A Maria Lídia Magliani

0

SP 22.07.1991

Magli, chérie,
como podes ver pela lauda (pelalauda parece sobrenome de atriz pomô, não?
Imagine Laura Pelalauda, ou algo assim), te escrevo na repartição. Difícil
concentração, com a VOZ de Paula Dip refulgindo na sala ao lado. Mas já pedi
demissão, fico só até dia 30 deste. Prefiro vender pastéis.
Não deu, embora eu quisesse, pra te escrever antes. Aquela infecção piorou
voltando a SP. Fiquei com pequenas feridas em dois dedos da mão esquerda e um
da direita. Ou seja, não conseguia escrever nem fazer nada. Fora febre e as côsas
nas pernas... Voltei à médica. Bueno, segundo ela, pós-otite pintou uma infecção
secundária, que ela chamou de es-trep-to-co-xia. Tasca-lhe 1.000 miligramas de
outro antibiótico.
Comecei na quinta, hoje é segunda, comecei a melhorar. Já posso escrever,
vês? Volto na médica — Sandra, uma morenaça baiana de olhos azuis que conheço
há uns cinco anos (tínhamos o mesmo terapeuta) — hoje.
E se Deus quiser melhoro forever. Ufa.
Olha, tua intuição te enganou.
Não, não fui a Tiradentes para te dizer alguma coisa muito importante. Na
verdade, não tinha sequer pensado em ir a Tiradentes. Foi no hotel que comentei
com Sonia que estava com saudade de você, que morava lá e tudo e tal. A Sonia
ficou animadíssima, e já se informou de horários de ônibus, coisas assim. Foi
ótimo, porque sem companhia, e com a saúde meio bombardeada, acho que
sozinho não iria.
Mas — não fui até aí para, por exemplo, contar que estou com Aids e tenho
pouco tempo de vida. Na verdade, não sei se estou. Tanto Ronaldo, o ex-terapeuta,
quanto Sandra, que é imunologista, se recusam terminantemente a me apoiar na
decisão de fazer O Teste. Eles acham que não há absolutamente nenhum sintoma.
Prefiro acreditar, claro.
Ronaldo, a propósito, trabalha com Valéria Petri há muitos anos no
atendimento psicológico a homossexuais com teste positivo.
Além disso, o que de tão importante eu teria para dizer a você? Que não
suporto mais São Paulo, talvez, e que estar nesta cidade me deixa literal e
fisicamente doente, sempre. Fiquei seis meses na Europa, com aqueles 17 graus
abaixo de zero na época da Grande Nevada, e não tive sequer uma gripe. Chego
aqui e cráu! — sucumbo a mil grandes e pequenas maladies. Ai.
Me incomoda um pouco você dizer que levei Sonia Coutinho como “um
escudo”. Acho que aos 42 anos, morando só, com uma alta psicanalítica depois de
pelo menos 12 anos, realmente não tenho necessidade de escudos. Minha relação
com a senhora dona Vida, de muitos anos para cá, tem sido frontal, direta e
solitária. Sonia, além de velha amiga, é também uma excelente pessoa e escritora,
que raramente tenho oportunidade de ver (ela mora no Rio). Ela inclusive me
dedicou o último livro dela, Atire em Sofia. E uma pessoa de sentimentos muito
delicados, que caiu na vida muito tarde (tem uma filha e uma neta que vivem em
Salvador), e fica ao mesmo tempo deslumbrada e assustada com pessoas como nós.
Ela ficou um tanto quanto chata no final, com aquela insegurança de voltar, sem
relaxar no estar aí. Mas gostou imensamente de tudo, de Marijô e de você — que
mal dirigiu a palavra a ela, apesar dos meus librianos esforços sempre no sentido da
harmonia.
Deus, como é difícil concentrar com essa VOZ rangendo ao fundo... Mas foi
bom demais. Não lembro de ter-me sentido tão bem assim em outra cidade (exceto
Paris, guardadas as diferenças). E nunca vi você tão bem. A casinha é demais,
principalmente a horta (tenho feito altos chás). Tudo isso daí me parece muito
perto do Paraíso, e eu quero voltar para, pelo menos, umas duas semanas. Quem
sabe em setembro. Agora no começo de agosto tenho que ir a Ponta Grossa, no
Paraná, e depois acho que vou até Gramado. Não consigo sossegar o pito, fico
batendo salto pelo Brasil afora, e quanto mais vejo este país, mais sinto amor e
pena, tudo misturado. No meio da enorme imundície que tudo está se tornando, as
pessoas inclusive, Tiradentes fica na minha memória como uma — para cair de
boca no clichê brega — jóia no meio da lama. Tenho economizado aquela água
santa — quero mais detalhes sobre ela! Doroti andou por aqui, ligou, marcou,
fiquei de dar a ela o lápis-lázuli, depois sumiu. Bueno, se você cruzar com ela diga
que levo pessoalmente, se Deus quiser.
