A Maria Augusta Antoun

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POA 1.12.1995

Querida Maria Augusta,
acabo de receber sua carta. Deixei passar uma hora de emoção muito forte, e
muito boa, para responder imediatamente. Que alegria você me dá! Há anos, para
mil pessoas, pergunto de você, Vera, Henrique — ninguém sabe dizer.
Vocês foram — são — tão importantes e queridos para mim. Jamais vou
esquecer da minha “adoção” pela família Antoun, no Leme. Eu completamente
desorientado, desempregado, com 22 anos, sem casa, sem dinheiro — e vocês de
uma generosidade absurda. Sem saber quem eu era, de onde eu vinha. Até hoje
lembro com muito, muito amor. Aliás, tenho uma memória de elefante — e tudo
que você lembra daquele nosso acampamento-safári lembro também. Ai, os
mosquitos...
Vera foi muito importante na minha vida. Carrego até hoje certa culpa por
não ter agido bem com ela. Eu queria casar, ter filhos — foi a única mulher na vida
com quem pensei isso — mas ao mesmo tempo isso atraiçoaria minha natureza
mais profunda (e mais maldita). Depois que vocês se foram Vera me escrevia
semanalmente. Nunca respondi. Não podia ceder: tinha que ir em frente na minha
escolha. Hoje, vezenquando penso que, se tivesse realmente casado com Vera, não
estaria na situação em que estou. Mas sei também que esse pensamento é idiota; as
coisas acontecem do jeito que acontecem e estão certas assim. Não me arrependo
de nada. Mas vezenquando passa pela cabeça um “ah, podia ter sido diferente...”
Podia/Não sei. Agora, nunca me senti tão bem. E tão mal. Bem porque
voltei a Porto Alegre e estou com meu pai e minha mãe, só nós três, naquela
mesma casa. Fiz um jardim lindo na frente. Escrevo, cuido da saúde, do jardim,
faço ioga, acordo e durmo muito cedo. E a vida que eu sempre quis.
Malhereusement, como dizem os franceses, talvez a tenha descoberto tarde demais.
Fisicamente, vou lutando. E barra pesada. Ano passado, quase morri durante
um mês de internação hospitalar. Sobrevivi. Agora estou saindo de um mês
imobilizado (artrite) e lutando com uma hepatite química, resultado de remédios
muito tóxicos, que me dão dores horríveis. Meu(s) médico(s) — um oncologista,
um homeopata e um acupuntor — são ótimos, meus pais e irmãos são doces — e
eu barganho com Deus o tempo todo pedindo tempo para escrever pelo menos
mais uns seis livros. Estou escrevendo. Sei que o tempo que eu tiver será exato. E
sei também que pode acontecer não “um milagre”, mas uma sobrevivência maior.
Há novos remédios e uma maladie muito recente. Talvez a cura esteja chegando?
Sei que tenho tido uma fé enorme. E me sinto um homem de sorte — estou
protegido, cercado de amor. A dor, a morte, pouco importam (ou é só o que
importa), porque são parte da condição humana. Mas que se tenha uma vida
completa, que se possa passar por ela deixando algo bom para o planeta, para os
outros. Vezenquando penso que, no que escrevo, quase consigo. E me sinto
sereno. Mas quero fazer mais.
Não sinto culpa nem revolta, nem remorso, em nenhum momento algum
sentimento escuro. Dores sim, físicas. Mal-estares, fragilidades terríveis. Mas,
observando meu pai com 74 anos e minha mãe com 71 (saindo de duas isquemias
cerebrais), percebo que não há muita diferença. É coisa do humano. E descobri que
somos muitíssimo mais capazes de suportar a dor do que supomos. Vide Frida
Kahlo.
Minha fonte de energia maior é o jardim. Estou ficando craque! Dou certo
principalmente com roseiras, sempre-vivas, crisântemos. As begônias e dâlias não
me aceitam muito. Tem alamandas amarelas tramadas na sacada do meu quarto
(aquele em que você ficou), com direito a cortina de renda portuguesa, e agora vai
subindo também uma buganvília. Tem jasmineiro que acaba de dar o primeiro
botão, tem ráfia, uma palmeira muito exótica, e é tudo assim un reu sauvage, sem
ordem, sem disciplina. E inimigos. Pragas, formigas. Tem que estar atento todo dia.
Descubro truques: gerânios e hortelã, que afastam as pragas. Nos fundos, plantei
um araçá e uma pitangueira, que estão guapíssimos, e boldo, manjericão, poejo,
alecrim, capim cidró. Faço meus próprios chás. É uma vida feliz. A tardinha,
quando tenho energia — últimos meses tem sido raro —, pego a bicicleta e vou ver
o pôr-do-sol no rio. Depois faço ioga com mantras tibetanos. Nenhum desejo
(além de saúde!), nenhuma paixão — e nada faz falta. Tenho tudo que quero, e
acho lindo a vida ter armado esta situação com meu pai e minha mãe. Todo dia, os
três lutando pela vida. Meus outros irmãos, casados, lutando. Bem, embora quase
sempre não se dêem conta. A gente se dá conta tarde de que a felicidade é fácil,
não?
Gostaria de saber mais de você e de toda a família. Sei que Vera formou-se
em Medicina, encontrei-a certa vez (uns 15 anos?) na praia. No meu último livro,
Ovelhas negras, tem um conto chamado Lixo & purpurina em que ela é personagem
(com o nome de “Clara”).
Dificilmente poderei escrever assim longamente outra vez para você. Meu
tempo é medido — saúde, jardim, literatura. E há muita coisa profissional a ser
tratada — traduções, publicações no estrangeiro, crônicas para jornal. Estou
pagando todo o meu tratamento (é caríssimo: acabo de sair de uma radioterapia de
seis mil!), o que me deixa muito orgulhoso, mas também fatigado. Tudo é medido.
Tempo, energia, dinheiro.
Adorei ver que você está morando em Santa Teresa. Em 1983/84, morei um
ano ali no Hotel Santa Teresa. Nunca mais voltei. Mando meu telefone, mande o
seu. Mesmo sem tempo, poderemos quem sabe trocar alguns cartões, alguns
impulsos telefônicos (não gosto muito, nem de fax, nesta fúria informática do
planeta, até agora só admiti este micro — e odeio comida de microondas &
freezer).
Dê grandes beijos em Vera (obrigado pela foto, eu não tinha nenhuma) e
Henrique. E nos outros todos (são seis?), me lembro mais de Tida. Fique feliz.
Receba de Deus uma alegria tão grande e bela quanto a que você me deu.
Todo amor do seu velho amigo Caio F.

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