A Zaél e Nair Abreu

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Porto Alegre, 10 de março de 1965.

Queridos pai e mãe:
Estive muito doente, tive que passar uns dias na enfermaria. Quero
que a senhora imagine o que senti ao me ver sozinho naquele quarto frio e enorme.
Cada passo que ouvia no corredor pensava que era a senhora chegando; cada riso
de criança que vinha lá de fora eu julgava ser da Márcia ou da Cláudia. Confesso
que tive vontade (e tenho) de morrer.
Tive muita febre; o seu Hélio veio aqui e viu bem como eu, estava.
Os guris daqui me tratam muito mal, vivo sozinho. À noite choro muito. Só
penso em ir embora daqui; maldita a hora em que eu quis vir para cá!
A senhora vai dizer que isso é normal, etc... Mas não é não! Os outros que
chegaram junto comigo já estão adaptados.
Há várias noites que quase não durmo e tenho pesadelos horríveis. Acho que
até emagreci, ando sempre com olheiras e não como nada.
Sinto uma falta imensa de todos daí, principalmente da senhora.
A coisa que mais desejo é ir embora daqui.
O quarto é muito frio e à noite entra vento pela janela.
Sei que a senhora vai ficar triste quando ler isso; imagine então como não
ando eu!
Pelo amor de Deus, mãe, eu não agüento mais! Veja se a senhora dá um
jeito! Isto aqui é um verdadeiro inferno.
Não pense que estou pondo a culpa na senhora; não, ela é toda minha, e é
isso que me deixa ainda mais desesperado.
Sinceramente, eu não agüento mais!
Estou com muita dor de cabeça, tive uma tontura há pouco, nem sei se
forma sentido o que estou escrevendo.
Não seria possível ir embora daqui?
Bem, é só. Aceite um milhão de beijos. Abraços em todos daí. Do:
Caio

Repito: NÃO AGÜENTO MAIS!!!
Por favor, mãezinha, não me deixe só! Responda logo. Agora é que descobri
o quanto gosto disso aí. Gosto muito da senhora. Ajude-me!
Prometo que nunca mais lhe incomodo se a senhora ou o pai vierem me
levar!
Os professores são uns animais: não entendo nada e acho que vou rodar no
fim do ano.


Porto Alegre, 22 de agosto de 1965

Querido pai:
Saúde! Recebi sua carta e fiquei um pouco triste por saber que o senhor anda
se preocupando tanto com dinheiro. Ainda mais quando penso que a culpa é quase
toda minha. Se não fosse eu não eu estariam fazendo tantos gastos desnecessários.
Mas, se Deus quiser, poderei pagá-los no fim do ano com a minha aprovação.
Tudo, aliás, parece correr melhor. Nas sabatinas que fiz me saí muito bem.
Em Português dei um “show”; tirei a nota + alta da aula (9,5). O professor me
elogiou na frente de todos por causa duma questão que eu fui o único a acertar.
Entretanto, as 3 piores ficaram para esta semana (Matemática terça, Química quinta
e Física sexta). Meu medo agora é quase que exclusivamente Matem. Química
pretendo tirar 10,0.
E de neve, como se foram aí? Eu li no jornal que fez 4º abaixo de zero.
Imagino que nem aula deve ter havido.
Aqui no colégio, no pavilhão de Ed. Física, tem mais de cem flagelados.
Agora, graças a Deus, parece que vai parar de chover um pouco. Sexta-feira houve
um temporal horrível, meu quarto ainda está molhado.
Aconteceu urna coisa aqui que me deixou muito triste. O meu companheiro
de quarto se mudou; disse que eu tinha o costume de estudar alto; atrapalhava-o e,
à noite e de manhã cedo, não o deixava dormir. Achei fraca a desculpa; deve é terse
enchido da minha cara (o que não é nada difícil). Mas estou de consciência
tranqüila. Não fiz nada que o ofendesse. O ruim é ficar sozinho, não ter com quem
conversar, O quarto parece tão vazio! Vamos ver no que dá. Pode ser que com isso
eu me aproxime + dos outros ou, ao contrário, me afaste + ainda.
A comida aqui anda mais ou menos. Quando olho perco a fome. Mas como
depois, embora sem vontade.
De dinheiro estou relativamente bem. Não é preciso que se preocupem. Até
o fim do mês dá folgado. Se não der para o sr. e a mãe virem no meu aniversário,
podem mandar mais pela vovó, não? A mãe tinha dito que ela vinha, se não me
engano.
Por favor, não façam sacrifícios para virem. Não convém gastar mais ainda.
Já estou conformado. Além disso, lá na vovó Zaira são tão bons que quando estou
lá nem sinto falta de casa, quase. O duro é aqui no colégio, principalmente à
tardinha e ao meio-dia.
Mas o tempo corre depressa. Parece que foi ontem que cheguei aqui. Estou
bastante esperançoso e confiante, mas também há, é claro, os momentos de
depressão.
A mãe, espero que vá bem de colégio e faculdade. Com esse frio deve ser
horrível a coitada sair cedo para aquele grupo gelado.
Acho que não há mais nada para contar. Lá na vovó estão todos bem, só o
Marco Afonso que está adoentado, de cama, mas não é nada, só garganta.
E tia Elcy, quando vem?
Para todos daí um grande e saudoso abraço. Para o sr. e a mãe, beijos do:
Caio

