A Hilda Hilst

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Porto Alegre, 13 de abril de 1969.

Querida Hilda, pois aqui estou, novamente, desde quarta-feira. Por
enquanto, às mil maravilhas. Quando o ônibus entrou no chão do Rio Grande
quase tive uma coisa: era tão diferente da loucura paulista, tão sem asfalto, tão não
sei como, aquele céu dum azul como nunca vi em outro lugar, aquele verde, as
montanhas — tudo. Senti um grande alívio. Aquele “desprotegimento” que eu
sentia em São Paulo passou completamente. Depois, me deu medo. A família, essa
coisa toda — mas eles estavam ótimos. Avançadíssimos (dentro dos limites, é
claro), minha mãe de pantalonas e correntes douradas no pescoço, achando geniais
os meus cabelos, a minha barba, os meus colares, discutindo coisas como
comunicação de massas, desajustamento da juventude, alienação, etc. Pai, tu sabes
como é: a gente nunca consegue perceber exatamente o que eles estão pensando.
Mas desde que não perturbem com críticas, a gente vai levando.
Cheguei um pouco duro, apenas com os sessenta mil que eu tinha. Mas deu.
Diga ao Dante que não precisa se apressar com o meu dinheiro. Quando vocês
estiverem folgados, mandem. A remessa pode ser feita pelo Banco do Rio Grande
do Sul, agência do bairro Azenha, que fica perto da minha casa; ou então pelo
Banco do Brasil. Mas, por favor, não façam nenhum sacrifício para mandar, Repito:
só quando realmente puderem.
O que mais tem me surpreendido por aqui depois da volta é a doçura das
pessoas, do sotaque. A calma. A ausência quase que completa de porra-louquismo.
Aos poucos, com muita satisfação, estou retomando o “tu”. Falei com vários de
meus amigos, inclusive Magliani, que já veio aqui em casa duas vezes e, para
surpresa de toda a paróquia, não chocou ninguém. Notei em vários dos meus
amigos uma espécie de frieza, ou resistência, não sei exatamente o quê. Assim
como se estivessem magoados comigo por tê-los deixado.
A matrícula na faculdade está difícil de conseguir. Já estou de cuca meio
fundida de tantas vezes que fui na secretaria sem conseguir nada de definitivo.
Antes de vir embora falei com Léo Gilson. Ele esteve doente e não foi
possível ler o Unicórnio. Foi ótimo comigo, me deu uma série de conselhos:
aconselhou-me a estudar inglês a fundo para, futuramente, viver de traduções.
Segundo ele, pagam muito bem. Colocou-se à minha disposição em São Paulo,
inclusive oferecendo-se para encaminhar contos meus ao suplemento do Estado.
Ainda não foi possível colocar minha vida em ordem. Não foi possível
escrever nada. Nem ler, tampouco. Lentamente, irei organizando tudo. Quero
terminar aquelas duas novelas, mas estou, por assim dizer, “madurando” a coisa.
Uma boa noticia para ti: teu livro de poesia foi dos mais vendidos na Feira do Livro
daqui. Cunha Lima deve ter dinheirelhos para você.
O movimento artístico por aqui está bastante bom, principalmente no que se
refere a teatro e artes plásticas. Música também. De literatura, a merda de sempre.
Estive lendo alguma coisa nos suplementos literários e percebi que o pessoal está
demais sobre Dalton Trevisan. Uma fossa, lógico. Magliani e eu estamos
preparando uma série de contos meus com ilustrações dela (contos sobre o
fantástico — como O ovo ou Uma sereia — com ilustrações surrealistas). Vamos ver
se conseguimos modificar um pouco a situação.
Me sinto bem demais. Ah, como é bom não ter essa preocupação medonha
de “ganhar a vida”, não precisar levantar cedo para trabalhar, não precisar sair para
comer. Hoje foi o primeiro dia que peguei a Maria Antônia para escrever, é só uma
carta, mas já comecei a sentir pruridos criativos. As crianças estão na sala vendo
televisão, e tudo aqui no quarto, apesar dos móveis convencionais e das paredes
cor-de-rosa, convida a escrever.
