A Guilherme de Almeida Prado

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London, 12 de fevereiro de 1991

Guilherme, querido,
São afinal quase três meses, e muita história pra contar. Você vai ter que ser
paciente e ler assim mesmo, sem acentos, nesta british typerwriter que comprei
numa lojinha punk em Notting Hill.
First: MORRO DE SAUDADE. Que coisa maluca a distancia, a memória.
Como um filtro, um filtro seletivo, vão ficando apenas as coisas e as pessoas que
realmente contam.
Second: para te deixar nervoso. Ray-Güde, minha agente alemã, vendeu Dulce
Veiga para as Editions du Seuil, a segunda editora mais poderosa da França (a
primeira, sure, é a Gallimard). Um trechinho do parecer: “Le roman Dulce Veigá
refléte bien une societé bresilienne en pleine crise d’identitê. Le style est a fois
poétique et efficace, et sert tantôt la violence du monde de rock, tantôt la nostalgie
des annés 60 et de la bossa-nova”. A editora Anne Morvan quer fazer um grande
lançamento fim deste ano ou começo do próximo. Ray-Güde, muito animada, está
vendendo Dulce também para uma editora alemã, e acha que pode negociar Suécia,
Holanda, Tchecoslováquia.
Então, imagina. E se o Jean-Luc Besson se apaixona pelo livro? E se ele cai
nas mãos do Stephen Frears? E se o Jean-Jacques Beineix me oferece milhões por
uma versão com Isabelie Adjani no papel de Dulce (envelhecida, claro)? E se lá de
Madri Almodóvar comunica que Carmen Maura adoraria fazer o papel?
Guilherme von Almeida Pradish, vamos fazer esse filme? Com essas
traduções, todos aqueles poderosíssimos e misteriosíssimos produtores estrangeiros
interessados em você poderiam se animar ainda mais. Enfim, não sei como estão as
coisas aí — ou sei através de Ana Carolina, que tem mandado umas cartas muito,
muito desanimadas (embora esteja com planos para um filme na Galícia, e quer
minha ajuda no roteiro). Espero ARDENTEMENTE que esta te encontre em
plena filmagem de Perfume de gardênia e que você, ao contrário da bela Carolina,
esteja vendo saídas.
Pausa para olhar pela janela.
Está tudo coberto de neve, há duas semanas. A temperatura chegou a menos
15 graus, mais frio que Moscou, que tal? Quase não sinto frio, mas acho a neve
simplesmente sinistra. Fica um silêncio estranho, uma melancolia dilacerada no ar.
Hoje à tarde os meninos ficaram brincando no TRENÓ no parque aqui em frente,
pode? Explodiu uma bomba no Ministério da Defesa, e tudo está muito paranóico
com a guerra — que aqui é muito real.
Mas eu ando bem, calmíssimo. Estou em Brixton, um bairro com muitos
negros, principalmente jamaicanos, e com um mercado africano simplesmente
sensacional, hospedado no apartamento de Ray, o editor inglês.
O que é bom, porque sou obrigado a falar inglês o dia inteiro, e estou me
virando que é uma beleza, lendo loucamente e até dando informações na rua. Me
associei em dois cineclubes, o Ritzy, aqui em Brixton, e o Everyman, de
Hampstead. Vou ao cinema sempre que posso, isto é, quase todo dia, e tenho visto
coisas ótimas. Adorei The garden, o filme que Derek Jarman (o Cazuza do cinema
inglês, com HIV positivo há cinco anos) fez no jardim da casa dele. Fez com vídeo,
super-8, depois ampliou, montou tudo na moviola — baratíssimo — e ver o filme
me fez pensar que as lamúrias dos cineastas brasileiros não têm muito a ver. Se
você quer, você faz. Ontem vi Lhe Grifters, o novo Stephen Frears, um noir
pesadíssimo, um pouco na linha David Lynch, sem o humor — e com uma
Anjelica Huston fantástica.
Faz uma NAJONA naquele estilo Joan Crawford ou Bette Davis, os críticos
todos aos pés dela, dizendo que é a atriz dos anos 90. Fiquei fascinado com The
sheltering sky, de Bertolucci, que deve estar chegando aí, e me preparo para ver o James Ivory que acaba de estrear, com Paul Newman e Joanne Woodward. Tem
muita, muita coisa, e aquelas sessões repertory, tardes vendo três, quatro filmes.