Recebi notícias boas de Márcio Machado, de Paris. Saiu do hospital com o
joelho meio bombardeado, mas o organismo reagiu, e já está ótimo, sem bengala
nem nada. E Carlinhos ligou outra noite, falei que tinha estado aí com você e íamos
mandar o material para o Ivan. Maria Lídia Woolf Lispector Pessoa dos Santos
Abreu Magliani: não marca!
Vamos armar essa superexposiçã em França.
Outro dia, muito doentinho, fui ao cinema ver Rosalie goes shopping. Aqueles
dias que você não quer ver nem sua mãe pela frente. Eis senão que me irrompe
pela frente nada menos que... Beto Ruas! Estava com uma moça a quem me
apresentou como sendo “um faixa dos velhos tempos”. Me senti assim algo tipo
uma faixa de Miss Elegante Bangu ou Rainha das Piscinas. Difícil.
Então ando assim, cada vez mais neurastênico, cada vez mais dentro da
concha. E cada vez mais querendo dar o fora de São Paulo, com a sensação de que
a vida é curtíssima, e que tudo que não seja o meu próprio texto, em termos de
escrita, me parece uma solene perda de tempo.
E nesta árdua volta, Tiradentes ficou assim feito um ponto luminoso
pulsando dentro da treva desta densa noite brasileira. Obrigado pela maneira como
você me recebeu — e obrigado também por estar tão bem, nunca vi a velha e boa
Normanda de guerra tão em forma.
Se os anjos quiserem, em breve estarei de volta, com minha frasqueira
tigrada e vários modelinhos safári para desbravar as matas locais.
Ficou na minha cabeça aquele paredão de pedra bem em frente à casa de
Marijô. Diga a ela que estou mandando fazer um quacirinho com aquele hai-kai de
Bashô. Aproveite e tasque-lhe dois beijos. Diga ao Marcinho — aquele jovem que,
segundo você, se parece comigo — que não se preocupe: tudo isso passa. Ou pelo
menos acalma com a idade. Mas é dificil fazer pessoas com menos de 30 anos
acreditarem que o tempo realmente passa.
Deus te guarde, todo o carinho do seu intrépido
Caio F.


SP 10. 09. 91

Maglim, menina-loba,
foi muito bom receber seu pacote & presentinhos sábado passado pela
manhã, uma daquelas manhãs cinza-sampa que você bem conhece (e quer
distância). God! Você tinha os originais de A maldíção dos Saint-Marie! Sabe que foi
daí que nasceu, MILHÕES de anos mais tarde, aquela A maldição do Vale Negro, que
deu a mim e Luizar o Molière? Pois é. Guardei numa caixa onde estou, também,
reunindo o museu-de-mim-mesmo. E não tirei mais do corpo a camiseta de gatos
de Marijô (faz um sucesso enorme, principalmente entre jaciras, todas querem gatos
muitos gatos). Em anexo, vai bilhetinho para ela.
But na verdade foi preciso uma semana inteira para digerir sua densa missiva.
Só reli ontem à noite, e me sento agora, quase meio-dia, mastigando nacos de gengibre para a náusea (tenho uma náusea constante, aquele Roquentin do Sartre
perde — com o agravante que, no meu caso, além de existencial a cuja também é
física). Sei /não-sei o que te dizer. Isto é, vagamente intuo, mas é tão vago
— e tão óbvio — que não sei se não pareceria (parecerá) “ligeiro”. Dizes que
estiveste “louca”. Bueno, até aí morreu o Neves — ou a Risoleta Neves, tua vizinha
— porque eu estou louco há pelo menos 42 anos. Estamos todos. Sempre penso
em Ronald Laing, referindo-se à mente humana, dizendo “o pior já aconteceu”. E o
que aconteceu, sem pretender ser nenhum antropólogo da emoção, foi exatamente
o que você detectou: foi-se a unidade fundamental. Qualquer grande avenida de
grande cidade é exatamente como um pátio de hospício. Pior, você sabe, porque
mais violenta — e porque não há nenhuma viagem interior sendo feita. É pura
ansiedade, sofreguidão, fragmentação.
