Jacqueline Cantore

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Rio, 05.06.83

“Não importa mais o que foi perdido
importa apenas o teu sorriso
e nada mais.”

Cara Anthea,
chove, mas chove & chove hor-ro-res, potes, alucinadamente. De não
acreditar. Faz dias, praticamente sem pausa. Todo mundo já meio pirando. Criamse
problemas tipo aquela salinha de refeições marroquino-colonial está cheia de
goteiras, o bondinho às vezes pára de descer o morro. Com os feriados, ficou todo
mundo zanzando pelo hotel, bebendo horrores. Conheci gente ótima. Veja só:
Flávio, pianista, uns 46 anos bem machucados, grisalho, fumando horrores,
pianista, foi vizinho e amigo de Silvia Telles, dá show de bossa-nova no piano
daqui, conta histórias de Maysa e Carlinhos Lira (antes de Kate); Iório, um
sobrevivente dos anos 70, deve ter a minha idade, parecido com Fagner,
fisicamente, compositor, morou anos em Londres tocando violão nas esquinas de
Portobello e metrô Piccadilly, quer que eu faça letras para ele; Avelina, argentina,
liiiiiiinda, só veste branco, uns 40 anos, desenhista de moda (chorou muito ontem
quando vimos a morte de Markito — ao que se sabe por AIDS, a peste gay,
depressão), casada com Michael, inglês criado na Argentina, jornalista, numa
batalha judicial com a ex-mulher há três anos, pela posse de uns terrenos em
Friburgo. São todos inacreditáveis. Avelina e Michael moram no último andar.
espelhos ovais art-nouveau imensos nas paredes dos corredores com papel de parede arrebentadíssimo, enormes clarabóias, goteiras (muita coisa coberta com
plástico), restos de nobreza — o hotel é muito mais absurdo que eu imaginava.
Passei a tarde com eles, ontem, ouvindo histórias de Guimarães Rosa, que Michael
conheceu, e de Borges, que era vizinho de Avelina em Buenos Aires (Borges deu
uma entrevista coletiva há um mês para dizer que não agüenta mais e comunicar
seu próximo suicídio, em... agosto, claro).
Deus, como chove. Nove da manhã. R. ainda está aqui, num quarto
próximo. E eu não suporto mais. Está pirando, desorientado. Bebe demais, dorme
demais, come demais. Me dangerizou a cabeça, me desorganizou todo, é carente
demais, vaidoso, insuportável — e envolvente e fascinante. Brigou com os garções
do hotel, não tem mais dinheiro nem para voltar a Porto, depende de um
empréstimo de Sérgio Stein, que não quer emprestar. Danger absoluto. Dei-lhe
vários cortes ontem (ele entende) e, ao mesmo tempo, fico preocupado e não sei o
que fazer. Liga pra Sílvia 30 vezes por dia, uma hora ela vai se matar, na outra
tomou um chá de cogumelos, etc. & etc. Fico me sentindo completamente normal,
maduro & equilibrado. Haja. Solução drástica: pedir a Sônia que o mande embora.
Depois que falamos, eu e você, a noite do aniversário de Ana C.,
aconteceram coisas. Te conto. Voltei pra sala, sentei, mais vinho, uma Billie
Holiday, então chegou um casal de rapazes [...], L. e T. [...] T. ... Bueno, guria,
sentou do meu lado e embarcamos num papo de umas três horas. Chegou mais
gente, pareciam todos meio ofendidos com nosso papo, foram pros quartos, pra
cozinha, ficamos sós na sala. Ele é quase louro, cabelo liso, tem um olho castanho
claríssimo, cor de laranja, 32 anos (é — pasme, mas pasme mesmo: é Virgo do dia
13 de setembro, com Ascendente Peixes, Lua em Aquário na XII — resistir, quem
há de?). [...] O papo começou porque ele é amigo de Trevisan (o João Silvério), que
já tinha dito a ele “você precisa conhecer o Caio”. E ator, trabalha com Amir
Haddad. Bueno: de repente retira-se R., fazendo cena de ciúmes, me chamando
para falar baixinho no corredor do elevador, pode? Depois vem L. (quando
fazíamos um revival de Nara Leão), e diz secamente “T., vamos embora? Eu não
estou gostando NADA disso”. Disso era eu. T. se despede de mim dizendo
baixinho no meu ouvido “te encontro amanhã às quatro no Amarelinho” (aquele
bar ao lado do Pathé). Vou ao banheiro, volto e vem Ana C. Ana: “o que está
acontecendo entre você e T.?” Eu: achei ele ótimo, só isso . Ana: vocês vão se ver
mais? Eu: marcamos um encontro amanhã”. Ana: “você sabe que ele vive com L.
há QUATRO anos?” Eu: “sei, ele me disse”. Ana: “me permite um conselho?” Eu:
“pode ser”. Ana (fremente): “não vá a esse encontro”. Eu: “sinto muito, mas vou
mesmo”. Ana: “Então, por favor, retire-se imediatamente”. Eu: “você está me
expulsando”. Ana: “estou”. Eu: “então tchau e feliz aniversário”. Corta para mim,
na chuva, caminhando horas perdido no fim do Leblon sem achar táxi nem ônibus
nem viv’alma.