Como Dante deve ter te contado, nosso amigo Carlos aprontou coisas
negras no apartamento, como eu estava pressentindo. Houve até tentativas de suicídio por lá. Ele está péssimo, tomando pileques todas as noites e fazendo coisas
das quais não lembra no dia seguinte. Chega de me envolver com as pessoas: agora
quero escrever, escrever potes. Em paz.
Mande dizer o que você achou de Samuel Rawet e dos outros livros que te
mandei. Nesse Os sete sonhos, ele está bem mais fraco que nos livros anteriores e
com a temática um pouco fixada no problema homossexual. Mas mesmo assim, é
bom. Maura Lopes Cançado tem o mesmo problema de temática fixa: nela, é a
loucura. Deixando de lado isso, ambos têm um nível de linguagem excelente e são
das melhores coisas no conto brasileiro (basta você lembrar dos premiados do
Paraná). Aura, do Fuentes, para mim dispensa comentários. Acho uma obra-prima
do fantástico. O livro de Maria Alice Barroso (que preciso reler, porque não lembro
quase nada) é o romance nos moldes antigos (potes de personagens, ambientações,
volume, etc.), mas revitalizado por uma nova técnica.
Quero saber notícias do Lázaro. Descobriste o que fazer da vida dele?
Continuo achando que a crucificação é o melhor remédio. Tenho a impressão que,
de volta à fazenda, conseguiste escrever mais: é que na praia existe, independente
de qualquer “postura” interna, uma aceitação tácita e implícita de férias. Resultado:
a gente não consegue se concentrar. Eu gostaria demais que mandasses uma cópia
quando pronto e, se possível, outra do Unicórnio, que já está conhecidíssimo por
estas plagas, graças à eficiência da minha divulgação. Quando você for bem rica, me
contrata para public-relations. Quebramos dois galhos: você não precisa se incomodar
com sua divulgação e eu não preciso me incomodar com ganhar a vida.
Nada de discos por aqui. Parece que nossos amigos extraterrestres não
simpatizam muito conosco. Quando contei as estórias das luzes e et ceteras,
ninguém acreditou. Acho estranho isso: será que eles preferem sobrevoar os
centros mais populosos?
Por favor, escreva. Estou com complexo de escrever cartas desde que Hilde
me disse que eu só escrevia “frescuras”. Dante, não esqueça de mandar as fotos
que tiramos na praia. Abraços para todos. Um beijo saído do coração do,
Caio


Porto Alegre, 29 de abril de 1969.

Querida Unicórnia, acordei hoje com a mão de minha mãe me entregando a
tua carta. Rasguei o envelope, frenético, não esperava tanta coisa, fiquei surpreso
com o Osmo, que não estava planejado, decidi não ir à faculdade, ficar lendo.
Afundei manhã, esqueci de tomar café, não almoçaria se a família indignada não
viesse em peso saber os porquês do meu estúrdio procedimento, acabei de ler
recém, duas horas da tarde, de uma enfiada só, o Osmo, o Unicórnio e o Lázaro. Sei
que tu não gostas do Caetano Veloso, mas vais ter que desculpar a citação: tem
uma música dele, É proibido proibir, em que ele aconselha a “derrubar as prateleiras,
as estantes, louças, livros”, e fala que toda renovação tem que partir de uma
destruição total, não só de valores pequeno-burgueses (as louças) ou materiais (as
prateleiras e as estantes), mas também de valores abstratos (os livros), de
conceituações estéticas ou artísticas que viciaram a cuca do homem moderno — daí
parte para o refrão, onde diz que é proibido proibir qualquer tentativa de
renovação, que é proibido ter limitações morais ou quaisquer outras para que se
possa fazer alguma coisa — e não somente em termos de arte — realmente nova.