PS — A dona Aracy acertou o que disse do dinheiro? Espero que acerte o que
disse de mim, também.


Massaguaçu, 13 de março de 1969.


Queridos pai e mãe, deveria ter-lhes escrito há vários dias atrás, quase um
mês — mas deixei para depois, pois não queria preocupá-los. Pensei que tudo se
arranjasse mais tarde. Por favor, não se ssustem nem com o nome do lugar onde
estou nem com o início carta. Não há nenhum problema horroroso. Estou
passando uma temporada genial, numa praia no litoral norte de São Paulo,
na fronteira com o Rio, na casa daquele casal meu amigo, Hilda e Dante. O chato é
que fui despedido da Abril. Acontece que a Veja está dando prejuízos enormes
desde que foi lançada, vende pouquíssimo e os anunciantes não se interessam em
comprar espaço. Por uma questão de honra, somente, os chefões não fecham a
revista. Mas para a Abril inteira não ir à falência, era preciso tomar uma providência
qualquer. Entraram então num regime de economia feroz, despedindo meio
mundo. Quem não tinha pistolão lá dentro foi mandado embora. Saiu
aproximadamente um terço do pessoal (mais ou menos umas mil pessoas), entre os
quais, infelizmente, eu — que não tinha absolutamente ninguém para me proteger.
No começo, fiquei em pânico — a minha vontade era arrumar as malas e voltar
correndo para junto de vocês. Mas resolvi não me deixar abater. Procurei vários
conhecidos, que me encheram de cartas de recomendação para jornais agências
publicitárias. Mas, depois de quase um mês perambulando por São Paulo, não
consegui nada. A desculpa que davam, quando havia vagas, é que eu não tinha
diploma universitário. Além disso, depois do último ato institucional, a situação da
imprensa ficou completamente negra. São Paulo e Rio estão repletos de jornalistas
desempregados. Aí pensei bastante no que eu podia fazer. Na verdade, todo esse
tempo que eu fiquei em São Paulo não foi nada fácil, muitas vezes me desesperei,
chorei, pensei em voltar. Na hora de escrever para vocês, mentia muito, dizendo que estava tudo ótimo, que me dava às mil maravilhas, quando nada disso
acontecia. Não cheguei a passar fome, mas a solidão e a tristeza foram enormes.
Era terrível trabalhar sem parar de segunda a sexta, das oito da manhã até as seis da
tarde. Emagreci muito, fiquei nervoso, irritado. As vezes ficava gripado, com febre,
e tinha que ficar sozinho no apartamento, sem coragem de sair sequer para fazer as
refeições. Além disso, uma culpa enorme pesava na consciência: ter deixado
incompleto o curso de Letras. Se continuasse trabalhando na Abril não poderia
concluí-lo nunca, a menos que fizesse um esforço sobre-humano, trabalhando
durante todo o dia e estudando à noite. Por tudo isso, achei que seria melhor voltar
para o Rio Grande do Sul, terminar a faculdade, arranjar um emprego qualquer por
aí, mesmo de balconista — só para não pesar muito no orçamento de vocês.
Depois de formado, eu volto a “tentar a vida” aqui ou no Rio. Para reforçar essa
decisão, havia ainda a grande saudade de vocês, do Gringo, Felipe, Márcia e
Cláudia, saudade que não me largou durante um ano inteiro. Tomada a decisão, fui
visitar Hilda, que concordou comigo que o melhor seria mesmo voltar, e me
convidou a passar uma temporada na casa dela, aqui na praia. Aceitei. Poderia me
recuperar bem, pensar bastante no assunto, talvez aparecesse um outro emprego
nesse meio-tempo. Estou aqui há pouco mais de uma semana, mal agüentando de
vontade de voltar.
Existe um problema muito delicado: eu não gostaria que os parentes, ou
alguns parentes (acho que vocês sabem a quem me refiro) soubessem que fui
despedido. Seria bastante humilhante para mim. Queria que vocês dissessem a eles
que resolvi voltar por minha vontade unicamente, achando que devia terminar a
