A João Silvério Trevisan

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Rio, 18 de outubro de 1983.

João, querido,
recebi tua carta ontem. Grato. Andei mesmo em silêncio, saída de livro e
aquelas agitações que você bem sabe. Minha cabeça fica péssima, medos,
inseguranças, paranóias. Agora passou um pouco, o Triângu1o está nas ruas e o que
vai acontecer com ele depende agora dele mesmo. Eu gosto, eu na verdade nem sei
dizer se “gosto” — sei que doeu muito para nascer, foi o que mais exigiu, foi o que
mais trabalhei. Sou capaz de localizar qualquer frase dele em cinco segundos, de
tanto que reescrevi os originais e as provas.
Mas não estou lá nenhuma maravilha. Primeiro, duro, à beira da dureza total.
Sem dinheiro sequer para mandar alguns livros (um para você, por exemplo) pelo
correio. Pode? Não compra: amanhã vou na editora e peço pra mandarem. Daí te
dá um cansaço, você sabe, tantos anos, tantas batalhas, e sempre esses problemas.
Depois, a cidade tá um lixo, mas um lixo absoluto, miséria e violência por todo
canto. Choveu potes. Blade runner perde. O hotel subiu horrores, não consigo me
comunicar com ninguém aqui dentro. As vezes fico dias sem falar com ninguém,
preciso cantar ou falar sozinho para ouvir minha própria voz.
Você me diz “não esqueça do I”. Não esqueço: é o que tem mantido o
homem vivo. Trocamos cartas quase diárias. Eu não vejo ninguém, não penso em
ninguém mais. Várias vezes tive impulsos fortes de voltar imediatamente para
Porto Alegre. Não tinha condiçõe$$$. Vou — ufa! — agora, na próxima sextafeira,
dia 28, a editora me dá uma passagem para lançar o Triângulo lá, na Feira do
Livro (você agitou seu lançamento lá?). Passo algum tempo em Porto, preciso ver
meu tio dentista (estou com um problema estranhíssimo: há tempos tirei um molar
inferior, e o molar superior correspondente começou a crescer, porque não tem,
digamos, nenhum anteparo embaixo). E I. então vem comigo. Aí não sei, não
sabemos. A gente só sabe que quer ficar junto.
Me contas coisas muito boas. Primeiro: mudaste! Achei ótimo. Assim ficas
mais livre das memórias inevitáveis, e ver São Paulo de cima é, no mínimo, um
asseio. Adorei saber de Vagas notícias (até hoje não me perdôo por não ter
conseguido ler os originais — foi uma época em que não conseguia me concentrar
em nada), e das traduções prováveis de Em nome. Adaptação para cinema
inclusive, Djalma Batista não é o do Asa branca? Você me pergunta “sairei do
buraco?”. Sairá, sim. Sairá brilhantemente. As coisas agora vão começar a
acontecer, é meio tipo ímã, uma coisinha vai magnetizando outra e outra e outra,
você vai ver.
Eu aqui meio parado — concluí o roteiro para cinema de Aqueles dois, um
longa 35 mm, cujas filmagens devem começar agora em novembro, em Porto
Alegre, e dei umas forças na adaptação teatral de Morangos, estréia dia 22 no Cacilda
Becker. Também comecei a agitar com o ilustrador As frangas, a história infantil que
sai em janeiro — se Deus quiser — pela Nova Fronteira. Mas nada de novo.
Triângulo me esgotou muito: estou ainda em recuperação. Gostaria muito que lesses
e me dissesses algo, sobretudo da última história, Pela noite, que tem muito a ver
com as nossas vivências e as nossas conversas e as nossas procuras. E talvez um
pouco impiedoso demais com o gueto gay, não sei se “impiedoso demais”, não sei
se o gueto merece compreensão. Eu detesto.
Falar nessas coisas — recebi um convite para o lançamento, hoje, de uma
coisa chamada Os homoeróticos — leva como subtítulo Os gays e lésbicas na sociedade
brasileira —, do Delcio Monteiro de Lima. Não vou, detesto lançamento (não vou
lançar o Triângulo a não ser na Feira), mas achei curioso. Cá com meus botões,
continuo a pensar que homossexualismo não existe.
Me dá notícias. Te quero bem sempre. Mesmo que eu viaje (e viajo até PA),
pode escrever pra cá. Recebe um beijo grande, teu
Caio F.

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