Bem, o teu Osmo é exatamente isso (não somente o Osmo, mas todo o Triângulo —mas vou me deter mais nele porque ainda não tinha lido). Você bagunça o coreto
total, choca completamente a paróquia, empreende a derrubada de toda uma
estrutura já histórica de mal-entendidos literários. Você ignora a “torre de cristal”, o
distanciamento da obra e do leitor; você faz montes para a dignidade da linguagem,
o estilo, as figuras, os ritmos. E isso é GENIAL, muié. Comecei o Osmo rindo feito
uma hiena, acho que nunca li nada tão engraçado em toda a minha vida, mas, você
sabe, o humor em si não basta, pelo menos pra mim. Quando a coisa é pura e
simplesmente humor, fica um enorme espaço vazio entre a coisa e eu: somente as
risadas não enchem esse espaço. Por isso eu ria e me preocupava: meu Deus, será
que ela vai conseguir? Aí, quando a minha preocupação com o excesso de humor
estava no auge, começaram a aparecer no texto os “elementos perturbadores”: a
estória do Cruzeiro do Sul (ninguém vai desconfiar jamais que você viu MESMO
aquilo), o “grande ato”, a lâmina, os pontos rosados. E imediatamente o texto sai
da dimensão puramente humorística para ganhar em angústia, desespero. A coisa
cresce. O tom rosado do início passa para um violáceo cada vez mais denso, até
explodir no negror completo, no macabro. Existem três círculos na estória, como
um quadro abstrato. Assim: as gradações lentas, imperceptíveis, até aquele centro
terrível. E toda a leitura se faz no mesmo sentido com que pintaste-escreveste o
quadro-novela — de fora para dentro, atentando sem atentar propriamente para as
imperceptíveis mudanças. A chegada até o centro exige do leitor uma mudança de
postura, inclusive física. Comecei esticado na cama, despreocupado, mas aos
poucos fui me inteiriçando todo, com um pânico que nascia das pontas das unhas
até “as pontas tripartidas dos cabelos”. Quando terminei, estava todo tenso e
trêmulo, dividido em dois: um não querendo admitir o macabro da situação; outro
sabendo que não podia ser de outro jeito, compreende? Acho que existe um ponto
de contato entre o Osmo e o Estrangeiro — muito mais acentuado do que entre o
Osmo e o Beckett. Com Beckett, as semelhanças são meramente de linguagem,
externas, e assim mesmo Beckett não é o dono desse tipo de prosa, você o
encontra também em Salinger e em vários outros que no momento não lembro.
Com o Estrangeiro as semelhanças são mais íntimas: assim, num e noutro, tudo
aquilo que parecia, no início, dispersão, futilidade, vazio (se bem que gostosíssimo
de ler), no final se arma bruscamente para atuar contra o personagem. As coisas
que ele conta que fez e pensa de repente dão a medida de toda a sua estrutura
interna. Exatamente como num quebra-cabeças — a imagem é batida e já virou
lugar-comum, mas não posso fazer nada se o Osmo é isso mesmo: um quebracabeça
a que uma das partes (no caso, uma das frases ou mesmo uma das palavras)
tornaria incompreensível, por incompleto. E o completo, que é compreensível, é o
perfeito. Deus, por exemplo, é completo, mas incompreensível (pelo menos, a idéia
de Deus), daí não ser perfeito. Mas se você pega uma árvore, ela é completa e
compreensível e, em conseqüência, perfeita. Toda essa satisfação para dizer que
acho o Osmo perfeito. Mas um perfeito novo, até agora: não aquela perfeição fria
de, por exemplo, A crônica da casa assassinada, ou da Maçã no escuro. Essa é a
perfeição cronometrada, medida, sólida, inabalável. Você faz o imperfeito insólito,
o perfeito difuso. Não sei mais o que te dizer. Não conheço nada de tão novo na
literatura brasileira como o teu Triângulo. Você vê o que temos: a coisa rasa,