Não é — penso — que você estivesse “louca”. Aspas fundamentais. O que
sucede, ma belle, é que você — com suas antenas afiadíssimas de artista e, digamos,
Mulher Vivida — captou a loucura em volta. Esta sim, insana ao limite da
demência psicótica. Loucura feia, brava, destruidora, assassina. Somos sempre o de
fora — e com isso acho que respondo a uma de tuas perguntas — odeio São Paulo
porque me percebo, às vezes, sendo nas minhas atitudes a própria cidade.
Loucura, eu penso, é sempre um extremo de lucidez. Um limite insuportável.
Você compreende, compreende, compreende e compreende cada vez mais, e o que
você vai compreendendo é cada vez mais aterrorizante — então você “pira”. Para
não ter que lidar com o horror. “Porque estar vivo, verdadeiramente vivo, é
horrível” — já dizia a GH (a reler) de Clarice, remember? Isso me voltou à cabeça
ontem à noite.
Eu tinha fumado um baseado. Imagina — tenho uma espécie de namorado,
Gabriel, que é — imagina mais — um-michê-que-estou recuperando. Continua
michê (afinal, é lindo), mas está fazendo cursinho pré-vestibular. E me faz visitas,
me telefona, me paparica. Ontem me trouxe uma “presença”. Anos que não fumo.
Disse a ele. Ficou confuso (já consegui que abandonasse o pó) e pediu desculpas,
não sabia “que eu não aprovava”. Bueno, pra não embaraçar ainda mais o moço,
fumei.
Ele se foi e me vi piradinho sozinho dentro de casa.
Não tive dúvida: me atirei em cima da pia e dei uma geral na louça de dois
dias, lavei o chão da cozinha, molhei as plantas, tirei a roupa do varal (com cheiro
de cachorro molhado). Depois joguei I Ching* e, lindamente, saiu aquele A
comunidade com os homens.
Mas o que ia dizendo — não se enlouquece quando se tem um tanque cheio de
roupa suja pra dar conta. Não é possível a gente se dar a esse luxo. Continuo
querendo dizer — e talvez para mim, com meu Sol e Lua em Terra, Virgem e
Capricórnio, talvez seja mais fácil — que o PRÁTICO pode salvar. Ou o simples, o
muito-muito simples.
Tenho sentido uma enorme e discretíssima felicidade apenas por acordar
cedo (acordar já é vitória; cedo, vitória dupla), fazer café, fumar um cigarro, abrir
janelas, arrumar a cama. Depois, tomar um mate e ler o jornal, então, é o paraíso.
Paraíso por dentro, descontadas as notícias cada vez mais e mais medonhas. Mas
sempre, uma consciência da ilusão dessa loucura externa. Quando a gente
“enlouquece” o problema é a leitura simbólica que se passa a fazer de
absolutamente tudo. Um fósforo que não acende pode assumir a importância do
fogo de Prometeu. Literalmente. Não que tudo não seja mesmo assim, só que a
gente também não suporta ficar tão mítico-antropofísico-arquetípico assim.
É mais simples, é mais embaixo — é tudo ilusão.
Fui rever o Mahabahrata, de Peter Brooke. O que mais gosto é o diálogo de
Krishna com Arjuna, antes da batalha, quando Arjuna está se cagando de medo.
Procura ver (ou ler) um dia. Krishna aconselha Arjuna a contemplar uma montanha
de ouro e uma montanha de terra com os mesmos olhos. Olhos sem desejo, e sem
pensamento. Leva Arjuna a passear pela “floresta da desilusão”. E completamente esvaziado de desejos, Arjuna fica pronto para a guerra, para o amor, para o que der
e vier.
Você pergunta: “todos os vernizes descascam?” Eu acho que para quem
tiver a coragem de deixá-los descascar, sim. E isso é bom. Além da nossa condição
de insetos (menos, protozoários) na superfície de uma bolinha azul imensa (mando
o recorte do astronauta, acho belo-belo-belo) perdida e ferida no infinito originário
de um suspeito — e incompreensível — big bang, além do nosso medo IMENSO
dessa condição e da pena também IMENSA que brota pelo humano, vai restar
sempre O MISTÉRIO. Que eu posso chamar de Deus, de runas, de Buda, Tarot,
Oxalá, qualquer coisa assim meio trans.
E se a gente crê — como eu creio, e essa crença não é intelectual, ao
contrário, é totalmente irracional, instintiva, muito mais funda que o pensamento
discursivo — nesse MISTÉRIO, suponho que a gente esteja “salvo”. Salvo do
medo, do terror, da loucura, do suicídio, do homicídio, do alcoolismo desesperado
(que já provei também).
