PARA LER AO SOM DE VINÍCIUS DE MORAES

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Conheci o Rio de Janeiro em 1968. Tarde demais, pensei na época. Já não havia o Cassino da Urca, estrelas de cinema deixando o decote cair nos bailes do Copa ou reuniões de bossa nova na Rua Nascimento e Silva cento e sete cantadas por Vinícius de Moraes. Troppo, troppo tardi eu pensava em italiano por influência talvez de Gina Lollobrigida, vadiando encantado por Ipanema com Maria Helena Cardoso, a Leleninha, irmã do Lúcio Cardoso e autora de uma das mais belas autobiografias publicadas neste país (Por onde andou meu coração?, quem lembra?).
O que eu não sabia nem poderia saber — em parte porque aos 20 anos a gente pouco sabe além da própria fome, em parte porque não podia, nem posso ou podemos, prever o futuro — é que embora parecesse tarde, era ainda cedo. Que paraíso aquela cidade maravilhosa pouco antes da paranóia do AI-5, quando era possível passar noites a fio bebendo chope no Zeppelin vendo entrar Leila Diniz, nossa, como ela é baixinha, olha, meu Deus, a Nara Leão! e quem chegou de jipe com Betty Faria não será o Arduíno Colassanti? Possível sentar à noite no murinho da Alberto de Campos fumando com Isabel Câmara, varar madrugada nas galerias de Copacabana com meu primo e guru Francisco Bittencourt (onde andará Zama, a surrealista da Zona Norte?), largar roupa e dinheiro na areia para mergulhar nas ondas verdes — e limpas — do Leblon. Era possível sim, tudo de bom lá naquele tempo e naquela cidade.
Foi nessa mesma época que Gilberto Gil enviou aquele puta abraço pra todo mundo, garantindo que o Rio de Janeiro continuava lindo. Era cedo portanto, e eu não sabia. Ninguém sabia. Afinal, estávamos ainda mergulhados na poetização da miséria pelo cinema-novo (preciso rever Cinco vezefavela) deflagrada por Orfeu negro, no charme da lata d’água na cabeça que dera lugar ao cantinho, ao violão, garotas de Ipanema ondulantes e Brigitte Bardot tomando água de coco em Búzios. Ó Deus, como é triste lembrar do bonito que algo ou alguém foram quando esse bonito começa a se deteriorar irremediavelmente.
Irremediável — eu sei que é uma palavra terrível, mas é a que me vem quando comparo aquele Rio a este de agora, e isso me dói tanto quanto uma doença fatal — irremediável irremediável repito sem vírgula sentindo saudade prévia do Rio como de um amigo em fase terminal. E sem ser sociólogo nem historiador, tento entender como tudo começou. Quem sabe com a própria poetização da miséria, o câncer medonho crescendo escondido enquanto todo o mundo achava bonitinho o moleque de morro pedindo dinheiro. Nem escola, saúde ou comida, um troquinho, quem sabe um sambinha e tudo bem, um barquinho a deslizar. Até que o moleque armou-se até os dentes para comandar arrastões outros que não os de Elis. O único parâmetro de dar-certo-na-vida que um moleque favelado tem atualmente é ser traficante, e ser então bacana: vídeo, CD e metralhadora para matar, que a vida não vale nada. Chacrinha já não balança a pança e o Rio de Janeiro virou um horror, graças aos governantes que não investiram no trabalho básico de educar, dar opções devida além da marginalidade sangrenta. Graças também a nós, que não vimos a tempo.
O que querem agora, quando é tarde demais, esses que pretendem “dar um jeito na situação”? Tanques nas favelas, quem sabe napalm? Telefona aí pro BilI Clinton e pede uma intervençãozinha rápida, garanto que ele vai achar o Haiti moleza... Como nas doenças incuráveis, só resta rezar? Ou cantar, que é quase a mesma coisa. Então por favor, rezem, cantem pela cidade do Rio, leiam Cidade partida de Zuenir Ventura, com a assustadora epígrafe de Arnaldo Jabor: “O Rio é o trailer do Brasil”. Façamos coisas inúteis e delicadas, suspirando em memória de Vinícius: “que tempo feliz, ai que saudade, esse Rio que se perdeu, mesmo a tristeza da gente era mais bela, era como se o amor doesse em paz”.

Zero Hora, 5/11/1994

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1 comentários:

  1. Acho que é por isso que o Brasil tá de ponta-cabeça:

    Tiraram a capital do Rio-
    que tinha mar
    pra plantar no Planalto
    central-
    onde o mar é o céu.