inexpressiva e jornalística de Dalton Trevisan — limitada; a dignidade marcial de
Clarice — limitada; a impenetrabilidade e o regionalismo de (que Deus o tenha)
Guimarães Rosa — limitada; as tragédias familiares em que Lygia insiste e que
Lúcio Cardoso já havia esgotado. E de repente você escreve um negócio (três
negócios, Unicórnio, Osmo e Lázaro) com-ple-ta-men-te descontraído. Liberto da
silva. Sem barreiras morais, políticas, religiosas, sem preocupação de tempo ou
espaço. A liberdade total, mas não a liberdade porra-louca que conduz, no máximo,
ao vazio, mas a liberdade que diz coisas que podem-ser, podem-não-ser, que dá ao
homem a noção do seu estar-solto no mundo. Você incomoda terrivelmente com
essas três novelas. Aqueles coitados que, como eu, têm o ritmo marcial da prosa ficam de cuca completamente fundida, neurônios arrebentados, recalcadíssimos,
frustradíssimos, confusíssirnos. É uma maldade você fazer isso. Maldade porque os
que também escrevem de repente percebem que tudo que fizeram não tem sentido,
porque de repente precisa derrubar todas as prateleiras íntimas e começar uma
coisa nova. Uma maldade necessária, uma maldade astronáutica por assim dizer.
Sim, porque você já pensou se, de repente, a gente tiver uma prova concreta de que
existe vida num outro planeta, uma vida diferente da nossa, com valores diversos,
com liberdade absoluta — já pensou? Nós, os terrestres, vamos morrer de inveja,
vamos nos sentir completamente primitivos, primários, estúpidos e vamos ter que
renegar toda essa estrutura terrestre. Pois as tuas novelas são isso — um mundo
novo. Fascinante e frustrante.
Quanto ao Lázaro, é ótima a solução que arranjaste. E vê que estranho,
inconscientemente, retrataste no Lázaro essa coisa que falei aí em cima: Lázaro é o
pasmo diante duma coisa inesperada. isso gera a solidão mais absoluta que se possa
imaginar. Das três, acho Lázaro a mais amarga; o Unicórnio, a mais desesperada;
Osmo, a mais macabra. Qualquer uma delas, um soco. Um “pum” no nariz dos
críticos e da sociedade. Sem ser panfletária nem dogmática, você é a criatura mais
subversiva do país. Porque você não subverte , politicamente, nem religiosamente,
nem mesmo familiarmente — o que seria muito pouco: você subverte logo o
âmago do ser humano. Essas três novelas são uma verdadeira reforma de base.
Quem lê tem duas saídas: ou recusa, por covardia e medo de destruir todo um
passado literário; ou fica frenético e põe os neurônios a funcionar, a pesquisar nesse
sentido. Ficar impassível, tenho certeza que ninguém fica.
Eu fiquei frenético, pus os neurônios a funcionar e vou começar a pesquisar
nesse sentido. Desde que cheguei, não escrevi nada. Absolutamente NADA. Estive
relendo coisas minhas e de outros para descobrir novamente aquilo que falamos
uma vez: estou completamente cerceado dentro dessa linguagem. De tudo o que
escrevi, só reconheço como uma tentativa de libertação O ovo, que tem muita coisa
em comum com o Osmo. Talvez A sereia, mas acho que este ficou apenas no
cômico, ao passo que O ovo transcende essas fronteiras e vai até o absurdo. As tuas
novelas me causaram pruridos. Não tenho medo de derrubar tudo o que fiz e partir
para algo na mesma linha tua, penso no teu exemplo, começando a fazer coisas
completamente opostas à tua poesia, que era tão ou mais digna que a minha prosa.
Detesto coisas dignas, impecáveis, engomadas, lavadas com anil: aceito nos outros,
levando em conta, inclusive, o tempo em que foram feitas. Mas não é mais tempo
de solidez: a literatura tem que ser de transição, como o tempo que nos cerca.