Começo de março, acho, estou indo para a França, para o lançamento da
edição francesa de Dragões. Depois quero ir até Ibiza ver meu amigo Augusto, que
está abrindo um restaurante lá, e se houver dinheiro, dar umas voltinhas por
Barcelona e Madri. Enfim, maio/junho devo estar voltando. Tenho trabalhado por
aí, vou revisar todos os meus livros esgotados, que a Siciliano está comprando, e
traduzir o David Leavitt — um escritor americano de apenas 30 anos, autor de um
romance lindo chamado Equal affections e uns contos, Family dancin e A place I’ve never
been — para o português. Também ando cheio de anotações para um livro novo,
que penso em chamar Histórias estrangeiras.
No mais, ando muito só. Sexo e amor parecem coisas em desuso aqui. Olho
tudo com olhos muito abertos, mas não deixo de comparar esta Londres de agora,
invadida por todas as raças, caótica e não muito limpa, àquela outra onde morei há
quase 20 anos atrás. A decadência é violenta. Outro dia um antropólogo amigo de
Ray dizia que a Inglaterra é o mais novo país do Terceiro Mundo. O que tenho
recebido de notícias daí — pacotes, congelamentos — me faz pensar que não só o
Brasil vai mal (mas penso que o Brasil é isso mesmo, sempre será), nem só a
Inglaterra, mas estamos metidos numa medonha crise que envolve o planeta
inteiro. Dá medo. Há possibilidades de conseguir uma bolsa para ficar em Berlim,
ano que vem, durante um ano — e eu quero, sim. Acho embriagador estar no
umbigo do furacão. Você não imagina a sensação, outro dia, de sair correndo de
um metrô com uma ameaça de bomba. Ao mesmo tempo em que é assustador,
também não consigo me convencer de que é verdade. Parece filme.
Ah, ia esquecendo. Tem um diretor inglês chamado Steve Brown, até agora
só fez curtas, é muito jovem (e bonito), que está querendo filmar o conto Os
sapatinhos vermelhos. Estou tentando escrever o roteiro, enquanto ele tenta descolar
uma produção. Vai ser engraçado. Conversei com uns cineastas amigos dele, e não
conhecem absolutamente nada de cinema brasileiro — só Glauber Rocha, e ainda
falam no Orfeu negro, pode?
Queria te pedir: você entrega esse cartão ao Ricardo Pereira Lima? Penso
sempre, muito, nele, mas simplesmente não tenho o endereço. Por favor, você põe
num envelope e manda pra ele?
Já chegando ao fim, espero realmente que você esteja muito, muito bem.
Dê um grande beijo meu em Zuleika, pergunte a Cida Moreyra se recebeu minhas
notícias. Se você quiser me dar notícias, mesmo que eu viaje, o endereço é este — o
Ray me encaminha. Na medida do possível, dê alguma assistência à Jacqueline. Ela
ligou outro dia e queixou-se muito de solidão. Você sabe, São Paulo não é fácil.
Se você cruzar com Sergião Bianchi, diga que mando as melhores vibrações
(no caso de Sergião, será que ajudam?) para o filme dele. E cruzando com Wilson
Barros, diga que sinto saudade, que mando beijo.
Todo carinho do seu
Caio F.

PS — E pense em Dulce Veiga, antes que algum aventureiro lance mão!
Afinal — se é que você criou coragem e leu o livro — toda essa história é mais
nossa do que minha, não?
PS 2— Zu Val
E você, continua
Sensacional?
(Um hai-kai para Zuleika!)


Londres, 9 de março de 1991.

Guilherme, querido,
fiquei feliz com a sua carta. Pelo menos, quando vi o nome do remetente e
aquele logotipo do hotel de Calcutá (esse hotel rendeu, hein? Quantos envelopes
você pegou?). Depois, como dizem na Alemanha, fiquei melancolish. Pelo retrato que
você pinta do nosso país e que, eu sei, absolutamente não é injusto. Ainda mais do
ponto de vista de um cineasta. Compreendo. Se, digamos, o papel ficasse caríssimo
e as editoras simplesmente parassem de publicar — como eu me sentiria?
Provavelmente como você se sente.
