A José Márcio Penido

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SP, 2 de novembro de 1990.

Josézim, querido,
dia 2 de novembro, eu aqui pensando nos meus mortos, que são tantos, meu
Deus, em frente a um vaso branco de louça, cheio de bocas-de-leão daquelas rosa e
branco, miudinhas, com saudade de você. Voltei segunda última de um, digamos,
périplo por Ribeirão Preto, Santa Maria da Boca do Monte, Canela, Porto Alegre,
lançando livro, dando palestras, fazendo amizades, conquistando vitórias, como
diria Jorge Ben, lembra? Resultado: um petit stress que estourou em — o nome eu
acho bárbaro, a coisa em si nem tanto — hérpes zóster. Bolinhas, bolotas, bolões
inflamados na barriga & costas, como um cinto (zóster em grego é cinto, não é
hilário? lembrei do zóster de Hipólita, a rainha das amazonas).
Bueno: olhei aquela coisa e tive certeza. Sarcoma de Kaposi, comigo tudo é
tão doido que queimei todas as etapas da Aids e fui direto à fase terminal. Tudo
isso sozinho num hotel do século passado, em Ribeirão, com a janela do quarto
dando para as ruínas de um teatro incendiado. Fui ao médico: herpes braba. Texto
dele: Se não secar dentro de uns dez dias, aconselho você a fazer O TESTE. Secou.
Ufa! Mais uma vez, deve ser a terceira, conquisto um negativo por tabela.
Paranóias à parte — e que coisa toda tornou-se essa convivência tão diária,
tão estreita, com a idéia ou a possibilidade da Morte (maiúscula respeitosa)—, ando
muito bem. Dulce Veiga foi um livro que carreguei na cabeça e no coração durante
13 anos, e segurei pelos cabelos durante um ano de trabalho duro. Até hoje não sei
como consegui escrevê-lo numa Hermes Baby. Foram umas duas mil páginas para
tirar pouco mais de 200. Resultado: desvio de coluna. Não me queixo, não. Cada vez mais literatura para mim é como aquele tipo de escultura em pedra bruta.
Dentro da pedra há uma forma, que você precisa localizar e tirar a golpes de
formão. No braço, no muque. Quando cheguei à frase final — que já existia desde
que escrevi a primeira — tive uma crise de choro de quase uma hora. Meio
exaustão, meio orgasmo, meio não sei o quê. Só repetia, na terceira pessoa. Caio F.
Caio F. você conseguiu.
Vai indo acho que bem. Tem saído muita coisa nos jornais e tal e tudo, mas
curioso como isso já não importa. O que vale são as opiniões de pessoas próximas,
e têm sido, também, muito gostosas.
Quando você esteve em Sampa, e furei aquele almoço, eu estava em plena
fase de galinhagem pós-produção. Após um ano aplicadíssimo, sem sair de casa,
tinha me baixado uma Nicinha de frente e eu andava dividido entre um jogador de
futebol (do segundo escalão, coxas opíparas) e um físico nuclear. Uma combinação
tão esquizofrênica que resultava: perfeita. A noite anterior ao nosso almoço, caí de
boca não lembro mais se em pênaltis, escanteios, buracos negros ou quasars. O fato
é que desliguei o telefone e, quando emergi, lá pelas seis da tarde, encontrei seus
recados, liguei para sua casa e só o silêncio respondeu. Caralho, pensei, depois de
ter furado o jantar de despedida, apronto mais essa. A culpa foi do Deus Dionisios,
sorry.
Agora ando mais calmo. Não muito, verdade. Mas desde que ganhei meu
PhD em desilusão amorosa, aos 40 anos, tenho me divertido como nunca. Ai, que
maravilha arrebentar o mito do Amor Eterno! Me associei ao Zé Simão na
campanha “sem medo de ser biscate”, e assim vou indo, até que algum Richard
Burton resolva me dar um diamante do tamanho do Ritz (o hotel, não o bar,
please). Pouco provável.
Até lá, tento ser profissional.
Estou aflito. Os dragões, com o título de Dragons don‘t go to Heaven, estão (ou
está?) sendo lançado em London, London na última semana de novembro,
primeira de dezembro, durante uma grande feira de cultura brasileira. O editor e
minha agente Ray-Güde insistem para que eu vá. Acontece que não tenho dólares,
e tem sido uma batalha tentar liberar aquela estonteante passagem para Paris do
Prêmio Moliére. Mas é possível, afinal, que eu esteja mesmo indo para Londres fim
deste mês. Preciso investir, veja só, na “carreira internacional”, e em janeiro tem o
