A Suzana Saldanha

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Sampa, 9. 4. 79

Suzy, baby,
andei com vergonha docê... Veio aquela carta tão bonita, e eu sem nenhum
tempo de responder, passei um fonograma, coisa tão fria, e fui curtindo essa
vergonha de não ter tempo até pintar a carta do Isaías. Bom, deixa eu ser objetivo
primeiro (depois vêm as continuações): aí vai a declaração, devidamente assinada
(fiquei com uma cópia para mim). Adorei a equipe — não conheço todo mundo,
mas Elton, Carmem Leonora, Isaías, Samuel e Tânia, mais Léo: maravilha.
Fiquei pensando se o Juarez Farinon será um quase-loiro-de- olho-verde, que
viveu um tempo no Peru? Seja como for, com cabeças como essas, o astral só pode
ser o mais alto. Em princípio, estarei aí para assistir a estréia, mas me avisem de
alguma modificação nas datas.
Suzy, fico chateado de não ter reescrito a canção final, como você pediu.
Não deu mesmo. Ritmo de Sampa é o seguinte. Andei trabalhando feito um cão,
vezenquando acontecia de olhar pra minha mão e pensar “nossa, que unha grande
& suja” — sabe o que era? Falta de tempo pra cortar. Uma corrida, dum lado pro
outro, e eu me perguntando se tudo isso vale a pena. Sem tempo pra ler, pra
escrever, pra visitar ninguém, pra olhar pro céu, um olho nos jornais, outro no
coração das pessoas — e tudo tão rebentado (ou arrebentando)... Enquanto a bolha
radioativa ameaça escapar do reator, o velhinho simpático do apartamento em
frente abre o gás. Na real, de verdade. Enquanto o ayatollah fuzila homossexuais e
obriga as mulheres a usarem véu, o Capitão Foguete morre de tuberculose e
excesso de drogas, aos 29 anos. Dói de todos os lados, os de fora, os de dentro, de
baixo e de cima, nenhuma saída, e você meio cego, meio tonto, só sabe que tem
que continuar, meio sem esperança, as ilusões despedaçadas, o coração
taquicárdico, língua seca, e continuando. Continuando. Resistimos, aos trancos, já
nem sei se foi escolha ou solavanco. Difícil arrancar uma certa lucidez disso tudo.
Mas sinto que o coração se depura (é tão antigo falar em coração...) um pouco
mais, em cada porrada. Meu olho compreende cada vez mais. Pode ser útil, mas
gosto assim, aqui, no meio de todos os sacos de lixo que a greve dos lixeiros deixou
amontoados pela cidade (as escadarias do Teatro Municipal estão cheias, o que
acho muito expressivo). E resisto. Gosto de mim assim, e mesmo que não
houvesse mais, só por isso. Por resistir. Quando o mais coerente seria estar talvez
numa clínica psiquiátrica.
Ai, que fel! Porra, corta.
Consegui férias, de 15 de maio a 15 de junho. Acho que vou para Olinda,
escrever. Estou precisando desesperadamente escrever. Comecei um negócio muito
ambicioso, e decidi que vou em frente, de qualquer jeito. É quase trágico, às vezes,
sentir que sacrifico a literatura em função do trabalho jornalístico, para sobreviver.
Mas concluí que talvez justamente esse seja o grande desafio da minha vida. E
vamos lá. Adoro desafios.
De Portinho, não sinto saudade alguma. Só do ar, de alguns pores-do-sol,
dos verdes. E das pessoas.
Quando posso, vou ao cinema. E todo filme que vejo lembro do
cinemaníaco Roberto. Vi, entre outras coisas boas, Uma mulher descasada (você vai
amar), Amargo regresso, A fúria (um daqueles Brian de Palma medonhos), O céu pode
esperar e, numa sessão especial, 25 (aquele filme do Zé Celso Martinez, sobre
Moçambique), durante um happening louco de reabertura do Oficina. Teatro aqui,
coisa cansada e pouca. Gostei de Nó cego, do Vereza, e este fim de semana vou ao
Rio assistir Lola Moreno.
Faz frio. Parece agosto no Sul. Liguei pra casa hoje, e fiquei tão comovido
com a voz de minha irmã que de repente não tive o que dizer e desliguei.
Qualquer coisa que ocê precisar, prenda o grito, chê. Dentro das minhas
limitações, tô aqui mesmo. De cabeça, envio o que tenho de bom pra equipe. E
beijos, muitos beijos.
Seu amigo
Caio

PS — Beijos pra Luizar, Guto e, quando cruzar, Tuio Becker, de quem gosto
muito.

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