Mas, anyway, oh Deus, tem a TERRA. Quando saí daí, saí gritando
“gentalha, gentalha!” em todas as direções (Marcos Breda, que me levou no
aeroporto, que o diga). Então vem o inverno, e a neve (as temperaturas do início de
fevereiro aqui foram literalmente siberianas), e essa gente fria, e essa língua. Me
veio vindo aos pouquinhos, não sei bem de onde, um amor tão desesperado pelo
Brasil. Desesperado é o adjetivo. A um ponto que, com aquele accent de João Gilberto,
a música que mais cantei aqui — baixinho, só para mim mesmo — nesse tempo
todo foi “isso aqui ôôô, é um pouquinho de Brasil iáiá”, quando via algo ou alguma
coisa que me lembrava o Brasil.
Eu não sei, estou aqui perdido — vim aqui para me perder um pouco, talvez
— mas vou chegando à conclusão (para mim, para os meus pobres botões, não
significa que isso possa se aplicar a outras pessoas) que um artista não pode/não
deve viver longe de sua terra. Falo bobagem. Se pensar em literatura — e Beckett,
que escreveu praticamente tudo na França, longe da Irlanda? e Cortázar, que foi
escrever em Paris? e Hitchcock, que foi filmar nos USA? Dizendo de outro jeito: eu
sinto que não poderia escrever longe do Brasil. Ou poderia, mas não teria aquilo que
esquenta a alma, e é indefinível, e que está na esquina da sua terra natal.
Tenho tanto para dizer. Queria falar com você. Tenho passado dias e dias
em silêncio, falando em inglês com Ray ou, uma ou duas vezes por semana em
português com a única amiga que tenho aqui, Patricia Masetti (é irmã do Mario,
aquele cara que faz teatro aí em SP). Puxei o time de um grupinho de brasileiros
daqueles que fazem feijoada e carnaval — são muito patéticos — e levei a fama de
“dificil”. Mas a solidão, ah a solidão — é outra solidão. Ter provado outra vez
desta solidão acho que me faz melhor. Ou mais humano, mais dolorido.
Hoje havia sol. Solzinho micho, para inglês ver, mas anyway sol. Saí a
caminhar, fui a Kennington, só para ver a casa onde morava Joe Orton. Acabei me
perdendo por um parque enorme que tem lá e dando na estação de metrô, uma das
mais antigas de Londres, onde o velho Orton caçava seus bofes. Quando o sol se
foi, resolvi me dar de presente um filme que ansiava há muito tempo: The confort of
strangers, de Paul Schrader; com o roteiro de Pinter e um Rupert Everett, mais
lasanha do que nunca. Doentíssimo. Na saída estava tão estonteado que fiquei
dando voltas em Leicester Square, o sábado à noite cheio de inglesinhos pêras e
indo ao cinema com suas namoradelhas. Ai, como tudo é igual. Parecia a Avenida
Paulista.
Tenho ido loucamente ao cinema. Descobri uma neo-zelandesa chamada
Jane Campion, vi Sweetie e An anel at my table — este é o melhor filme que vi em
Londres. E o finlandês Aki Kaurismaki, I hired a contract killer, cínico e bárbaro. E
uma retrospectiva de Samuel Fuller, que definitivamente me parece B demais. E um
alemão, The nasty girl, que lembra estranhamente um certo cinismo dos filmes do
Sergião Bianchi (que a esta altura deve estar na quarta equipe).
Dez e meia da noite. Estou bebendo um vinho chamado “Coteaux du
Tricastin”. Entrei nos meus últimos dias de Londres, com todas as granas atrasadas,
estou puxando o carro para a França, duríssimo. Devo passar quinze dias em
Nantes (?),uma coisa arruinada pelos editores (a coleção onde saem meus contos
por lá chama-se “L’heure furtive”, não é bonito?). No fim desta te mando o
endereço de Paris. Hoje recebi uma cartinha da Odete Lara, pede que eu procure
uma amiga dela em Paris e diz assim: “Diga a Evelyne que lhe escrevi pedindo que
me trouxesse o paletó de camurça que esqueci no armário dela em Paris, e que
sugeri que conhecesse a livraria dela, já que você é escritor. Diga também que
escreveu um argumento cinematográfico que foi imediatamente aceito por mim
depois de tantos anos de resistência minha em aceitar tudo que me era oferecido”.
Não é linda? Sobre Dulce Veiga, nunca pensei que fosse má-vontade sua não
filmar. E um filme que só pode ser seu, e que todo esse atrolho brasileiro tem
impedido. Eu espero que todos os dólares para o Perfume tenham sido conseguidos.
