A Jacqueline Cantore

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London, 10.12.90

Jackie C.
Rapidinho entre um conhaque e um Chet Baker. Aaaaaaaaaiiiiiiiiiii! —
(sta’d’nervos.) Lancei livro, dei entrevista pra Time, pro Independent, saí na Time Out,
falei na BBC. Agora estou aqui waiting for a Nobel, claro.
Londriná-á! Mas guria, there’s no town like London. E eu vou — ficando.
Comecei a procurar um quartinho e job. Tipo garçom, pratos, things like that.
Tenho que ficar ou até 26 de janeiro (caso fique na miséria — é o prazo da
passagem), ou até fim de fevereiro (tradução francesa), ou até 26 de maio (fim do
visto que ganhei). E eu simplesmente não sei. A idéia de voltar ao Brasil me
horripila. Aventureirá-á!
Você acredita que encontrei o Terence Stamp no metrô? Pois é, coisas assim.
E fui à Dussex, visitei Monk’s House, onde morou V. Woolf, fui até o rio Ouse,
onde ela se matou, e peguei uma pedrinha do jardim dela! T’e juro que nunca
pensei... Ainda por cima hoje nevou, e encontrei um casacão de soldado alemão no
Camden Market por £ 15! Ah, Jacqueline C., me é muito HARD visualizar a Av.
Paulista.
Tudo meio confuso. Eduardo muda para Lisboa dia 15, posso ficar com Ray,
o editor, mas é Brixton, longe e brega. Então procuro a room of one’s own. E JOB.
Tem que dar certo. Mas nas próximas semanas, estarei sem endereço. Ou com o
Ray Keenoy. Mas é melhor com a Cidinha, a Cidinha da A-Z, que está linda e
lépida. Ray vai para a Itália, e eu não sei para onde. Não sei nada. É delicioso.
Fujoná-á! Espero não ter deixado muitos pepinos para você aí. Me avise de
qualquer coisa que eu possa resolver daqui. What about your Xmas? Come to
London.
Não sei nada de Brasil!
Você ficaria louca vendo John Malkovich morrer de pé no deserto em The
sheltering sky. Ou passeando do meu lado no Regent’s Park coberto de neve,
completamente perdido, ontem à noite. E dar em Chalk Farm orientado por um
jamaicano. Juro! — que falava tudo em rap, entendi nada, mais foi [ilegível] yeah e ‘o
nice e deu certo. Venha ver Maria de Medeiros lendo Anais Nin em Henry e June.
Venha provar o molho à bolonhesa distribuído por Paul Newman à venda nos
melhores supers.
Chet Baker canta. O brandy aqui é baratíssimo. Morro de saudades de você.
Curioso: percebi que não tenho nada a fazer no Brasil agora.
A solidão é indescritível, mas eu quero mais. Te mandei carta para Sônia,
deixei aí o endereço dela. Encaminha, please. São meia-noite, tem floquinhos de
neve batendo na vidraça. Penso: quando você não tem amor, você ainda tem as
estradas. And it’s OK. Conheci um fotógrafo inglês chamado Garreth, e outro
fotógrafo italiano chamado Paolo Buzz, Aqui tem até LANCES. Todos muito sós.
E uma doçura no ar.
Te mando um autêntica winter’s leaves, + bobaginhas, send me nice vibs:
estou perdido: feliz na estrada, alone as always.
[…] .
Lots of love, nesta arrancada para o Nobel, from your always. Viajadá-á!

PS — Ask to Sônia for STRONG TAMBORES, please!
PS — Ray Keenoy acha que ganharei o Prize de melhor autor traduzido!

Caio F.



London, 5 para 6 de janeiro de 91.

