A Luciano Alabarse

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Paris, 28 de abril de 1994.

Luciano, querido,
escolhi esse papel especial para você — tem de todas as cores, é reciclado e
baratíssimo. Ah, o Primeiro Mundo — que está mais Terceiro do que nunca,
caindo pelas tabelas de desemprego, crise daqui, crise dali. Espero que minha carta
chegue. Pedi teu endereço à mãe, mas ela — ai, a idade — não mandou CEP e tudo
e tal.
Te escrevo com o pé na estrada. Parto Domingo para Lisboa, que não
conheço — bem nigrinha, vou de ônibus, 25 horas, c’est pas grave, j’espére... e
volto a Paris dia 15 de maio só para pegar malas e correspondência, dar uma geral
nas tropas. Aí parto para a Noruega, visitar Augusto, que vive lá há 20 anos, casado
— de papel passado — com um norueguês, Henning (também conhecido como
Gilda). Ambos me convidam para a colheita de narcisos da primavera. A frescura é
tanta que, claro, não resisto.
Enfim: estarei chegando a SP dia 8 de junho. Fone/Fax — anote lá —
iguais: (011) 283.13.33. Pnsei em ir logo a Porto, mas acho que só vai dar no fim de
agosto, porque tenho muita, muita costura pra entregar em Sampa.
Parto de Paris um tanto fatigado, trabalhei muito na divulgação dos livros,
mas contente. Deu certo! Fiz dois programas de TV — um só de escritores, outro
com um grupo de “artistas” — este segundo, imagina, era com Isabella Rosselini
lançando seu filme État second, ela e Jeff Bridges. A Rosselini é simpática, simples e
um tanto quanto larga nos quartos... Saíram críticas ótimas em jornais e revistas, a
melhor no L’Express, a Veja francesa com ética. Dulce Veiga está indicado para o
prêmio de melhor romance estrangeiro — prêmio Laura Battaglion, 100 mil
francos, metade para o autor, metade para o tradutor. Acho que não levo — sai em
junho — porque tem gente tipo Philip Roth e Paul Auster no páreo, mas anyway já
valeu a indicação — são só 10.
Enfim, trabalhei — trabalhei, fui a duas ou três boates gays muito chatas e
iguais, fui muito a cinema (fique atento a Short cuts, de Robert Altman, e Gilbert
Grape, de Lasse Halstrom) e sobretudo estou numa relação maravilhosa comigo
mesmo. Meu francês soltou-se, falo maravilhosamente e faço tudo com o maior
desembaraço e sozinho. Alguma coisa em mim parece que laceou, eu era tão cheio
de medos. Aprendi também a não contar muito com os outros: na medida do
possível, faço tudo só. Dá mais certo.
Mas no meio de tudo isso, sinto o tempo todo uma enorme vontade de ficar
só e escrever, escrever, escrever. Pareço a Orlando da Virginia Woolf (que Isabelle
Hupert faz no teatro aqui: não havia entradas!) carregando seu manuscrito
inacabado séculos afora... Até hoje não sei o que você achou do meu O homem e a
mancha — que o Carlinhos Moreno tava de saia-justa para montar em SP. Imagina
que ele me disse que achava bom demais para ele?
Meu anjo da guarda sempre forte me jogou no caminho de um pianista
brasileiro — Braz Velloso — que me emprestou seu ap. enquanto foi ao Rio ver o
namorado. Ouvi muita, muita Callas. Embaixo mora outro pianista brasileiro,
Rafael Hime, primo de Francis, que também tem sido um anjo. Muitos anjos, sim,
mas para manter o equilíbrio também muitos, muitos demônios. Na verdade, até
poucos: acho que — graças a Deus — têm medo de moi.
Falo sempre em nossa deusa Calcanhoto (outro dia falei nela numa crônica
que enviei para o Estadão) e ouço-reouço sempre, quase sempre na estrada, apoiado
em alguma vidraça de ônibus, trem ou avião, e choro sempre com “eu ando pelo
mundo prestando atenção em cores”. Pedi ajuda a algumas pessoas no Brasil para
recuperar endereços, mas não recebi respostas. Quem me escreveu mesmo foi
Lygia Fagundes Telles, e minha mãe — que mãe é mãe.
Mas não me queixo. O amor que sinto pelos outros quase sempre é
suficiente, não precisa nem ter volta.
Será a sabedoria? Ou apenas a meia-idade? A propósito desta, ando com
altas dores no lombo. Totalmente descadeirado. Divido receitas com Falleiro, que
está aqui para escrever sua tese de mestrado e também começa a sentir os, digamos,
rigores do tempo. Ah, Cronos!
Se alguém perguntar por mim, diga que estou noivo de Isabelle Adjani —
mas no fiquei metido e mando beijos. Espero que sua vida, amores, projetos,
trabalho, saúde e tudo o mais estejam luminosos, cheios de energia. Felicidade, je
t’embrasse trés fort.
Caio F.

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