Faça o filme — é o meu palpite — de qualquer jeito. Mesmo como uma despedida,
como um “olha gente, tá aqui, tentei”. E parta para Paris, para onde for, correr
estrada, virar bolsinha.
Odete diz também: “Volte. Nosso karma tem que ser queimado aqui mesmo.
Saber transmutá-lo é nossa tarefa. E é essa a realização dos sábios”.
(Pausa para comer mais uma “jam tart”. Vício. Hmmm.)
Mais Dulce Veiga: Ray-Güde está quase fechando negócio com uma editora
sueca, acredita? E ontem ligou um editor da Noruega para o Ray, dizendo-se
encantado com Dragons (deve ser uma jacira), quer publicar lá e quer também
outros livros. Portanto, Dulce deve pintar também na Escandinávia. Eu acho um
absurdo total. Se bem que, no filme do Kaurismäki, lá pelas tantas rompe a tocar
Carlos Gardel, pode? Numa seqüência num bar dentro de um cemitério em
Hampstead, começa a tocar Mi Buenos Aires querido, e em outra Cuesta Abafo.
Ah: conversei com o Alex, um menino brasileiro que vive aqui há quatro
anos, é ator e músico de um grupo inglês experimental cujo nome esqueci, e que se
apresentou no Brasil ano passado. Bom, Alex viu a Dama no Metro em outubro do
ano passado, passou só um dia. Não sei como fazer um contato com os caras de lá.
Brasil aqui é uma é coisa tão por baixo. Semana passada, no channel 4,
passou An avenue called Brazili, um documentário horripilante de Otávio Bezerra,
filmado na Av. Brasil do Rio. Parecia filme de horror. Mas é a visão inglesa sobre o
mundo. Todo o dia leio coisas sobre as adolescentes prostitutas de Calcutá, as
criancinhas com Aids da Romênia, os refugiados da Albânia. Estive em Liverpool,
falando na Universidade (o melhor foi ver o “Cavern Club”, onde os Beatles
começaram), e sobre o Brasil, as pessoas só querem saber desse tipo de baixaria.
Tenho que rebolar para explicar que o Brasil são muitos Brasis, e que alguém que
vive em São Paulo pouco ou nada sabe do que acontece na Amazônia. Acontecem
coisas hilárias. Fui falar na biblioteca de Bedford, uma cidade próxima de Londres.
Era uma “noitada artística” — eu, lendo Blues without Ana, um poeta chileno
recitando poemas sobre o assassinato de Allende (ainda) e quatro índios bolivianos
tocando charango, aquelas coisas. Acabaram tocando lambada com seus
instrumentos lhamas, e os ingleses dançando com um sem-gracismo absoluto. De
repente a hora marcada para acabar chega, e tudo termina. Era tão deprimente que
me divertia: uma terra com hora marcada até para o prazer. Uma terra com hora
marcada.
Fui abrir a janela e vi a lua. Crescendo, para o lado “errado”, tipo hemisfério
norte. Ai, que vontade de voltar. E sei que vou voltar ainda mais esquizo, e que a
terra que a minha emoção construiu aqui não vai ser tão facilmente localizável no
plano real, e que esta sensação de ser estrangeiro deve continuar também aí. Será
que, à medida que você vai vivendo, andando, viajando, vai ficando cada vez mais
estrangeiro? Deve haver um porto. Em carta angustiada, Ana Carolina perguntava:
“por que será que temos que ser tão atípicos?” Em outra encarnação, volto
heterossexual e caso aos vinte anos com Ana Carolina.
Fiquei feliz de saber que Zuleika levou o cartão para Ricardo. Penso demais
nele. Aquela coisa estranha, inexplicável, da distância filtrar os afetos. Em
determinadas situações, fico falando direto com ele. Ricardo é sábio, talvez por isso
mesmo esteja vivendo em Ribeirão Preto. Me pergunto se essa sede de Paris,
Londres, New York, Tóquio — ???????????? — não vai nos afastando cada vez
mais, de uma maneira irreversível, do que realmente importa. E o que realmente
importa está ao alcance da mão, em qualquer geografia. [. . .] Meus melhores wishes
para o Peifume de gardênia.
Diga a Zuleika que procurei por toda London, London uma Zu/Val como ela e
não achei. Um beijo, Caio.

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