A Maria Lídia Magliani

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London, 25.01.91

Maria Lídia, dear,
estou impressionado. Sonhei esta noite com você. Eu estava com Eduardo San
Martin e íamos visitá-la. Você morava numa casa estranhíssima. Um sobrado
verde, verde luminoso, e a casa era construída de perfil. Você estava deitada numa
cama enorme, com lençóis azuis brilhantes, cetim ou algo assim. Parecia muito
bem. Eduardo deitava do seu lado, eu ficava enciumado e ia embora. Na saída
encontrei Gracinha. Do outro lado da rua, por uma janela, ficávamos olhando a sua
casa. Gracinha dizia que as paredes eram muito finas, por isso a casa parecia “de
perfil”, e que era uma casa muito louca. Que ali tinham morado Rita Lee e Olga de
Sá (que eu não tenho a menor idéia de quem seja, mas era esse o nome — eu ainda
perguntava “mas não era a Olga Savary”? E a Gracinha insistia “não, era a de Sá
mesmo”).
Acordei depois de meio-dia, como sempre (neste inverno, meu bem, que
fazer senão hibernar?) e Ray, no caminho do banheiro, me estendeu a sua carta,
Aerograma, aliás, Que devorei, espantado. Tudo isso é pura verdade, e eu concluo
que, de alguma forma, nossa ligação mental? espiritual? psicológica? continua
sempre muito forte.
Vocês aí falando na guerra, e nós aqui no meio dela. Uma loucura. A TV e as
rádios transmitem o tempo todo boletins malucos e, na cidade, a paranóia do
terrorismo iraquiano tomou conta. Bombas, coisas assim. Os metrôs estão cheios
de cartazes dizendo como você deve se comportar se encontrar um pacote estranho. Tudo tão absurdo que não consigo levar muito a sério, parece filme.
Conheço alguns ingleses que estão sendo convocados para ir para o Golfo, que tal?
No meio disso, eu aqui, no apartamento do meu editor inglês. Na verdade,
irlandês. Estou no momento preso em Londres por alguns compromissos, leituras
e palestras, e à espera de que duas prometidas bolsas — uma para a França, outra
para a Alemanha — finalmente pintem. Também a tradução de Dragões estará
sendo lançada na França no começo de março. Resulta que, dependendo de
decisões alheias — e isso me irrita muito — não posso me mover. Fico até não sei
quando.
Mas sonho. Depois desta, quando voltar ao Brasil, queria demais começar a
providenciar uma mudança de São Paulo. Não sei para onde. Algum lugar onde eu
possa plantar rosas. Isso é FUNDAMENTAL. Quero porque quero cultivar
roseiras.
Ando muito, muito só. Leio demais — minha leitura em inglês se soltou — e
vou ao cinema furiosamente (você ia adorar Henry e june, sobre o caso de amor
entre Anais Nin, Henry MilIer e a biscatona da June, mulher dele). Caminho, olho
as caras e as coisas nesta Babilônia onde todas as raças e todas as línguas se
cruzaram. Londres continua gentil, embora muito pobre, e também cinzenta.
Realmente, é um melancholic place, e talvez por isso mesmo, I love it.
[...]
Eu estou cada vez mais Bambi. Adoro comprar flores e acender incensos e
fazer pequenas faxinas arrumando cantinhos “artísticos”. Talvez seja um tanto
kitsch, mas é a forma — saudável, suponho — que encontrei de reagir não só à
feiúra de fora, que é cada vez maior, mas também à feiúra de dentro. Que embora
controlada, você sabe, às vezes ameaça explodir.
Antes de vir para cá mandei um exemplar de Dulce Veiga, não sei se você
recebeu. Sim? Ele me deu muito, muito trabalho. Agora voltei a anotar umas
histórias novas, um projeto de livro com o título de Histórias estrangeiras.
Anteontem, fui ver a exposição de Egon Schiele. Fiquei deslumbrado,
principalmente com os auto-retratos. Maria Lídia dos Santos Magliani Lispector
Lessing Woolf do Amaral Garibaldi: eles SANGRAM. São tão pungentes. Tem uns
Klimts também muito bonitos, mas perto do Schiele são róseos demais. Eu não
queria ir embora, fiquei todo arrepiado. E um tipo de pintura que parece punk, e o
cara morreu em 1918, com menos de 30 anos. Semana que vem começam uns
impressionistas na mesma galeria — e certamente irei correndo para rever Van
Gogh e toda a sua luz.
Como está a tua vida profissional? As pinturas e tudo, fale-me mais sobre.
Aquelas ultimas que vi na Paulo Figueiredo em SP achei deslumbrantes, e uma das
coisas que mais sinto falta aqui em Londres são as minhas Maglianis das paredes de
SP.
Que bom que você tem um namorado. Eu não, há tanto tempo. Essa coisa
de Aids realmente... A propósito, você sabe que o Guto Pereira morreu no final do
ano passado? Pois é, já foram tantos. Volta e meia começo a enumerar, e me dói
tanto a morte de Orlando. Luiz Arthur (não se preocupe, ele está ótimo) ligou
ontem de Paris e deve vir no final de semana.
Guerras, pestes, são os tempos. Estou louco para cair fora deste vendaval
contaminado que virou o planeta. Numa muito boa, invejo e admiro a vida nova
que você inventou/conquistou. No fundo, nunca saí de Santiago do Boqueirão.
Beije Marijô por mim.
Os melhores votos de conclusão de sua catedral. Cuide-se, me dê notícias
(mais legívei tua letra está ficando pior que a minha), me queira bem.
Todo o carinho do seu velho
Caio F.

PS — E TENHA UM FELIZ ANIVERSÁRIO!

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