A Luciano Alabarse

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SP 31.08.88

Luciano,
momento raro — senão único — nos últimos, que sei eu, cinco ou seis
meses. Cheguei em casa cedo, fiz uma “limpeza” no astral, um mate, ouvi os
Paralamas (estou apaixonado por Uns dias), dei uma enorme faxina na escrivaninha,
troquei os Paralamas pela Judy Garland e sentei. Oh Deus, quanto tempo.
Tantos rituais se justificam: é para escrever a você. Tanto a contar, por onde
começo?
1º Bom, espero que não nos cruzemos pelo caminho. Estou indo para POA
no dia 8, para o lançamento de um fascículo do IEL sobre mim, mais a seleção de
contos (feita pela Regina Zilberman) pela Mercado Aberto (chama-se Mel &
Girassóis, adorei o nome). Tudo isso no dia 12, quando completo 40 anos. Não
entendo bem como, mas é verdade e estou me sentindo melhor que nunca.
Poderosíssimo. As moças ielescas querem me fazer uma homenagem e tal, aceitei,
comovido, embora de saia justa ao pensar nesse aniversário chez mamã. Queria,
claro, te ver.
Menino, aconteceu tanta côsa na minha vida. Foi tudo muito denso/intenso
desde a saída dos Dragões. Estive doente, paranóico, anorexia e vômitos, tomando
soro por uma semana. O terapeuta: tanta infelicidade psicológica tinha que
encontrar uma correspondência no corpo fisico. Agora você começa a melhorar.
Não deu outra.
Aí fui à Bahia, para a estréia da versão teatral baiana (muito boa) de Morangos
mofados. Tive sonhos mágicos, antes. Consultei os búzios, fiz tudo que os sonhos
mandavam. A sensação, agora, é de ter deixado a dor jogada no mar de Salvador.
Salvador salvando — como diz Yulo, um moço que conheci lá e, como diria
Fernando Pessoa, tem me dado muita alegria.
Ando feliz feito bobo.
Profissionalmente, aconteceram coisas lindas. Saiu no Times de Londres,
Suplemento Literário (o mais respeitado do mundo), um artigo chamado Brazilian
notes, assinado por um certo John Gledson — dizem que muy respeitado —
rasgando-se em elogios aos Dragões (que ele chama de Dragons don’t go to Heaven).
Luxo total. Isso abriu (escancarou, melhor) portas. Com a Bienal do Livro rolando,
fui procurado por uma tradutora italiana, mais uma agente francesa e outra alemã
(engraçado: todas mulheres). Resulta que está praticamente acertada pelo menos a
tradução para o alemão, só falta o contrato. E promete Ray-Güde, é esse o nome
da Frau, que me leva a Berlim para o lançamento, ano que vem. Fico ouvindo
“Berlim, Berlim/ Berlim, Bonfim” e se me baixa uma Nina Hagen rápida. Ou será
— mais clássica — Marlene Dietrich?
Pausa. Telefone. Se quero fazer um lançamento em Piracicaba. Quero. Anda
assim, fui a Salto, Botucatu, Santos, Americana — tour de cantor de rock perde.
Mas como eu ia dizendo, serão os tais frutos? Quem dera.
Cazuza. Sa’s que ele me dedicou Só as mães são felizes no show aqui de SP?
Fiquei num exibimento insuportável: foi o maior elogio de toda mi perra vida. Aí
fui dar uns amassinhos nele, no final. Luciano, Cazuzinha está com no máximo 50
quilos. Lindo, vital, sereno. Mas você olha a cara dele e vê a cara da morte. O que
pira a gente é que, você sabe, a morte está viva. Foi lindo. Ritual de vida e morte,
naquele menino definhando em cima de um palco. Não é mórbido, não, Dá
vontade de viver e rouba o medo. Cazuza te joga na cara os anos 80, plenos de
veneno. Não temos tempo de temer nada, e a Amazônia continua em chamas.
Ando menos só. Breda, o Marcos, está aqui em casa, em cartaz com O amo da
onça e para o lançamento de filme, o Feliz ano velho, que é bonito (dá de dez no livro)
e um sucesso. Adoro ele: toda a cumplicidade do mundo.
Vou tentar ver tua peça punk em POA. Sempre muita coisa, não sei se vai
dar. Semana passada, fui ao Rio ver A maldição do Vale Negro, bonito e tudo, mas de
uma ca-re-ti-ce-in-des-cri-tível. Aproveitei para ter uma briga com — toc, toc, toc
na madeira — Zé de Abreu, e confirmar o que meu terapeuta anda me avisando:
incorporei meu animus, o ser masculino. Ando, como direi? — decidido, guapo,
bravo. Não engulo mais sapos desnecessários. Só sapos karmáticos, aqueles
inevitáveis que vêm de fora pra dentro, ocê sabe.
Não consegui ver La Calcanhoto aqui. Eu tava numa correria absurda, fiquei
chateado, mas não teve jeito, coincidiu com meus santos cinco dias na Bahia e dez
mil baratinações. Como te digo, hoje é o primeiro dia em muitos meses que consigo
sentar em minha velha e boa escrivaninha.
Gosto das tuas notícias e do teu feeling. Claro, claro que vem, O amor tá solto
no ar de setembro (chega — wow! — amanhã) e já vimos tanta coisa e já sabemos
de tantas outras que não vamos entregar a rapadura assim no mais, chê. Ando cheio
de fé. Minha casa tá linda, furei outra vez a orelha, seguro um programa de livros
semanal na TV (nada como uma câmera de TV pra te situar), cheio de projetos e
sonhos, molhado de amor por tudo, procurando a síntese. Descobri — numa carta
de Clarice Lispector para Lucio Cardoso — que polisipo, em grego, significa “pausa
na dor”.
Têm sido, estes dias, polisipos. Que os teus também. Muito amor
Caio F.

PS — Você teria saco para, outra vez, pegar uns convites lá em casa e distribuir
para o lançamentodo dia 12? Se não tiver, tudo bem. Ah, eu queria muito ver
Adriana, a bela.


SP 18.07.1989 [cartão]

Luciano, querido,
mal tenho tido tempo pra mim mesmo. Ginásticas pra sobreviver, um livro
novo querendo nascer (será que consigo?) e coisas e pessoas e a vida girando meio
rápido demais. Tento ficar em casa, às vezes consigo. Hoje, por exemplo. Acaba de
anoitecer, tô ouvindo blues com conhaque, flores amarelas, uma foto de James
Dean. Tudo em volta tão calmo, mas tão calmo e eterno como se Nara Leão nem
tivesse morrido. Ando digamos que feliz, mas tão só e às vezes um pouco frágil.
Acabo de sair de um “vírus inespecífico”, parecia hepatite, não era. A médica diz
que a cidade tá toda assim, envenenada, virulenta. E você já viu The dead, de John
Huston? E A outra, de Woody Allen? Já leu As horas nuas da Lygia? E aprendeu o
refrão de Beco’s blues, de Raul Ellwanger, com a Flora? Ando bem, meu amigo. Uma
certa fama “excessiva” que é um verdadeiro lixo, te expõe as najices inacreditáveis.
Mas fico em casa, de salto bem alto, gardênia no decote e luvas de canos longos,
bem sophisticated lady. Trabalho e trabalho e não paro. Gosto do céu azul de inverno,
rezo toda noite e repito como é bom, como é bom, Senhor, poder tocar um
instrumento. Quando apareces para matarmos esta saudade? Beijo grande do seu,
Caio F.

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