Véspera de Reis
Dear and lovely Jackie
or
Gorgeous and brilliant Jackie
or
Old and good Jackie,
TV ligada sem som (bem, quase sem) na BBC, onde passa Apocalypse now —
eles vão descendo o rio, a cabeça cheia de LSD, mal suporto esperar para ouvir “the
horror, the horror,,.”. Preciso falar com você tão longamente. Me consolo pensando
que, mesmo que eu estivesse aí na Haddock e você ali na Jaú, ligaria e encontraria
uma answeringmachine (acho hilário: “máquina de responder”, pode?) ligada. Vou
tentar assim por escrito.
Comprei esta máquina ontem, custou mais ou menos 50 dólares, é uma
brava Smith-Corona absolutamente azul (ou verde) calipso, encontrada numa
second-hand amiga em Notting Hill, atendida por punks absolutamente imundos.
Hoje fiz um cleaning up nela, e penso seriamente em chamá-la de Dorothy (Parker
and Lamour, uma dupla homenagem). Difícil encontrar. Não me adaptei com a
elétrica poderosa que Ray me deixou e, besides, não há mais nada ARTESANAL
nesta porra de país. Só fax, micro, computers, etc. E continuo pré-eletrônico. O
teclado, meu bem, é british, portanto sem acentos, cedilhas (não é muito engraçado
cedilha? Me lembrei agora do Sérgio Lulkin falando san-dá-li-a).
Bueno. Tomei uma chuva de PEDRAS DE GELO pelas fuças à tarde, já
bastante flu e, para me consolar, me dei de presente uma garrafa — juro — de
vinho Amapola, rosso, feito em Sant Sadurni d’Anoia, Spain.
Hoje tive medo. Estou vivendo numa espécie de Harlem londrino. E
muitíssimo Sammy and Rose, embora eu preferisse que fosse mais para Beautiful
Laundrette. Em cima, uma negrona grita o tempo todo fuck you little devil! I’ll kill
you, bastard: para nigrinhos. Grita mais coisas que não entendo, mas me soam mais
para David Lynch do que para T.S. Eliot.
[página perdida]
Escrever cartas é algo que, no estrangeiro, tem outro gosto. Muito melhor.
Um tanto Jane Austen, concordo. E receber então?
Dei uma mudada de canal rápida, rap. Tem horrores aqui. Negredo. Ontem
vi o Boy George de cabelo muito curto, cantando refrões krishnas com um bando
de hares. Inenarrável. Está com uma cara boa, o Menino, melhor que nos tempos
da herô, mas com um olhar assim meio cabeça...
Hoje me senti perdido.
Queria consultar búzios, runas, pai, mãe, de santo ou não, qualquer coisa que
me APONTASSE O RUMO, caralho. Estou com Netuno exatamente conjunto à
Lua Natal e oposto MC. Vai passar, você diz. E eu penso, certo, e logo-logo vem
Urano... Ontem pensei: Caio F., relaxe, mesmo que você não queira ou fique
exausto, este é um momento em que o DESTINO manda. Deixe-se levar. Well,
estou tentando.
Segunda, fmalmente, quero mandar minha primeira matéria para o Estado.
Vai ser sobre The garden, o último filme do Derek Jarman (que tem HIV positivo: é
o Cazuza do cinema inglês), que estreou ontem e é lindo. Fiz umas outras
pautinhas, vou tentar. Preciso muito ficar aqui! E tudo suspenso.
Ray Keenoy volta da Itália daqui uns 15 dias. Não sei se quero morar com ele,
nem se ele comigo, percebe? Patrícia, que conheci aqui, de SP, quer que vá morar
com ela e Orly, uma moça de Tel Aviv absolutamente ótima. Mas está apaixonada
por mim, dito e assumido. Ela é uma femme meio fatale assim meio Paula Dip,
arfante porém (sometimes) espiritual. Tem sido generosíssima e muito, muito legal.
Mas no réveillon me arrastou para a cama — NÃO FIZ NADA, JURO — e fica
uma coisa tão assim. Você não pode imaginar (ou pode?) o que é uma solidão de
inverno numa terra estrangeira.
Enfim, isso na área afetiva. E eu não quero nada. Saí daí muito galinha,
muito técnico, quero concentrar energia agora. E de mais a mais acho que é meio
tarde para, digamos, mudar-meu-enfoque-sexual-da-vida.
[...]
Além dessa enfermaria afetiva, tem outras. Posso desabafar?
E importante ficar aqui. Para a minha “carreira”, seja lá que hell ou cuernos
queira dizer isso, para a minha, digamos, melhoria como ser humano & profissional
(vixe, que discurso!). Tenho coisas legais armadas em relação a Dragons, uma leitura
para o South Bank, outra para a ICA, que são coisas dificeis até dos próprios
britishs descolarem.
E Claire Cayron, a tradutora francesa (que está na Austrália até final de
fevereiro), escreveu dizendo que TALVEZ possa me conseguir uma espécie de
bolsa para uma cósa chamada Maison des Écrivain’s Étraners em Paris (1.400 francos,
cerca de 800 dólares por mês, mais casa), que eu segure aqui. E fazia eu algumas
fantasias about quando liga Ray-Güde de Frankfurt, perguntando se quero
concorrer à bolsa do DAAD — aquela que o Loyola ganhou — e ficar, ano que
vem, um ano em Berlim com ap. e uma bolsa de 3.500 marcos (2.500 dólares:
aprendi a fazer câmbio mentalmente na boa, e rápido). Mas que é importante que
eu fique aqui mais um tempo & tudo & tal.