Anotar na agenda mental: reler Fernando Pessoa, principalmente Alberto
Caeiro (em anexo, poema de Ricardo Reis); re-ouvir Terra de Caetano; reler aqueles
poemas zen póstumos de Cecília Meireles. Ou não reler nem ouvir nada. Pegar as
pedras fortemente, apertá-las contra o peito, comprimir a cabeça e o corpo inteiro
contra as árvores, pisar descalço na terra, colocar balas e doces (sempre em número
ímpar) ao pé das árvores grandes para os duendes e devas e erês comerem e
ficarem teus amigos, deixar na cabeceira toda noite copos de água com açúcar para
as fadas virem beber de madrugada. Acender velas para chamar Luz, jogar rosas
amarelas nas águas dos rios para Oxum. Coisas assim: ritualizar, para dialogar com
O Mistério. Para que ele te/nos proteja. Coisas claras, panos brancos, incensos e
flores. Purificar, purificar o que na essência da nossa condição humana é pura e
medonha treva de desconhecimento de todos os porquês.
O que te salva — a você, Maria Lídia dos Santos Magliani —, mais que
qualquer outra coisa, é a tua horta, já percebeu? O dia que você deixar as ervas
daninhas tomarem conta dela, essas ervas também tomarão conta da tua mente, do
teu coração. Eu posso estar falando coisas que soam a Seicho-No-Ie, a filosofia
rasteira, mas eu não me importo nem me envergonho. Eu nem sequer critico.
Sempre dizia para o meu psicanalista “olha, jogo Tarot, sou astrólogo e meio
bruxo, e essas coisas eu NÃO vou discutir MESMO com você”.
Tenho achado viver tão bonito.
Talvez porque ande, como nunca, perto da idéia da morte. Continuo naquela
ciranda de antibióticos (o terceiro) e as orelhas, embora melhores, purgando coisas.
Acho que sim, que como você diz são as nojeiras que ouvi durante toda a vida.
Está limpando. Mas, objetivamente, a Sandra-médica está começando a considerar
a idéia, também, de fazer O Teste. E eu não sei se quero. Seria como querer um
papel timbrado, firma reconhecida, dizendo que vou ser atropelado (“por esse trem
da morte”, como dizia Cazuza) daqui a algum tempo.
Sei lá.
Mas tenho pensado, e estou tão cheio de projetos para livros novos que só
penso nisso. Em conquistar energia — e tempo, e condições — para escrevê-los.
Tenho me resguardado ao máximo da urbanidad. Voltei a ler. Reli acho que
pela terceira ou quarta vez o The bell jar, da Sylvia Plath — que é o mais terrível
depoimento sobre a esquizofrenia vista de dentro que já li. Não sei se você já leu —
se não, posso mandar. Tem uma tradução nova ótima da velha e boa Lya
Lufthansa. Revisei toda a tradução que tinha feito para The ballad of the Sad Café, de
Carson McCullers, e está linda. Sabe que a pequena Carson ficou paralisada do lado
esquerdo desde pouco mais de 20 anos, e só conseguiu escrever à máquina (com
um dedo só) e deitada. Mesmo assim, quando morreu aos 51 anos, deixou cinco
livros. Todos muito belos. Agora tento ler Estorvo do Chico Buarque.
Acho impecável, mas chato. A propósito: Chico pediu a Luiz Schwarcz que me
ligasse, dizendo que ele — Chico — estava desolado com o que Okky de Souza
escreveu na Veja sobre ele, Rubem Fonseca, Jorge Amado, Ignácio de Loyola e eu.
Como há anos não leio a Veja — náusea profunda —, não sabia do que se tratava.
O tal Okky, elogiando o livro de Chico, disse que nós outros éramos péssimos.
Mas eu só tô aqui tentando cumprir meu karma da melhor maneira possível,
pensei. E me deu uma daquelas crises de náusea. Viver em São Paulo é como viver
em Dallas.
Mas o mundo não tá fácil. Marcio Machado ligou ontem de Paris — ele está
muito bem, diz que conseguiu alguns originais de Picasso e Salvador Dalí, para
revender — e diz que tudo tá um bode. A guerra na Iugoslávia é heavy, de repente
toda a Europa pode entrar na dança. Gorbatchev teme o início da III Guerra
Mundial (que seria rapidíssima, não? só apertar o botão).
Desemprego, paranóia, croatas, sérvios, curdos brigando com iraquianos.