faculdade e ficar mais adulto um pouco. Na verdade, não foi nada humilhante o
que aconteceu: quando fui dispensado, explicaram-me que não era por causa do
meu trabalho nem nada, mas apenas por economia. Também não vou voltar
derrotado, pelo contrário até: provei a mim mesmo que sou capaz de ganhar a vida
com meu próprio esforço. E se não deu certo desta vez, de outra dará, tenho
certeza.
Mãe, gostaria que a senhora desse uma chegada até a faculdade de Filosofia e
se informasse sobre a minha situação. Queria saber se é possível continuar o curso
ainda este ano. Se for, a senhora aproveite e faça a minha matrícula. Se não for
continuo o ano que vem, e durante este faço um curso de línguas.
Não sei ainda quando irei, será no fim deste mês ou no começo do próximo
— abril. Mas eu aviso antes de ir, para que me esperem.
Mãe, eu queria que a senhora me desculpasse ter esquecido a data de seu
aniversário: não consigo mais lembrar se é em março, em abril, ou em maio. Sei que
a senhora não liga para essas coisas, e sei que a senhora sabe também que, seja qual
for o dia, eu sempre lhe desejo tudo de melhor.
Não fiquem preocupados pensando que eu estou sem dinheiro: recebi uma
boa indenização, dois milhões e quinhentos. Infelizmente, nesse tempo que fiquei
procurando emprego, gastei bastante. Ainda assim, vai dar para levar uma boa
quantia para me manter aí durante um certo tempo.
Agora estou muito bem. Passado o choque de ser demitido e os primeiros
tempos, até engordei um pouco. Tenho escrito muito. Um conto meu vai sair numa
das próximas Cláudia, talvez a de abril — e o meu romance está nas mãos de duas
pessoas influentes — Carmem da Silva e Léo Gilson Ribeiro (crítico literário) —
que estão procurando editores. Também estou dando os últimos retoques num
livro de contos chamado Inventário do irremediável, que um amigo escritor — Ignácio
Loyola — vai levar para uma editora só de gente nova, a Senzala. É quase certo que
sai. Deste, vou mandar também uma cópia para uma amiga no Rio, Maria Helena
Cardoso, irmã do Lúcio Cardoso, aquele escritor que morreu há pouco. Se a editora
Senzala por uma infelicidade não der certo, ela me arrumará um editor no Rio. Há
também um outro livro de contos (A margarida enlatada, onde tem um conto
dedicado a vocês) e uma novela (Cavalo branco na escuridão). Estão no Rio, com Carmem da Silva. Com todas essas coisas engatilhadas, é provável que muito em
breve vocês tenham um filho famoso, com fotografias e entrevistas em jornais,
revistas, noites de autógrafo, viagens à Europa, prêmios — todas essas coisas.
Aqui na praia está muito bom. Já lhe falei desse casal meu amigo, Hilda e
Dante. Eles casaram há pouco tempo, uns seis meses atrás. Dante tem 34 anos, é
pintor e escultor; Hilda tem 37, é escritora. Eles são ótimos, sempre fazendo o
possível para que eu me sima bem junto deles, queriam até que eu ficasse morando
em sua fazenda — em Campinas. Junto conosco está uma senhora finlandesa,
amiga de Hilda. Sempre conto coisas de vocês para eles, mostro fotografias —
Hilda vive dizendo que, quando eu escrever, mande um abraço da parte dela e os
parabéns por terem um filho tão ótimo como eu. (O elogio é dela, não tenho nada
com isso.) Engordei alguns quilos, estou queimado de sol e extremamente feliz,
principalmente porque vamos tornar a nos encontrar em breve.
O endereço para resposta é: Caixa Postal 1.537, Casa do Sol, Campinas,
estado de São Paulo. Aqui na casa de praia não chega correio, pois fica muito
distante da cidade mais próxima — Caraguatatuba, mas Dante costuma ir a
Campinas uma vez por semana, buscar a correspondência.
Um beijo para todos. Um grande abraço e o amor de sempre. Do filho,
Caio

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