A Guilherme de Almeida Prado

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Saint-Nazaire, 19.11.92

Guilherme, mon cher,
já há mais de três semanas em França, mas só agora a poeira começou a
baixar. Te escrevo de frente para o mar dramático de Bretagne, coberto de bruma
num 10ª andar — é a tal de “Maison des Écrivains Étrangers”, onde fico até 31.12.
Toda Benedita tem seu dia de Maria Antoinette: me deram um ap. com três
quartos, com absolutamente tudo, para escrever alguma coisa — quelque chose
mesmo, é super relax — para a editora da Maison — a Arcane 17.
Está sendo ótimo. Precisava/precisamos todos (brasileiros, sobretudo
“artistas”) de um pouco de ar. Mal chegando aqui, a notícia por telefone de que
meu ap. em SP dançou. Ficou caríssimo. Gil leva minhas trouxas para um guardamóveis
e, ao voltar, em fevereiro — fico onde? Também não tenho resposta e, no
momento, escrevendo e olhando muito, prefiro receber uma Scarlet O’Hara de
frente e deixar para pensar nisso amanhã.
O melhor de tudo: me deram uma carteirinha para entrar de graça em
cinemas e teatros e tudo. Em Saint-Nazaire — em toda a França — as estréias são
simultâneas com Paris. Pelo menos as francesas, e estréiam uns 10 franceses por
semana. Do que vi até agora, adorei o Lunes de fiel, de Polanski, doentíssimo, e com
um Peter Coyote sensacional — e um cineasta novo, chamado Cyril Collard, que
faria o Sergião Bianchi sentir-se inocente. Esse Cyril — uma lasanha — foi
assistente de Maurice Pialat, bissexual, é soropositivo, escreveu um romance
autobiográfico e transformou-o em filme: é esse Les nuits fauves (Jacira!). Muito,
muito bonito, comovente e contemporâneo.
Vi também uma retrospectiva de um armênio chamado Peléchian
— uns curtas e médias louquíssimos, sempre em P&B, imagens de arquivo
montadas com música.
Hoje à noite queria rever Belle de jour, mas fui recrutado oficialmente para um
jantar com escritores do Báltico — Lituânia, Letônia, Estônia. Fico pensando em
que língua vou falar. Bom. Meu francês está ficando uma beleza, também não há
ninguém por perto que fale português — a não ser minha tradutora Claire, que veio
me receber —, depois volto para Bordeaux.
Vai sair um segundo volume de contos em França, além de Dulce: vai se
chamar Les survivants. Gosto do título. Para meu espanto — o Dragons francês foi
um sucesso.
A bruma espessa dissipou-se, c’est le crepuscule. Dá pra ver Saint-Brévin les
Pins do outro lado da baía. Volta e meia entra um navio russo ou dinamarquês ou
sueco ou italiano ou etc. no porto. Minha janela do escritório dá para o porto e para
a zona boêmia — o Petit Maroc. Mas tenho me comportado.
A lasanha da cidade é o dono do bar Le Skypper — o Ritz daqui
— que perdição! Fica bem embaixo do meu prédio. A lasanha em questão é um exjogador-
de-futebol-da-seleção-mundial-da-Polônia-que-largou-tudo-para-viver-em-
França. Chama-se Cristophe (falamos muito sobre Maradona e Pelé: falsa!) —
como te descrever uma lasanha d polonesa? Mas — hélas! — tenho me comportado.
Diga à maravilhosa, estonteante e inenarrável Zu-Val que estou apaixonado
por Jane Birkin cantando canções de Serge Gainsbourg. Por que a Birkin — que
está mais do que caidaça — não faz sucesso no Brasil? Também ouço muito a
Nana Caymmi daqui — Barbara. E fiz vários amigos novos, todos meio bêbados
— afinal, é a Bretagne —, mas a melhor é Marina, que tem nove anos e sabe tudo
sobre Van Gogh. É filha do Christian, o editor da Arcane, que é apaixonado por
Florianópolis — que chama de Florripá. Custei a entender.
[À margem: entre 13h/ 14h mato saudades assistindo Escrava isaura, e Dona
Beija no canal 3. Lucélia Santos dublada é pior que a Maitê!] Daqui vou virar
bolsinha, em janeiro, em Amsterdam, para umas leituras (Dulce está sendo negociada lá). Köln, onde mora meu tradutor alemão, Gerd, e a Frankfurt, ver Ray-
Güde a agente. Acho que fevereiro volto ao Brasil, mas — cá entre nós — não
sinto saudade nem vontade. Como tenho que estar na Alemanha em junho, quem
sabe arrumo uns pratinhos para lavar?
Poucas vezes me senti tão bem. Não estou radiante de felicidade,
mas estou sereno. Soube da derrota de Benedita e de Suplicy pelo me deu tristeza.
Não tem remédio? Não sei nada daí, fora isso. Tenho MÁGOA de ter saído sem
ver Perfume de Gardênia, seu sacana! E meu último encontro com Zu-Val foi durante
um tiroteio unbelievable no Conjunto Nacional.
Durmo cedo, acordo cedo. Cozinho, caminho na praia. Leio muito, vou
sozinho a uma praia e, entre ruínas, deito-me sobre as folhas, conchas, pedras.
Algumas frases geram e vêm inteiramente redondas na cabeça. Anoto, converso
com Isabelle, que mora na janela da cozinha — do lado de fora: é uma gaivota.
Talvez tudo isso seja, quem sabe, um lugar muito próximo da felicidade?
Beije Zuleika por mim, com carinho. Te mando as melhores vibrações do
outro lado do Atlântico. Seu velho
Caio F.

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