Bueno, umas rapidinhas:
Tem Munch no Masp! Vou ver amanhã, acho. São as cópias que ele mesmo
tirou das gravuras. Tem também Wesley Duke Lee, Aguilar (hmmm,..) e Guto
Lacaz (que tá ficando Professor Pardal demais pro meu gabarito).
Espero Juliano para comermos uma feijoada. Juliano tem 19 anos, é a cara de
Sinead O’Connor, 1m90 e é meio gênio. Estuda História, trabalha com índios.
Acho que só posso volver a Tiradentes comecinho de outubro. Como larguei
a revista (e o marido largou a Paula Deep na mesma época), tenho que trabalhar.
Me ofereceram palestras por várias cidades de SP em setembro, e uma semana em
Curitiba com um “laboratório de criação literária” (que cá com meus botões acho
pura fraude, ma$...). Então acho mesmo que só no comecinho de outubro, quando
as decantadas cachoeiras já estarão mais aquecidas para banhar estas pernas que
abalaram Paris (e hoje são dois abacaxis).
Só você pra lembrar de Flávia Schilling... Tem razão. tempos de dignidade.
Lá se foram.
Lucinha Araujo — mãe de Cazuza — me ligou. Fiquei feliz demais. Temos
nos falado, ajudo a levantar grana para o Viva Cazuza, comprar AZT para as amigas
terminais e coisas assim. Colaborarias? Mando em anexo, vou ver se encontro, a
carta que a Pinky me passou.
Vai junto aquela foto de Francis Bacon que te trouxe de Londres, tenho
medo que amasse. De repente depois escrevo mais.
Love
Love
Love
Caio F.
“Segue o teu destino
Rega as tuas plantas
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.
A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós seremos
Iguais a nós próprios.
Suave é viver só
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nos ares
Como ex-voto aos deuses.
Vê de longe a vida
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te, a resposta
Está além dos deuses.
Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.”
(Ricardo Reis/Fernando Pessoa)


* Você tem um 1 Ching? É im-pres-cin-dí-vel!



SP 27.01.1992

(Ano 2000, lá vamos nós!)

Ma(di)gliani, ma belle,
culpa, mea culpa — troteando pelo Brasil afora, fiquei quase o tempo todo te
dando notícias mentais, não reais. Acho que você nem recebeu as de São Luís do
Maranhão. Enfim, agora parece que parei um pouco, depois de um Natal (ótimo)
em Porto Alegre. Com aquela velha impressão de que (e que ninguém nos ouça ou
leia) nossos pampas, sim, são ricos, finos e chiques. Tanta gente educada, tanta
gente bonita. E arrogante também, que gaúcho parece que se acha a melhor coisa
do Brasil. Na verdade (cá entre nós & etc.) é mesmo, mas não precisa dar bandeira,
certo? Fantasias de voltar continuam rondando, fantasias. Nair and Zaél melhores
que nunca. Zaél aos 70 e Nair around (é segredo, claro, como mãe pode ser fútil,
meu Deus) 67 parecem ter desistido de qualquer ilusão careta de honra & moral.
Estão meio escrachados, e numa ótima: falam tudo o que pensam, sem
preconceitos. Lacearam muito, ou seja — parece que acompanharam os tempos.
Estão sós naquele casarão (Cláudia e Felipe moram perto, vão lá todo dia, Márcia
em Novo Hamburgo, meu irmão Gringo afastado, casou com uma “víbora”,
segundo Nair), e tenho quase como certo que, partindo um, terei que ir para ficar
com o outro. Sinto que é um dever, um dever bom, kármico, honesto. Uma troca.
Enfim, esperemos. Mas pelo visto vão longe.
Ando sem graça. Odeio verão. São Paulo fica uma jaula. Estou reescrevendo
Limite branco para ser reeditado, é uma viagem doida: o original é de 1967. Lá se
vão VINTE E CINCO ANOS, Maria Lídia dos Santos Magliani!!!!!! O tempo me
espanta. Penso, o tempo é tudo que existe. Todo o resto é ilusão. Mas não tenho
queixas. Afinal, aos 43 ainda estou com um corpinho de 35. E sempre pareço bem
mais jovem. Bem, uns 10 minutos mais jovem.
Falar nisso, my dear, HAPPY BIRTHDAY TO YOU
HAPPY BIRTHDAY TO YOU
HAPPY BIRTHDAY, MAÍDA,
HAPPY BIRTHDAY TO YOU!
