A Luciano Alabarse

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São Paulo, 21 de julho de 1985.

Luciano, querido,
tua carta chegou ontem, sábado de céu tão azul que saí a caminhar
literalmente em-be-ve-ci-do pela Frei Caneca, respirando fundo, olhando umas
bonitezas que São Paulo tem, tão escondidas, tão discretas. Voltei e a carta estava
me esperando, junto com um pacote estranho, do Círculo do Livro. Mas não sou
sócio do tal Círculo, fui pensando enquanto abria. Bom, era a edição dos Morangos,
depois de um contrato assinado há três anos. Fiquei contente, contente. A capa não
é boa — uma foto de um moço-louro-de-olhos-verdes atrás de uma vidraça
molhada de chuva. A diluição da angústia, bem editora Abril. Enfim...
Gosto do que você me conta sobre o espetáculo. Meu único medo: que fique
literário demais. E, em conseqüência, pesado. Mas confio na tua mão abençoada. Eu
não gostaria que o título fosse Morangos mofados, mas pode-se partir daí para alguma
outra coisa semelhante. Me ocorre, por exemplo: Certos morangos — que te parece?
Também podia ser Morangos e outros mofos, mas gosto menos. Enfim, isso não
importa muito. O título vai brotar à medida que o espetáculo for se definindo.
“Gosto de sentir a minha língua roçar na língua de Luís de Camões” —
estou ouvindo Caetano. Acho que você devia usar muito Caetano na trilha (afinal, o
livro, além de tudo, é dedicado a ele). Há pouco ouvi Quereres, e me impressiona
sempre como está tudo ali — todos os labirintos e desencontros de afetividade. Ah,
bruta flor do querer.
Estou aqui um pouco entojado com o livro novo. Há dez dias sem escrever.
Ou escrevendo sem parar, mas mentalmente. Ontem peguei a última parte que
havia escrito e esmerilhei, lapidei, até ficar luzidia. Mas tenho um medo estranho de
me entregar completamente. Resolvi que precisava me fortalecer fisicamente,
escrever estava me derrubando. Bom, procurei um médico que é também
radiestesista, homeopata e acupuntor. Me faz um check-up com o pêndulo e me
aplicou agulhas na orelha, pela primeira vez, terça-feira passada. Fiquei ótimo.
Regularizei o sono, estou mais atento, mais vivo. Vou fazer uma vez por semana.
Pintou um problema dentário — tenho que fazer uma pequena cirurgia para
retirar o pino quebrado de (ai) uma ponte-fixa. Aí o dentista descobriu dez mil
problemas, retração na gengiva y otras cositas. Precisa abrir, raspar, cimentar.
Conclusão: 900 mil. Vamos lá. Então, com o romance andando e querendo
fortalecer meu corpo, sou obrigado a pegar pilhas de outros trabalhos. Tenho
passado horas por dia em cima da máquina, trabalhando sem parar. Mal dou conta
de tudo.
Mas uma estranha intuição: de que, de alguma forma, este é um período de
luta depois do qual tudo deve abrir, ficar mais fácil, menos batalhado.
Recebi uma carta de Dias Gomes, daquela Casa de Criação Janete Clair, da
Globo. Me pede argumentos para especiais, minisséries e/ou novelas. Pagam, por
um especial, oito milhões por um argumento aceito, mais oito pelo roteiro final.
Fico tentado. Ah, as sereias cantando, Problema é que precisa historinhas para a
Globo. Enredos. Tenho anotado, pensado coisas.
O filme de Sergião também está andando. Ele está no Rio, vendo as granas
com a Embrafilme. Parece que sai. Acertou a atriz: Fernanda Torres, que é uma
gracinha como pessoa, também. Me pede para ajudar no roteiro — a que batizei
como Almas em conflito (queria um título com sabor de filme noir da década de
30/40).
A casa está boa. Comecei a cuidar um pouco mais das plantas. Elas
respondem.
Fiquei horrorizado com a história de Linda e Dircinha Batista. É Baby Jane —
lembra daquele filme com Joan Crawford e Bette Davis? — puro. Ontem falei com
Regina Echeverria, que está escrevendo a biografia de Elis para o Círculo do Livro,
e me contou coisas medonhas sobre a morte dela. Ah, as cantoras e seu final
trágico. Dulce Veiga também era cantora: onde andará?
Mas é isto. Não sei se esta carta ainda te pega aí. Espero que sim. Você não
diz quando viaja. E entre mais ou menos 10 e 20 de agosto eu estarei aí, espero que
não nos desencontremos.
Te quero sempre bem.
Beijo do
Caio F.
PS — Vai outro poema de Cecília.
PS 2 — Coincidência: também estou lendo O arco e a lira.


São Paulo, 29 de julho de 1985.

Luciano, querido,
meio às pressas, antes de sair para o dentista. Vai o depoimento, um tanto
seco, talvez, mas foi o que me saiu. Recebi o roteiro, li e achei tudo muito bem
alinhavado. Me assustam um pouco os enormes bifes, aí tenho pena dos atores. Segu-
ra-rão? I hope so.
Estou entrando num período de super-movimento: no fim desta semana,
vou para o Rio, quero assistir a Aqueles dois no Festival. Volto a SP, e lá pelo dia 10
estou em Porto, de passagem para Passo Fundo. Aí volto e fico alguns dias em
Porto — quero o colo de minha mãe! —, para estar de volta aqui lá pelo dia 20, 25.
Ando me sentindo extremamente bem, O romance trancou um pouco — na verdade, não tenho me entregue —, mas vou tentar trabalhar nele no Rio e em
Porto Alegre. Nessas aí, pari outro conto, uma versão para adultos de Os sapatínhos
vermelhos, de Andersen. Nunca escrevi nada tão obsceno.
Pena que você não venha. Mas podemos nos ver com calma aí.
Ah: pelo contrato que assinei com a Brasiliense, se você usar o título
Morangos mofados, tenho que dar 50% dos meus direitos para eles. Podemos pensar
numa solução juntos: não estou a fim de dar um vintém para o Caio Graco.
Outra côsa desse departamento legal: se publicarem aquele meu depoimento
na ZH, tem que dar a fonte — “publicado originalmente na Revista de Domingo do
Jornal do Brasil de tanto-de-tanto”, qualquer coisa assim.
Tem feito uns dias lindos, de céu muito azul. Apareceu uma gatinha preta,
imediatamente adotada e batizada de Beatriz, lógico. Comprei a Marina, e fico
cantando o dia todo “Foi tão complicado/seguir na minha estrada/pra chegar até
aqui...” E tem mais.
Nova República meio histérica no ar. Umas estréias teatrais muito sem graça,
tipo Dona Flor e Kamasutra —fui ver A trilogia da louca, dirigida pelo Abujamra, e
detestei.
Beijos muitos. Fico feliz de pensar que em breve estaremos próximos. Seu
Caio F.

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