Estamos (os literatos) um passo, ou muitos passos, atrás das outras artes: veja a arte
cinética, o cinema de Pasolini, de Polanski, o teatro de Beckett, de Jonesco, a
música dos Mutantes. Estou com a cabeça feito sonrisal, toda borbulhante.
* * *
Visitei Manoelito de Ornellas, ele tomou nota de teu endereço para te
enviar o último livro dele, Terra xucra, memórias, onde conta a estória do chinês.
Ele me deu o livro, li, achei uma merda, apesar de reencontrar paisagens minhas
nos lugares dos quais ele fala. É impressionante a disparidade que há entre o
excepcional Manoelito-homem e o cretino Manoelito-escritor. Assim, se ele já te
mandou o livro, se já leste e concordaste comigo que é ridículo, por favor, não te
decepciones. O próprio é muito melhor. Ele me pediu um livro meu, de contos,
dedicado a ele, para tentar publicar. Vai dar à Livraria Sulina, que só publica
gaúchos. Não sei se eles vão querer, acho que não, são conservadores frenéticos e
os meus contos, mesmo os mais antigos, não são, felizmente, o que se possa
chamar de “clássicos”.
Chorei com a morte horrível da Didi. Certamente foram os gangsters aí da
frente. Vou rezar para que tudo dê certo e em breve vocês possam recuperar a
fazenda e acabar com essas barbaridades.
Ainda não consegui matrícula na faculdade, O diretor ainda não deferiu o
pedido, mesmo assim estou freqüentando as aulas. Uma merda, só o que se salva é
uma professora chamada Rebeca (vê se pode), uma judia ótima que ensina
Literatura Medieval. O professor de Literatura pediu uma monografia sobre Eça de
Queirós. E eu tenho saúde?
Estou me readaptando muito bem. A cidade é calma, aconchegante, não
tenho medo de sair na rua, como tinha em São Paulo, as pessoas são calmas,
conversam. Há tempo para ler, escrever, passear, conversar, fazer mil coisas e ainda
ficar horas à toa, na sacada. Os meus irmãos não incomodam nada, o maior não
fala (dei o Osmo para ele ler e consegui arrancar um “fantástico”), as meninas
pequenas ainda, ficam brincando com as bonequinhas delas, o dia inteiro, de vez
em quando brigam. Meu outro irmãozinho, Felipe, de doze anos, é o mais chegado
a mim, adora ler, é inteligente, faz perguntas o tempo todo. Meu pai também não
fala: lê o dia inteiro, e nem sequer comenta o que lê. Um dia desses surpreendi
sorrisos dele com um romance de Norman Mailer nas mãos, mas não sei o que
estava pensando. Minha mãe, de manhã dá aulas e à tarde faz pós-graduação de
Filosofia. À noite, todos se reúnem para ver Antônio Maria e Beto Rockefeller na
televisão — e eu saio, quando não fico lendo. Vou para a galeria de arte onde
Magliani trabalha e ficamos cuidando das ilustrações para os meus contos. Fui ao
teatro duas vezes, assisti a Quando as máquinas param, de Plínio Marcos, numa
horrenda montagem local, e Berenice, dum autor antigo, numa montagem psicodélica
duma turma também daqui — uma besteirada. Hoje tem três estréias de teatro.
Ontem vi Louise Parker, aquela negra americana, cantando spirituals no Teatro São
Pedro.
Estou terminando de ler A morte de Artêmio Cruz, romance do Carlos
Fuentes, bossa Ulisses, de Joyce, sem entender grande coisa. Ao mesmo tempo,
comecei a Introdução ao realismo crítico, de Lukacs, onde ele renega toda a obra literária
que seja subjetiva (fala horrores de nosso bem amado Beckett). Ainda Beckett: ele é
irlandês, mesmo, mas vive na França há muitos anos, e foi lá que escreveu publicou
todos os seus livros.