Sempre me olvido do dia exato, sei que é fim de janeiro — maybe 28?
Tenha muitas coisas lindas neste 92.
E quando, God, acaba a estação das chuvas por aí? Tenho pensado
constantemente em ir, talvez umas duas semanas em fevereiro/ março. Com a
parada das viagens, a grana encurtou. Mas deve lacear. Estou trabalhando com La
Duarte, a Regina, numa série nova para a Globo, começo a receber em fevereiro.
Depende do Boni-voltar-de-New-York-e-aprovar-mas-o-Daniel(Filho)-adora-e-équestão-
de-etc. Tá sendo bom, a Duarte é sempre do bem, inteligente e esperta.
Estabelecido tudo, eu podia pegar meus pré-roteiros, uma boa frasqueira tigrada, e
ir terminá-los em Tiradentes. Andei/ando sentindo — imagine, que retrocesso
emocional — CARÊNCIA AFETIVA. Das brabas. Passei uns três, quatro anos fazendo a bicha durona, dizendo coisas do tipo ai, amor? é coisa de extrema
juventude, isso não existe. Não sei bem como, começou a doer, a faltar. Uma sede
daquelas de comercial de Sprite no Saara lembra?
Vicente Pereira me orienta, tem sido melhor guru. Diz ele — e eu acredito
— que é preciso chegar na desilusão de absolutamente tudo. Reduzir o salto,
encompridar a bainha da mni, esquecer o rímel. Vamos tentando, enquanto amigos
continuam a morrer. Foram-se Casemiro, o Xavier (tão chique e nobre, lembra?) e
Paulo Villaça, com quem tomei alguns porres memoráveis. Eu rezo. Deve ter
sentido, ficar.
Bem devagarinho, leio o Evangelho, de Saramago. Não que tenha virado
nenhuma Darlene Glória (falta-me inclusive o viço apropriado), mas comecei a
pensar no homem-Jesus. Nunca tinha pensado nele além do clichê. Talvez toda a
nossa vida terrena seja, cada uma na sua medida, uma repetição da via-sacra?
[. . .]
Fiquei tão só, aos poucos. Fui afastando essas gentes assim menores, e não
ficaram muitas outras. Às vezes, nos fins de semana principalmente, tiro o fone do
gancho e escuto, para ver se não foi cortado. Não foi. Então me sinto protagonista
de um filme chamado Criaturas que o mundo esqueceu.
Sem amargura. Regina Duarte me mostrou ontem um poema de Adélia
Prado assim:
“Dor não tem nada a ver com amargura.
Acho que tudo que acontece
é feito pra gente aprender cada vez mais,
é pra ensinar a gente a viver. Desdobrável,
Cada dia mais rica de humanidade.”
Adorei o retrato (de quem?) que você me mandou. Parecia um pouco o
Vlad/Ney Latorraca de Vamp (estou viciado na novela, apaixonado por Mary
Matoso). Coloquei na sala.
E Marijô? Juliano, o pequeno Spyer, ficou encantado com coisas que vocês
mandaram a ele e ele mandou a vocês. Fica me atormentando para irmos a
Tiradentes juntos e fala coisas do tipo estou-numa-fase-em-que-percebi ou mudeiprofundamente-
minha-visão. Bem ele tem 20 anos. Mas na verdade acho meio
imperdoável ter 20 anos. Tenho tido pouquíssima paciência para menos de uns,
digamos, 32.
Gil, o secretário — Gil Veloso, o nome não é perfeito? — está chegando.
Vou pedir a ele para ir ao correio.
Um beijo do seu
Caio F.


SP. 16.06.1992

Ma(di)gliani,
uma e meia da tarde, céu limpo de junho, friozinho de encorujar paulista e
fazer cusco gaúcho rolar de rir (cusco ri?). Maria Bethânia cantando “fica comigo,
São Jorge Guerreiro, a quem recorro nas horas de agonia” (é tão lindo, você TEM
que ouvir). Adiei & adiei te escrever após tua longa & inspirada missiva. Agora
surpreendi essa hora meio vaga entre um almoço macrô (tive uma recaída, só
imaginar algo parecido com uma lasanha me faz mal) e um médico.
Ai.
Não, juro que não vou desfiar um rosário de queixas. Ouvidos, pois é. Passei
por um especialista power. De tanto antibiótico, aqueles bichinhos (estafilococos
áureos, o nome é até chique) ficaram junkies — viciadíssimos. Aí o Dr. Elizabestky,
que usa uma peruca hilária, meio acaju, fica me aplicando umas novas invenções
americanas. Que custam quase 100 paus o frasco. Bueno.
