A Luciano Alabarse

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São Paulo, 12 de abril de 1985.

Luciano,
então, voltando de Montevidéu, você achou Porto Alegre feia? Outro dia o
Geraldo Galvão Ferraz me dizia que acha Porto uma das cidades mais feias do país.
Naqueles meus conturbados meses aí, no ano passado (já passou! já passou!), isso
era das coisas que mais me doíam. Feiúra pura e simples. E aqueles edifícios da
década de 50 ou 60, que parecem edifícios de praia? E aquela iluminação amarelada,
à noite? Eu tinha uma sensação generalizada de sufoco e província e feiúra — que
só passava um pouco quando andava de bicicleta pelo Parque da Marinha.
Recebi enfim o programa da Senhora (que insisto em chamar de “Nossa Senhora”)
— é lindo e de muito bom gosto. Fotos ótimas. Conheço pouca gente do elenco,
só Gorda (ex-Gorda, pelas fotos, linda — dê um baita beijo nela), Java, Ivan e
Renato Campão. Faço votos que o sucesso continue. Sobre a montagem do
segundo semestre: você tem total liberdade para mexer em todos os meus textos.
Aceitei uma proposta louca da Brasiliense70. Venho, há três anos, desde
pouco antes de sair Morangos, remexendo numa história louca e longa — anotando,
pensando. Sem tempo para sentar e escrever. Bueno, a Brasiliense fez essa proposta
e topei. Agora estou com medo. Porque tenho apenas que sentar e escrever. Claro
que tem um jeito simpático de profissionalização, mas também é arriscado. E se...
não sair? Sairá, sairá. Estou tentando me desvencilhar dos meus milhares de outros
compromissos para poder trabalhar nesse livro. Preciso receber boas vibrações.
Andei caindo do cavalo outra vez. Fui passar a Semana Santa em São Tomé
das Letras, interior de Minas, com o Pedrinho [...]. Nove meses de paixão. Dificil contar, mas enfim, acabamos discutindo muito — nossas diferenças ficaram muito
claras. Não conseguíamos sair da cidade, um pneu furou, não havia borracheiro, o
motor pifou — acontecem coisas estranhas aos automóveis lá. Queríamos ir
embora imediatamente, e a cidade foi nos enredando enquanto o clima entre a
gente ficava cada vez mais hostil. Resolvi me afastar, e agora estou tentando tirar da
cabeça. Não estou conseguindo. Estava muito apaixonado. Acho que nunca tanto.
Não consigo mais aceitar relações pela metade. Em outras palavras, raspas e restos
não me interessam.
Na saída da cidade, uma coisa fantástica. É uma estradinha Péssima, de terra,
que conduz à faixa asfaltada que leva a Caxambu. Bom, quando finalmente
conseguimos sair de São Tomé, começou a pintar um arco-íris no céu. Céu limpo,
azul, de sol, céu de Minas. Levou muito tempo para se formar, até ficar inteiro, e
muito nítido. Então aproximou-se do carro, ficou a uns dois metros da frente, e nos
acompanhou até a saída da cidade.
Nós conseguimos ver onde ele começava e onde terminava, dos dois lados
da estrada. Dava para ver direitinho onde as cores se misturavam com a terra, O
carro andava, e o arco-íris, como se abrisse caminho, andava na frente, as cores se
misturando com o campo, uns telhados de casas, umas vacas. Estranhíssimo. Como
um sinal de proteção & boa sorte?
Chorei muito. Passei a sexta-feira santa chorando sem conseguir parar. Em
cima de uma montanha, com um horizonte de 360º. Pelo país, pelo mundo, pelas
pessoas — por mim, claro, principalmente. E vim embora com a sensação de que
foi a última vez, o último sonho.
No Rio, soube da morte de Fernando Zimpeck. Doeu bastante. Há pouco,
tinha sido Galizia. Paranóia solta na cidade. Nunca me senti tão maldito.
Homossexualidade agora é sinônimo de peste — ninguém se toca mais. E o que
você faz com os seus sentimentos, as suas fantasias, a sua necessidade vital e atávica
e instintiva de amar? Então dói, tudo isso dói muito, e ter perdido Pedrinho não
ajuda nem um pouco.
Mas está sendo bom morar com Sérgio, neste vasto apartamento. As rosas
vermelhas que comprei ontem abriram todas, e daqui a pouco vou me dar de
presente um cinema — aquele Grito do silêncio. Fui ver Passagem para a Índia e adorei.
Vi, sim, aquele filme do Costa-Gavras com Yves Montand e Romy Schneider (deve
ser o mesmo) — poucas vezes vi algo tão amargo.
Pintaram uns convites de universidades para palestras, aquelas coisas.
Aceitei. Em maio, tenho uma semana em Presidente Prudente e, em agosto, alguns
dias em Passo Fundo. Então nos vemos.
Creio que Tancredo morre entre hoje e amanhã. Acho essa história de uma
ironia e de uma crueldade raras. Tudo muito nefasto, como diria o Gil. Sim,
teremos que engolir Sarney e outro governo tipo Figueiredo — e mais inflação, e
mais desemprego, e mais terceiro-mundismo, e mais solidão e desencontro entre as
pessoas. Tudo caminha aceleradamente para o fim, e nós vamos ter que assistir
Armagedon de dentro.
Perdi contato com Lya. Se você falar com ela, diga que no último Leia
escrevi algumas linhas sobre Mulher no palco.
Três horas da tarde de uma sexta bem cinza. Com a re-gu-la-riza-ção das
fmanças, penso em voltar ou para a dança ou para a terapia. Acho que para a dança.
Preciso de um pouco mais de vitalidade. Tenho tido uma sensação de velhice, de
desânimo e, principalmente, de desamor. Mas os astros anunciam boas coisas, a
mãe deve mandar o som esta semana (morro de saudade de Naria Caymmi) e, de
qualquer forma, às cegas, às tontas, tenho feito o que acredito, do jeito talvez torto
que sei fazer.
Um beijo grande do seu
Caio Fernando A breu
AXÉ!

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