Tens razão quando falas na importância das coisas terem sangue: Fuentes
não tem, Rawet é elaborado demais, a Cançado ainda não se recuperou da
temporada no hospício e a Barroso ainda insiste nas tias, nos solares e coisas
quetais. Mas é o melhor que temos, não é trágico?
Não te enfosses com os editores. Tem um poema da Florbela Espanca que
diz assim: “As coisas vêm a seu tempo/ quando vêm, essa é a verdade”. Um dia a
coisa sai. E eu acredito no mecanismo do infinito, fazendo com que tudo aconteça
na hora exata. Em julho, vou passar o mês aí e uma semana no Rio. Tenho certeza
que conseguirei coisas para nós. Seria bom que falasses com o tal/ Renzo Marizoni,
ele promete.
Não tenho tido fossas. Aquelas crises paulistas eram porque eu me sentia
inseguro, desamparado, desprotegido. Aqui, sinto as coisas mais definidas, mais
tangíveis, mais palpáveis: até mesmo a fossa, quando desce, não é aquela coisa torva
e difusa de São Paulo — é concreta e motivada por alguma coisa exata. A
depressão que eu vinha sentindo, muito de leve, tem um motivo certo: não tenho
escrito. Recomeçando, tudo ficará bem.
Estou tentando conseguir um emprego num jornal. Como não quero
aprisionamentos de horários, acho que vou ficar como colaborador, recebendo em
free-lancer. Existem três suplementos literários aqui e, se eu conseguir qualquer
coisa, prometo: farei uma série de artigos sobre o Triângulo. O teu livro de poesia
vendeu MESMO. Magliani já havia difundido teu nome entre os coleguinhas
artistas plásticos e os coleguinhas de teatro, que por sua vez comunicaram aos
literatos, e por aí afora. Lembra de um amigo meu daqui, que encomenda livros às
distribuidoras paulistas para as livrarias daqui? Eu tinha escrito a ele pedindo que
encomendasse o teu livro; ele encomendou, colocou e vendeu. Mesmo assim,
continuo de public-relations teu. A semana passada dei o teu livro para um amigo
meu, Luiz Alcione, um cara muito bom, poeta. Às vezes ele publica crítica literária
muito boa, é um dos que eu posso mostrar o Triângulo.
Carlos andava mais desesperado e desesperador do que nunca, quando vim.
Bichíssima, com umas lentes de contato azul-elétrico, tomando pileques todas as
noites, fazendo coisas negras e na manhã seguinte não lembrava de nada. Horrível,
Dei conselhos a ele, disse que admitia que cada um fizesse o que bem entendesse,
mas que devia-se resguardar um limite de decência, de respeito pelo outro e por si
próprio, que se deve ter uma diretriz na vida, senão fica tudo vazio, sem sentido.
Chorou, disse que eu era o melhor amigo dele, que ia se corrigir, não beber mais.
As coisas de sempre. Provavelmente tomou um pileque na mesma noite e esqueceu
tudo. É um caso perdido. Aqui não há gente assim, o que me poupa muita angústia.
São cinco horas. Está muito quente acho que vai chover. As crianças estão
vendo televisão na sala, meu irmão está estudando economia. Uma vontade louca
de estar perto de vocês, uma hora que fosse. Não há de ser nada, julho está aí
mesmo. Se eu fosse bilionário, todos os fins de semana tomava meu avião
particular e ia visitar vocês. Espero que Dante tenha dado conta de seu tronco de
eucalipto. Um abraço bem grande para ele. Outro para Madame Soininem. Aninha,
Dodô, Sola Macaca, Flika, Carlota, Pépi-papéti — todos em mim. Lembranças POA,13 de junho [de 1969]
Hildinha, tua carta chegou com um baita atraso, de quase três semanas.
