A Gilberto Gawronski

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Paris 24.04.94

Betinho, mon chér,
obrigado pela carta, pelos endereços e pelo recorte — Jesus! até o Betinho
deu a Elza? Aproveito um domingo aprés-midi, com uma primavera esquisitíssima
lá fora — um dia de sol, outro de frio, outro de chuva — pra te dar notícias. Em
separado, estou te enviando um número da Tribus, a maior revista gay daqui, que eu
acho ótima — a mistura au point de sacanagem & seriedade.
Meus livros estão indo muito bem. Amanhã faço outro programa de TV —o
Cercie de Minuit, uma espécie de Jô daqui — e com isso arremato a fase “Caio F. & a
mídia francesa”. Fiz todos os números — é tão cansativo — caras e bocas
necessárias; ganhei meia página no L’Express, a Veja daqui (na daí nunca ganhei,
como dizia minha avó, um biscoito seco...); perfil em Les Inrockptibles, uma espécie
de A-Z dos bons tempos, com tiragem maior — toda a França — e mais rica.
Levarei provas! Fez bem pro meu ego, que cada vez se satisfaz com menos, já que
saí daí tão cadela, mas também deixou claro que criação é uma coisa, e essa
badalação a posteriori outra completamente diversa.
Na verdade me sinto cada vez mais une vieille dame, sempre meio fatigada e
necessitada de solidão. Tentei dar umas saídas — Anthony Bellanger, da Tribus, é
uma companhia deliciosa — mas boate gay continua a ser o que sempre foi: a
mesma coisa aqui, em Jacarta ou Jundiaí. Aqui é ainda mais patético, porque as
bichas dublam melancolias de Edith Piaf ou Mireille Mathieu e acabam todas
bêbadas e tristíssimas, jogadas sobre os balcões, com os narizes empinados para os
estrangeiros. Quando desempinam, vão caçar árabes nos labirintos da Gare
d’Austerlitz. C’est trop. Nem pensar uma almôndega ardente como aquela
inesquecível que comandamos no Massivo. A propósito, mandei um cartão erótico
pro Mauro Borges, o DJ do Massivo — lembra? aquele dos peitões. E eu não
resisto a um par de peitões.
Tenho só uma semana mais de Paris, e não sei se parto — mas parto
domingo próximo sem falta — para Skejeberg, na Noruega, ou para Lisboa. Na
Noruega vive Augusto, meu amigo de adolescência, casado com um norueguês há
uns 15 anos (casado-de-papel!) — mas estou em CHAMAS para conhecer Lisboa,
que virou moda entre gays e intelectuais e artistas europeus. Em carta, Gianni me
conta que surpreendeu Jean-Paul fazendo uma chupetinha num bofe negro em
plena boate gay lisboeta... Na casa de banhos, imagino. Pode? Mas eu, quietíssima.
Santa. Mais que santa: deusa.
A Europa acaba com o meu libido. A periquita sossega.
Dei uma sorte danada: um pianista brasileiro, Braz Velloso, viajou para o Rio
e me emprestou o ap. dele até 02.05. O prédio é sinistrérrimo, parece aquele de
Polanski em O inquilino, mas o ap. é ótimo. Tive alguns entrevêros com brasileirada
que mora aqui (Betinho, como são nigrinhas! estão sempre procurando tirar
vantagem e a postos para fazer najices), tirei o time e só mantive o M., que vive
aqui há mais de 25 anos, e C. (ambas positivas, C. há 10 anos). Com M., hoje,
vamos escolher trechos de Marília Pêra cantando para o meu programa de manhã
— M., amigo de La Pêra, quer trazê-la com Elas por ela. Sim, eu já avisei tudo aquilo
que você está pensando...
Mandei um cartão ao Namatame, dizendo a ele que — na medida do
possível — insista com Carlinhos Moreno e o Quixote. Mostrei por aqui, todo
mundo adora — Claire quer traduzir para o francês (fica um problema no título,
em francês perde-se a ambiguidade “mancha” e “La Mancha”. E o Robson
Phoenix — fica de olho! — já devia ter estreado, não?
Volto só no comecinho de junho (vou usar a passagem até o último dia!),
mas te juro que não tenho vontade de. Aqui, uma crise braba aussi, muitos
adolescentes mendigos, e a cidade num grau de stress quase paulistano —
engarrafamentos, poluição, atrolho generalizado. Mas você sabe, há uma sensação
de dignidade sempre no ar. Tudo caindo aos pedaços, claro, mas educadamente. A
barbárie de Là-Bas (para os franceses, todo país exótico & distante Là-Bas, seja
Grécia, Nova Zelândia ou México) me faz mal.
Sinto que estou em plena meia-idade — une vieille dame mesmo. Eu só
tenho pensado em escrever, além de ir ao cinema, claro. Ao teatro fui uma vez: três
horas de As troianas de Sêneca, premiadíssimo e chatérrimo. Saí me sentindo com
96 anos. Depois de duas brahmas, comecei a me sentir com uns 80, mas até hoje
não desci dos 60. AI QUE SACO QUE É TEATRO! Eu tenho impulsos horríveis
e grosseiros de dar um bom zap! na embromação toda. Hécuba, Andrômaca e
Helena se retorciam demais, três horas em prantos — naturalmente vestidas de
negro.
Mandei um postal a Jacqueline, mas não tenho idéia se ela continua a viver
em SP — espero que não: NY é o futuro para La Cantore, e se ela der bobeira
nisso, mandá matá! Como diz Déa, de quem uivo de saudades. Também mandei
notícias. Sinto falta principalmente de you two, me faltam cúmplices por aqui!
Maio fico troteando pelos caminhos, mando notícias mas não posso receber.
Dá-las-ei — que tal? — em chegando a Là-Bas. Espero que Ermel esteja muito
bem, e você também. Arruma um telefone, nêga, porque assim fica difícil: tua mãe
tem razão! Elas sempre têm. Ti amo sempre e je t’embrasse.
Caio F.

PS — Adorei saber das Borboletas — Beijo no Ricardinho B.
PS 2— Relaxa com os endereços. Já consegui quase todos.

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