Mas continuo achando que o problema é que definitivamente NÃO
SUPORTO OUVIR A REALIDADE. Acho que não tem cura. Talvez tenha que
amputar as orelhas, implantar um par — digamos — de marfim, ou jade, trés
bizarre. Andei com problema$ meio grave$. Odeio pensar em dinheiro, fazer
contas o tempo todo — mas não tenho feito outra coisa. Estou me tornando um
expert em economia. CDBs, Fundão, dólares, marcos e tudo que for preciso para
não soçobrar (essa palavra me faz lembrar Chaninha Maciel).
Estou me aprontando para ir ao Rio.
Péra aí, vou trocar a Bethânia por uma flauta doce que encontrei ontem (o
vinil anda em liquidaçã e eu, cadela, como não tenho CD).
Pronto.
Você ia gostar desse, tem um astral Cecilia Niesemblat [. . .]
Mas como ia dizendo, sobre os aprontes. Lembro quando Nair ficava se
aprontando para ir a Porto Alegre, durante MESES. Muito tailleur novo, muito
sapato. Eu achava estranho, porque ela ia a POA justamente para comprar tailleurs
e sapatos na Casa Louro. Nunca entendi. Mas ficou o hábito.
Preciso tomar ar, fingir que sou normal & tenho um profundo interesse
pelas pessoas e acontecimentos culturais e todas essas estonteantes possibilidades
urbanas.
Andei, ando, um bicho do mato. Sair de casa virou programa de índio. O
cinema virou meu único laço com a realidade (?!), além de ir ao banco, claro.
S’as que perdi na justiça aquela causa do ap.? Pois é, guria. Devo ter ficado
com uma dívida de uns cinco mil. Dólares. E a bicha tem? perguntaram. O coro rola de ir. Fiquei num stadenervos horrível, me sentindo totalmente falido — fui
até ver no dicionário o que significava inadimplente. Descobri que sou.
Sofri, sofri, sofri. A advogada recorrendo, diz que leva tempo. Aí um dia
pensei: chega. E continuei a viver normalmente (?), no mesmo apartamento.
Arrumei uns trampos. Duas vezes por mês, aulas em Piracicaba. Um
laboratório de criação literária. Vinte pessoas sem talento nenhum. Fico arrasado.
Mas o café da manhã do Hotel Beira-Rio é ótimo, e tem uns vales na estrada, na
altura de Americana, enfim. Outra: um senhor rico de São Leopoldo morreu e
deixou um romance enorme (junto com a herança) para o filho editar. O filho
procurou este que vos escreve para copidescar a referida obra. Que é inenarrável.
Mais de 500 páginas primárias. Tenho também, todo mês, que ler os livros
colunáveis para a Playboy, e você pode imaginar o gênero.
Enfim, estou intoxicado de mediocridade literária. E — oba! — tenho
pretextos ótimos para não escrever meus próprios textos. Tenho fugido lindo da
labuta. Vou jogando frases, recortes, pedaços dentro de uma pasta. Branca,
naturalmente. E há um stadenervos crescente, aquela sensação de não estar
cumprindo o karma como devia.
Me ofereceram um computador emprestado. E uma ex-colega do Estado
chamada (juro) Darlene — muito boazinha, mas com uma voz... Os teus instintos
básicos ferveriam na hora, só de ouvi-la. Então o problema é: aceito o computador
(que está atravancando a sala da guria), mas como brinde ganho aquela voz nos
meus ouvidos. E a minha otite-teresinha?
Um leve humor fútil hoje.
Desde que sonhei, ontem, depois de ver o eclipse da Lua, que morria
atropelado por um caminhão. Pode? Eu embaixo do caminhão, a parte inferior do
corpo esmagada, sangue no asfalto. Pensei bueno, chegou a minha hora, na maior
serenidade. Foi me dando uma turvaçã, uma turvaçã e pronto — morri. Acordei às
9h30 da manhã num humor fantástico, bem bambi, você consegue explicar?
Tenho uma azálea mutante na cozinha. Imagina, é a primeira vez que ela dá
flores (são vermelhas) e, não contente de estar coberta de flores, estas são trigêmeas.
Difícil explicar, mas de cada botão brotam três, ao mesmo tempo. Nunca tinha
visto. Que ânsia de desabrochar, não?