Como sói acontecer, eu já estava imaginando coisas negríssimas, sem saber precisar
o quê. E parece mesmo que as coisas não andam nada azuis para o lado de vocês,
além de todas essas incomodações com os cafajestes da fazenda, mais as fraturas de
dona Marta. Coitada, tenho pensado muito nela. A estória da vida dela é meio
sobre o fantástico, não? Já pensou, uma baronesa alemã acabar os dias como
governanta numa fazenda do interior de São Paulo, visitada por discos voadores.
Tens razão no que dizes sobre o conto das rosas — estive relendo e achei todos os
defeitos que apontas. E concluí que qualquer modificação na linguagem que até
aqui empreguei deve vir naturalmente, para que não ocorra o que ocorreu com este.
Depois, acho que a própria tessitura do conto deve impor a sua própria linguagem.
Você vê, em O ovo usei uma linguagem mais ou menos solta, com palavrões e
violências — mas não soou “grosso” porque era a única linguagem para aquele tipo
de estória. Escrevi mais uns quatro contos depois desses que [. . .] mandei e, num
deles, creio que consegui o mesmo que no Ovo, talvez até para melhor. Agora em
julho te levo tudo. Mas já começo a me fartar do conto, quero entrar agora numa
coisa de mais fôlego, mais ampla, uma novela ou um romance. Tenho urna idéia
ainda mais ou menos vaga, estou dando tempo ao tempo para que ela se amplie por
si. Recebi uma carta de Carmem da Silva, diz ela que gostou dos meus livros que
levou (o romance, a novela e um dos contos) e deu-os à Editora Expressão e
Cultura, O cara ainda não se manifestou, se não der pé ela vai encaminhá-los a
outras editoras [...] é acertar. Achei muito bom isso duma pessoa com certa
influência, como Carmem, se interessar por mim e ficar visitando editores com
calhamaços na mão. Eu morreria de fossa na primeira recusa. Como vês, é tudo
muito vago, mas tenho esperança que de repente estoure alguma noticelha boa.
Maria Helena Cardoso também escreveu, ela é um pouco fora da realidade e meio
liriguelha demais, fica falando dos passarinhos que cantam nos galhos das árvores e
nas sombras do outono, coisas assim. Reforça o convite para que eu fique na casa
dela, em julho. Estive me informando por aqui do preço das gráficas para edição de
livros. Resultado, uma edição razoável, aí duns mil exemplares, sai por 1.500, não é
caro e para quem, como eu, ainda não publicou nada, valeria a pena. O livro
publicado na mão dá uma certa força, a gente se compenetra de que é escritor
mesmo, e passa a caprichar mais na coisa, O problema é que não tenho esse money
e, pelo jeito, não vou ter nunca. Ai, tenho um peso na consciência quando lembro
dos dinheirelhos que eu ganhava na Abril, podia ter-me sujeitado a morar numa
pensão, não andar tanto de táxi, não comer tanto camarão nem tomar tanto uísque
— dava fácil para fazer alguma economia e publicar mil coisas. Te mandei o conto
publicado no Diário de Notícias, não fazes nenhuma referência, acho que não
recebeste. Este domingo sai outro, a carta suicida, estou com medo. É que aquela
estória toda é meio sobre o homossexual, e eu não sei que explicações vou dar ao
pai e à mãe. Achas que as implicações do tal conto estão muito óbvias?
Relendo a Paixão segundo GH cheguei a bocejar em cima. Não sei, aquele
entusiasmo todo que eu tinha sentido da primeira vez parece que sumiu.
[página final perdida]

para Dona Marta. Beijos do,
Caio
[Mando um conto] que achei numa revista. Mande contar do disco da Lygia. Meu
coração está sempre perto de vocês, absurdamente. Ai. Saudade é uma coisa azul e
amarga, com carne por fora e espinho por dentro. As fotos ficaram ótimas, por um
bom tempo minha auto-estima está resguardada.
[À margem: Se encontrares com Ana Elvira, dá um abraço nela e diz que vou
escrever. O dinheiro chegou. Obrigado. Não se apressem com o restante.]

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