Sinto impulsos covardes, assustadiços e escapistas de voltar. Também
porque sinto saudade, muita, de tudo. Mas sei que não devo. Este Netuno me
embola tudo. Se não voltar agora dia 25/26, perco a passagem, o que significa
agora, meu filho, você vai ter que rebolar. Estou praticamente certo de que, well,
rebolarei com o máximo de GARRA. Mas a confusão e a solidão dessas decisões
me deixam assim, como direi, sartreano.
Há uma crise braba aqui, também. Eles dizem que foram os anos Thatcher.
Visto de longe, do meio de uma crise certamente mais terrível, pode parecer very
charming, very stylish. De perto — pausa para ouvir Marlon Brando, que começou
a arfar ao fundo — não consigo deixar de achar essa seqüência sempre meio jacira,
uma jacirice, digamos arquetípica, mas anyway, jacira — a crise, como ia dizendo, é
pesada. Tem mendigo pela rua quase que nem SP ou Rio. Naturalmente que
mendigos com mais dentes, menos feridas, um ou outro com uma boa argola no
nariz ou um cabelo vermelho punk (tem muito ainda).
[...]
E eu no Harlem.
Tudo é um desafio.
Hoje à noite eu voltava de Hampstead tortíssimo de haxixe, com esta
Dorothy nos braços, ajudei uma moça a descer um carrinho de bebê pelas
escadarias de Euston Station (um labirinto), sentei todo catito no meu tub-zinho,
ao lado de um senhor de barba que lia o Tbe Guardian, quando um negrão (põe
negrão nisso) começou a berrar fuck em todas as direções, correr de um lado para o
outro dando socos nas portas, rindo histericamente. Havia também uma moça com
ar de Emily Bronti e esgazeadíssimos olhos azuis no canto. De repente, no meio do
túnel a luz quase apagou. Saia total. O trem parou e todos sairam no galope. Vim
subindo o morro (como s’as, moro no alto de Tulse HILL), e o senhor grisalho
vinha na minha frente olhando freneticamente para trás.
Claro, tudo é muito perigoso. Aí também era.
Mas a gente fica tao desamparado. Você nem sequer compreende — eu pelo
menos, com meu inglês precário — direito o que dizem. Pausa.
WOW! Jim Morrison começou a berrar “come on, yeah!” — a propósito,
está por estrear um filme sobre a vida dele. Como este filme é belo, Jackie C.
O Martin Sheen pirou (ou será o Charlie? qual afinal é o filho?) e trucidou o
Marlon Brando. Agora (pausa): “The horror, the horror”. Acho que a pobre
Dorothy já sentiu o cortado brabo que a espera.
Estamos nos dando bem.
Carlinhos veio de Paris ficar uns dias aqui. Está em Victoria, na casa de
Mercury, que morou no Brasil cinco ou seis anos (em Porto), quando era Jacira.
Agora casou, tem um filhinho, dormi lá uma noite, uma casa deliciosa. Carlinhos,
você sabe, é aquele meu amigo HIV positivo. Adoro ele, passeamos muito. Falando
dos meus medos, ele me contou dos 20 dias que passou na India em novembro (ele
é fashion-designer [...]).
Acho que é só, das objetividades.
Mas então fica assim: nas minhas fantasias mais UPzinhas, primeiro vou com
uma bolsa para Paris, depois com outra para Berlim, e ganho HORRORES de
dinheiro, prestígio, espero que também alguma espécie de happyness. [À margem:
E o Nobel, claro.] Mas minhas fantasias mais DOWNzonas, perco a passagem, as
bolsas não rolam, fico sem dinheiro pra voltar e entro numa BAD de cabeça. Sure,
deve haver um ponto médio de equilíbrio entre esses dois extremos. Mas ando me
sentindo assim bem machona, acho que seguro o que rolar. Também porque,
Netunos e Uranos à parte, tenho 91 inteiro uma sextilha Plutão-Sol.
Teve coisas lindas.
Ana Carolina me ligou no réveillon, Breda também. Eu não tava (dei aquela
sapateada em Hampstead...), deixaram recados muito carinhosos na secretária. Não
posso ligar, Ray — o dono da casa — me disse para não ligar que é caríssimo, e a
conta telefônica aqui NÃO é especificada, e, enfim. Só quando sentir firmeza. Tem
um cineasta inglês, Simon não sei quê, querendo fazer um curta de The red little shoes,
aliás me dei de Natal uma edição completíssima, com ilustrações originais, das
histórias de Andersen — e um projeto novo meu é um livro de contos chamado
Malditas fadas, com essas histórias reescritas adultamente, bem como o Red shoes. Ah:
tô lendo super em inglês, jornal, literatura. Andei lendo uns contos de Grahan
Greene lindíssimos, e um cara chamado Roald Dahl, que morreu há um mês e
ninguém conhece aí. Meu cabelo cai horrores e minha pele, pelos aquecedores, é
um couro. Mas descobri um sabonetezinho de vitamina E num super meio Kastelão
aqui de Brixton que é um luxo.
Por aí vai. Angustiada? Sempre, mas sempre também futilíssima.... Tenho
uma outra lauda vazia ainda, e vou escrever bobagens, mais de meia garrafa de
Amapola (o rótulo é incrível).
Outro dia fui num bar espanhol chamado La Gansa e sabe o que tocou a
noite toda? Clara Nunes. Juro.
[...]

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