No dia seguinte. Torturas, não-devo-ir-sim-devo-ir-mas-ele-tenho-certezaque-
não-irá-é-tudo-uma-trama-e-se-pintar-o-caso-ou-Ana-e-derem-escândalo-nãodefinitivamente-
não-vou-só-passo-em-frente. Horas. Tomei banho, acendi vela pra
Oxalá. E fui. Cheguei lá eram 15h30 (perguntei as horas 500 vezes no caminho)
Comprei um JT, sentei numa mesa, pedi um suco de laranja e comecei a ler. Chega
T., tinha chegado às 15h. Decidimos que vamos nos ver às escondidas. Contei da
Ana, ele não entendeu. Contou que L. fez uma cena de duas horas quando
chegaram em casa. Me ensinou a andar de metrô, me levou até a IstoÉ, me deixou
na porta com um beijo. Não posso ligar, mora com o moço. Tenho que ficar à
espera.
Entrei na IstoÉ em estado de graça. Adorei Zuenir. Devo fazer crítica de
televisão, de show, de disco, de teatro. Quer me aproveitar horrores. Temos
reunião semana que vem, para decidir, ver pautas, começar. Voltei pro morro
encantado: tudo dando pé. Ia dormir às 21h, quando chegam... M. e A. Lindos.
Vinhos e baseados sem fim. Chega R. Fechamos todos os bares do Largo dos
Guimarães, atacamos os do Largo das Neves, voltamos ao hotel, três da manhã, M. começa a passar mal e vai vomitar naquele abisminho do meu quarto. Pede que vá
com ele. Aproveito e dou-lhe uns beijos. Me conta que teve uma visão comigo, à
tarde. Voltamos para o quarto. A. faz a inocente. M. deita do meu lado e fica
contando que-quer-mudar-de-vida-largar-o-emprego-morar-em-Teresópolis. Nasceu
às 17h — deve ser então Leo/Capricórnio, naturalmente. Foram-se lá pelas
quatro. R. quer beber mais; descemos a pé até Copacabana. Horrores de conhaque.
Ao acordar, ontem, ao meio-dia, eu estava superconfuso. Aterrissei aos trancos.
Hoje devo jantar com Pedro Paulo (mas só se for na casa dele ou se ele
pagar: tenho TRÊS mil — a propósito: pelo-amor-de- Deus, mande aquele $$$, ou
me avise, me liga, que vou a SP buscar). E estou com medos financeiros. E queria
entender melhor esse emocional a mil: NÃO CONSIGO PARAR DE
NAMORAR. C. não deu notícia alguma e eu tô achando que já era. A vida é hoje,
aquelas coisas. Agora, me surpreende como o Rio é moralista e provinciano. Pode,
encontros às escondidas? Aqui, pode.
Parece mentira, mas está parando de chover.
Preciso me sentar contigo e tomar uns bons mates. Astrológicos,
principalmente. Não sei se fiz os trânsitos certo, botei tudo um dia antes, é assim?
Daí, hoje, por exemplo, não tem nenhum máximo — mas amanhã tem máximo Sol
sêxtil Plutão — e terça Marte sêxtil Plutão (e amanhã começa Júpiter trígono Vênus
— abro um bordel? começo a fazer surubas? mantenho 10 casos ao mesmo
tempo?). Agora, essa exacerbação dos últimos dias estou atribuindo a Sol e Marte
trânsito em conjunção aspectando Mercúrio e Netuno radicais. Some-se a isso a
Lua trígono Plutão. Dia 21 tenho Sol conjunção Urano e, no mesmo dia, Vênus
conjunção Plutão (viro uma brazilian bombshell?). Todo muy fuerte. Sônia jogou na
terça e ficou meio de cara: havia centenas de pessoas. Só saiu namoro no jogo. Mas
eu quero UM CASAMENTO DISTINTO E FIEL [...]