Domingo, depois de ver aqueles franceses aos berros no Anhangabaú — o
novo pólo cultural da cidade —, imagina, me arrastaram pruma boate gay. Às seis
da tarde. Algo assim como o underground de Canapi. Na altura do segundo uísque,
dei por mim no banheiro esbofeteando uma bichinha desmaiada (totalmente
desconhecida), molhando os pulsos da frágil criaturinha aos gritos de “reage,
menina!”. Ela chorava, tornava a desmaiar, repetindo que o namorado a havia
trocado por uma machorra. Pode, Madigli? Diagnostiquei: bichice, paguei minhas
contas e dei o fora. Não saio de casa por mais um semestre.
S’as que desisti do amor? Que alívio. E um processo que vem se arrastando
há uns quatro anos, desde o que chamo de The Big Disaster, agora parece que conso-
li-dou-se. Será que é da idade? Fico ouvindo as pessoas naquele rodenir de
ligou?-vou-ligar-não-sei-se-ligo-se-ligar-dizque-saí etc.&etc. e acho de uma pobreza
alagoana.
Meu Deus, penso, tanto tanque cheio de roupa suja pra ser lavada, tanto piso
pra ser encerado, tanta azálea mutante pra ser regada, tanta meia pra ser cerzida e
fica essa vEadagem? Que perCa de tempo. Tô bem assim, bem indiferente. O
coração, um cactus. Não me importo mais.
Continuo com fantasias bucólicas. Hoje de manhã cedo encontrei um mapa
do Rio Grande do Sul e fiquei horas viajando com o dedo pelas cercanias de
Santiago do Boqueirão, onde tem lugares com nomes tipo Ibicuí, Nhu-Porã,
Bossoroca, Massambará, Jaguari (devia ser assim de índio lá, não?).
Me preparo e me preparo para o corte. Estou me aprontando para A Grande
Virada. Ela vem. Minha ida para a França novembro-dezembro foi confirmada.
Vou, claro. Me dão um quartinho com vista pro mar durante dois meses, posso
ficar fumando e olhando os marinheiros pela janela o dia inteiro. Volto em janeiro,
em junho de 93 tem a Alemanha, mais uns dois meses. Pouco mais de um ano,
então, e acho que estarei pronto. Será?
Estou viciado em suco de maracujá com mel.
Arrumei um amigo holandês que me contou uma história — a mais absurda
que já ouvi. Em Amsterdam, uma conhecida dele (mulher mesmo) a vida inteira
tinha a fantasia de ser uma bicha. Então, logo que atingiu a maioridade, tomou
hormônios masculinos, fez ablação dos seios, retirou útero, ovários & todas aquelas
coisas ginecológicas que as mulheres têm e implantou um pau de silicone. E virou
bicha. Não travesti, mas bicha mesmo, pintosa, enfrentativa. Só transa com
homem. Fiquei horas tentando entender.
Resolvi assumir o candomblé e fazer um bori pra Oxum. Fiquei tempo
hesitando. O santo precisa comer na tua cabeça pra te conhecer. Ia fazer nessa ida
ao Rio, mas minha mãe-de-santo (que me chegou via Vera Salamanca, remember?
onde andará?) tem que ir à Bahia renovar os votos (a expressão é outra, em iorubá)
no Gantois. Volta em julho, poderosérrima. Aí faço a tal côsa.
Sonia Coutinho liga de vezenquando querendo muito ir a Tiradentes.
Confidencial: eu não queria ir com ela, nem com ninguém. Queria ir assim tipo eu e
Deus, ainda que ele não exista. Pensei em pedir umas férias de julho em Piracicaba,
mas aquele departamento $$$ tá dificil, Madigli.
Esta carta não está completamente idiota?
Vê se ri um pouco. Tenho aprendido que tudo tem jeito, o tempo é remédio
pra tudo, vivendo e aprendendo. Por aí. Ai que preguiça.
Bueno, tenho que ir ao Dr. Elizabestky (que diz que meu canal auditivo é
deslumbrante — foi a expressão que usou, queria me levar para mostrar aos alunos
dele, imagina se vou sair por aí mostrando pra qualquer um meu canal auditivo,
anyway aumentou muito a minha auto-estima).
Cuide-se.
Vou tentar achar aquele Italo Calvino para te mandar. Meus livros estão em
filas de quatro, tá lá no fundo.
Beije Marijô, diga aos rapazes que tenham paciência não perdem por esperar,
força na peruca segura o turbante e sente o ritmo enquanto recebe muitos beijos do
seu old and sweet
Caio F.

PS — Achei o Calvino! E vão algumas abobrinhas culturais.

Ler mais »

0 comentários: