando
pelas frestas de portas entreabertas. Mais triste: nunca mais nenhuma
vontade de ser feliz dentro da gente, mesmo que essa felicidade nos
deixe com o coração disparado, mãos úmidas, olhos brilhantes e aquela
fome incapaz de engolir qualquer coisa. A não ser o belo, que é de ver,
não de mastigar, e por isso mesmo também uma forma de desconforto.
No turvo seco de uma casa esvaziada da presença de um dragão,
mesmo voltando a comer e a dormir normalmente, como fazem as
pessoas banais, você não sabe mais se não seria preferível aquele
pantanal de antes, cheio de possibilidades - que não aconteciam, mas
que importa? - a esta secura de agora. Quando tudo, sem ele, é nada.
Hoje, acho que sei. Um dragão vem e parte para que seu mundo
cresça? Pergunto - porque não estou certo - coisas talvez um tanto
primárias, como: um dragão vem e parte para que você aprenda a dor
de não tê-lo, depois de ter alimentado a ilusão de possuí-lo? E para,
quem sabe, que os humanos aprendam a forma de retê-lo, se ele um dia
voltar?
Não, não é assim. Isso não é verdade.
Os dragões não permanecem. Os dragões são apenas a
anunciação de si próprios. Eles se ensaiam eternamente, jamais
estréiam. As cortinas não chegam a se abrir para que entrem em cena.
Eles se esboçam e se esfumam no ar, não se definem. b aplauso seria
insuportável para eles: a confirmação de que sua inadequação é
compreendida e aceita e admirada, e portanto - pelo avesso, igual ao
direito - incompreendida, rejeitada, desprezada. Os dragões não querem
ser aceitos. Eles fogem do paraíso, esse paraíso que nós, as pessoas
banais, inventamos - como eu inventava uma beleza de artifícios para
esperá-lo e prendê-lo para sempre junto a mim.
Os dragões não conhecem o paraíso, onde tudo acontece perfeito
e nada dói nem cintila ou ofega, numa eterna monotonia de pacífica
falsidade. Seu paraíso é o conflito, nunca a harmonia.
Quando volto a pensar nele, nestas noites em que dei para me
debruçar à janela procurando luzes móveis pelo céu, gosto de imaginálo
voando com suas grandes asas douradas. solto no espaço, em direção
a todos os lugares que é lugar nenhum. Essa é sua natureza mais sutil,
avessa às prisões paradisíacas que idiotamente eu preparava com
armadilhas de flores e frutas e fitas, quando ele vinha. Paraísos
artificiais que apodreciam aos poucos, paraíso de eu mesmo - tão banal
e sedento - a tolerar todas as suas extravagâncias, o que devia lhe soar
ridículo, patético e mesquinho. Agora apenas deslizo, sem excessivas
aflições de s feliz.
As manhãs são boas para acordar dentro delas, beber café,
espiar o, tempo. Os objetos são bons de olhar para eles, sem muitos
sustos, porque são o que são e também nos olham, com olhos que nada
pensam. Desde que o mandei embora, para que eu pudesse enfim
aprender a grande desilusão do paraíso, é assim que sinto: quase sem
sentir.
Resta esta história que conto, você ainda está me ouvindo?
Anotações soltas sobre a mesa, cinzeiros cheios, copos vazios e este
guardanapo de papel onde anotei frases aparentemente sábias sobre o
amor e Deus, com uma frase que tenho medo de decifrar e talvez, afinal,
diga apenas qualquer coisa simples feito: nada disso existe. E esse nada
incluiria o amor e Deus, e também os dragões e todo o resto, visível ou
invisível.
Nada, nada disso existe.
Então quase vomito e choro e sangro quando penso assim. Mas
respiro fundo, esfrego as palmas das mãos, gero energia de mim.. Para
manter-me vivo, saio à procura de ilusões como o cheiro das ervas ou
reflexos esverdeados de escamas pelo apartamento e, ao encontrá-los,
mesmo apenas na mente, tornar-me então outra vez capaz de afirmar,
como num vício inofensivo: tenho um dragão que mora comigo. E, desse
jeito, começar uma nova história que, desta vez sim, seria totalmente
verdadeira, mesmo sendo completamente mentira. Fico cansado do
amor que sinto, e num enorme esforço que aos poucos se transforma
numa espécie de modesta alegria, tarde da noite, sozinho neste
apartamento no meio de uma cidade escassa de dragões, repito e repito
este meu confuso aprendizado para a criança-eu-mesmo sentada aflita
e com frio nos joelhos do sereno velho-eu-mesmo:
- Dorme, só existe o sonho. Dorme, meu filho. Que seja doce.
Não, isso também não é verdade.
0 comentários:
Enviar um comentário