No meio dessas turbulências emocionais, uma sensação de estar aqui em
férias, de estar de passagem. E culpas: que tenho mais é que ir pro tanque e me punir um pouco, que não é justo tanta coisa, tanta gente. Tento tirar o máximo de
sofrimento, e não consigo. Não há quase sofrimento, só no máximo confusão.
Neste andor, acabo musa do próximo verão, ão, ão. Fiquei espantadíssimo porque
T. foi ao encontro — um encontro que ele tinha marcado: eu já tinha me preparado
para ter uma profunda & séria crise depressiva de rejeição.
Vou fazer uma pausa, descer e comprar cigarros. Té já.
Desci, voltei. Parou de chover. O bondinho recomeçou. Espiei no quarto de
R., dorme. Entrou agora naquela faixa de dormir HORRORES. Para lembrar os old
and nice times, você não quer vir BUSCÁ-LO?
Mas s’as, M’r’lene, gostei da idéia de voltarmos juntos. Pode ser no dia 12 à
noite. Tenho um dia 13 horroroso, com quadratura Mercúrio/Saturno e Marte/Sol.
Mas se piro aproveito e já pego um colo por ai. Me avisa então quando vens.
Preciso também agitar a remessa do som pra cá (não dá mais, e preciso ouvir Cida
todo dia) e da televisão — a tevê agora é fundamental, o trabalho da IstoÉ vai
depender disso. Zuenir me deu também o telefone do Doc Comparato que a
Globo está desesperada atrás de roteiristas. Vou agitar horrores a partir de amanhã.
Acho que Sônia tinha razão e não devo mesmo me aprofundar muito no hotel. É
vibração too much. Estou louco por um cantinho, quem sabe aqui mesmo em Santa
Teresa. Maya mora aqui diz que me ajuda a ver. Sônia me recomendou também que
enviasse o curriculum para Berlim, que pinta.
Estou com medo de me apaixonar por M. Eu estou avançando, faço carinho,
toco. Ele recebe, os olhos brilham. Mas trata-se de um casal. Ela avança um pouco
sobre mim, também. E disse que saí no jogo com a Sônia. Trata-se de um ménage?
Mas só tô a fim dele. Ou ela percebeu que ele calça pouquinho e está fazendo a
tolerante para não perdê-lo? Ou mesmo por amor, sem cálculo. Fizeram 10 anos de
casados dia 2. Ele me desperta sentimentos i-na-cre-di-ta-vel-men-te ternos. Sônia
diz que Oxum está fazendo muito gosto (os dois são Oxum), mas que eu tenha
cuidado e talvez-seja-melhor-preservar-a-amizade. Aí me pergunto: são os orixás
que dizem ou isso é moral do Meyer? E mistura Sônia na relação. Olha...
[...]
Ah: Marcos Augusto Gonçalves, uma gracinha da IstoÉ, pediu o disco de
Cida. Ela me mandou três, dei um pra Cacaia, R. pediu outro e não quero dar. Mas
se — ele me arrancar um, seria bom a Cida mandar pro Marquinho, que é
óóóóótimo. Ou eu pego.
Me fazes o mapa do M. ? [...]. Imagino coisas, tipo um Júpiter em XII, um
Netuno no Meio-do-Céu. E talvez uma Lua em Libra (uma boca...), ou Câncer ou
Peixes, bem docinha. E pelo menos Vênus em Virgo (uns olhos...) Eu tô SEM
MATERIAL ASTROLÓGICO. Faz uma falta absurda. Onde foi pelo menos o
Derek & Julia Parker? E não tenho ephemérides... R.’s question: “Por que a
Jackie não veio para o Rio?”
Acendi uma vela de sete dias no roncó, aos pés de Oxum, e pedi pra me
acalmar-afetivamente. Logicamente que isto só me casando. A vela acendeu de
primeira.[...]
Recebi carta linda de José Márcio Penido. Queria papear mais contigo, mas
já nem tenho assunto. Bebi litros de café. E se o sol voltar? PELO AMOR DE
DEUS, ME MANDA O ENDEREÇO DO GALLERY AROUND, TENHO
QUE MANDAR MATÉRIA ATÉ O DIA 10. Tivesse um telefone, te ligava já.
Acho que vou tomar banho & fazer a barba. Fico meio tenso esperando T. ligar,
fico a fim de ligar, mas seria dangerizante. Almoço, sesteio e vou ver Pedro Paulo.
Vez em quando a morte de Markito volta na cabeça e passo mal. Vamos lá. Tenho
achado você ótima nas cartas. Lots of kisses from
Anthea’s brother
Caio

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