lançamento da tradução francesa, em fevereiro um circuito de leituras pela
Alemanha (com final em Berlim, sem muro!). Com a edição inglesa, Ray já tem
armadas a Escandinávia, Holanda, Tchecoslováquia, sei lá que mais. Portanto, meu
futuro parece mesmo ser o Nobel, lá pelo ano 2000, se não morrer antes de susto,
de bala ou vício. Sendo que esta terceira opção naturalmente é a mais provável.
Tudo isso me deixa com calafrios na barriga, e uma certeza maluca de que o
que realmente quero — como a gente é louco — é na verdade o oposto de tudo
isso, entende? Tipo Dulce Veiga, mesmo.
De tudo que tenho vivido ultimamente, o mais gostoso foi uma semana
passada em Porto Alegre, chez Zaél e Nair, que sempre perguntam por você.
Jardim com rosas, mesa posta com café da manhã, bolo de milho, taquareiro no
fundo, passarinhos, silêncio. Uma ilusão de eternidade. Acertei com Nair, que está
ótima, que aquela casa será minha por herança. E armo mentalmente para mim um
futuro assim, na província, cuidando de rosas no jardim, fazendo canteiros com
arruda, alecrim, manjericão. Será? Ando enfastiado, esgotado do eixo-Rio-São
Paulo, é veneno puro, no pior sentido, feira das vaidades inúteis, preparação de
uma úlcera, um enfarto, coisas assim. Estou cada vez mais bossa-nova,
espiritualmente sentado num banquinho, com o violão no colo. Deus, como eu
quero paz, Zézim.
Tenho sido meio obrigado, por força do lançamento do livro que, afinal,
precisa vender, a fazer caras e bocas pelas tevês e jornais da vida. Desgastante,
tristinho. Mais que tudo, gosto de comprar flores para a casa, deitar no sofá
olhando a palmeira que começou a entrar janela adentro (veja que bênção, em São
Paulo), acender um cigarro e ficar olhando as nuvens. Estou achando uma delícia
ter 42 anos, mal posso esperar pelos 50, 60, 70, com o baú da memória
absolutamente repleto e o coração sabendo mil coisas de tudo. Ando apaixonado
por viver, com tudo que isso implica, e espantado pela Passagem do Tempo
(maiúsculas respeitosíssimas).
Terça, dia 6, devo ir ao Rio. Mas vou e volto no mesmo dia, só para uma
reunião na casa de Vicente, um projeto secretíssimo para TV. Não vai dar para
ver você, acho, mas vou tentar. Dia 15 tenho que ir a Buenos Aires para algo como
um congresso de escritores latino-americanos, volto lá pelo dia 22 e preciso então
arrumar a frasqueira para enfrentar London. Sinto a tentação de quedarme por 1á,
longe das barbaridades brasileiras (Delfim Neto vem aí), mas ao mesmo tempo há
coisas por aqui. O velho e bom Fernando B.90 está animadíssimo com a
possibilidade da vitória de Fleury — argh! — e a continuidade dele mesmo na
Secretaria de Cultura, aí tem mil seduções de trabalho e tudo e tal. Não sei, deixo
rolar. Vou
olhar os caminhos, o que tiver mais coração, eu sigo.
Acabei de escrever um texto sobre o Vicente, para a montagem paulista de
Solidão, a comédia, com o Diogo Vilela — e citei você. Durante anos você foi a ponte
entre nós, lembra? Ontem fui ver, finalmente, A estrela do lar, e naturalmente pensei
em você. Ri muito, e admirei aquela estrutura de realidade e sonho que o Mauro
armou, riquíssima, fascinante. A peça é um sucesso total por aqui, e tão arquetípica
que, de alguma forma, é a adolescência de todos nós. Saí feliz e fui jantar no
Montechiaro, onde não ia há pelo menos cinco anos. Acho espantoso viver,
acumular memórias, afetos. Ando assim, descontínuo, exaltado, mas sempre com
carinho enorme por você.
Duas da tarde, preciso começar a preparar o modelinho para enfrentar um
programa de adolescentes, ao vivo, na TV Cultura. Brrrr! Impulsos de ligar, mentir
que estou com febre, assistir pela terceira vez Cinema Paradiso, chorar novamente na cena dos beijos. Mas vamos lá, tudo por Dulce Veiga. Divulgue ele(a), sinto que é
como se fosse meu primeiro livro, no sentido de que me desembaracei do umbigo e
cheguei mais perto da ficção, do Brasil, do humano alheio, não apenas meu.
Saudade, todo carinho do seu velho
Caio F.

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