A Lucienne Samôr

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Gay Port, 11 de fevereiro de 1995

Lucienne, muito querida,
achei que você gostaria dessa foto. E bem recente, de outubro último, no
pátio de uma casa em Bad-qualquer-coisa, uma cidadezinha alemã. O rapaz atrás de
mim e de Sérgio é Frank Heibert, nosso editor alemão. Ríamos muito, sempre.
Imagine: eu soropositivo, Frank diabético e Sérgio recuperando-se de uma cirurgia
de catarata que quase lhe levou a visão. Mas éramos sempre os mais felizes, talvez
por já termos visto a cara da morte?
[...] Andei viajando — Rio, Fortaleza, um mar muito verde (e tanta miséria
atrás do cartão-postal). Voltei afogado de trabalho, e vou segunda para SP gravar
um programa para a TV Bandeirantes. Não gosto, mas preciso ir a Sampa e, enfim,
eternamente Laika, topo tudo por uma passagem e duas noites num hotel cinco
estrelas (adoro ficar deitado pedindo coisas por telefone).
Escrevo, escrevo, escrevo. Quando páro, ando de bicicleta, cuido do jardim
(explodiu em girassóis, alamandas, petúnias e gladíolos — está lindo), faço yoga e
leio a biografia de Clarice Lispector escrita por Nádia B. Gotlib, saindo pela Ática
(leio as provas). Que vida, minha irmã: dá vontade de reler toda a obra dela. Mas
não, porque então páro de escrever. Clarice disse tudo? Certa vez um crítico do Le
Magazine Litteraire disse que meu texto parecia “o de uma Clarice Lispector que
tivesse ouvido muito rock’n’roll e tomado algumas drogas”. Fiquei lisonjeadérrimo.
Ando bem, o único problema físico é o sarcoma de Kaposi. Passo mal as
noites, suores, aflições, pesadelos. Perdi oito quilos, recuperei quatro com
superalimentação e ginástica (é bom “botar corpo’ ), vou acabar ficando um bofe
cheio de músculos. As vezes, sobretudo agora, verão e lua quase cheia, me surpreendo melancólico pelas noites a suspirar na sacada espanhola, com vontade
de chorar. Choro quando consigo. Ou ouço Caetano cantando Contigo en la distancia,
e choro mais. Não tenho pena de mim, mas por vezes sinto falta de amor. Fico
sempre muito só. Vivo no Menino Deus, não em Porto Alegre, onde já não
conheço quase ninguém e virei uma espécie de figura pública desumanizada —
todos-o-admiram-mas-ninguém-o-convida-pra-dançar-porque-é-perigoso, você conhece
esse filme, não?
A vida nos prepara cada cilada, já cantava Elis (choro sempre quando a
ouço), e continua: e é inútil se tentar fugir da longa estrada, lembra? Passei dias
lindos com Graça Medeiros, no Rio. O irmão da [. . .] S. [...] morreu de Aids há um
mês e me deixou o que chamei de kit-salvação, mil remédios novos (alcaçuz chinês,
pílulas do timo de cabras, etc.), farinhas engordantes, anabolisantes naturais (ele era
biólogo, tentou desesperadamente viver — decidiu morrer quando começou a
perder a visão e os movimentos). [...]
O sol começa a baixar, vou pegar a bicicleta e ver a lua quase cheia subir na
beira do rio. Pedalo até a usina do Gasômetro, onde tem um bar-barco, você toma
uma água, o barco balança e você se sente no terceiro uísque. Oxum grita nas
águas, lindíssima, e há muitos rapazes suados correndo lindos feito cavalos, as ilhas
ao longe, no horizonte de quem vai para a Argentina.
Ando com uma felicidade doida, consciente do fugaz, do frágil. Te amo
sempre, só não escrevo mais porque meu tempo realmente é escasso. Me mantenha
informado da novela do SLMG, quero colaborar, sim. Fiquei com — é horrível,
mas que se há de fazer? fiquei mesmo — pena do Duílio Gomes. Lygia Fagundes
gosta muito dele, sempre pergunta e nada sei dizer. Lembro que Cazuza dizia
sempre “Fracassar é feio e triste, O bonito e o bom é vencer.” Claro que fracasso e
vitória são coisas muito, muito relativas. Telefone. Déa do Rio. Sinto falta do Rio,
sinto falta de Déa. É uma fonte alternativa de energia, produtora de rock, já produziu Paralamas (adoro), Fernanda Abreu, Titãs, agora vai começar com Rita
Lee — que anda um tanto quanto pazza, Déa está com medo.
Seis horas. Vou pedalar, ver os rapazes.
Je t’embrasse três tendrement
Caio F.

PS — Minha relação com minha mãe tá tão, tão difícil. Ela castrou todos os
machos da família, menos eu, que sou homossexual (graças principalmente a ela,
fora o karma, claro). Não sinto mais pena nem culpa. Ando duro com ela, cortante
como aço. De muitas formas, todo o dia ela tenta me matar com sua voracidade e
imensa frustração. Não vai conseguir. Sorry pelo desabafo. Mas acabo de sair de
outro entrevêro...

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