A Guilherme de Almeida Prado

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Paris, 12 de abril de 1994

Querido Guila,
escrevo “querido” porque — você sabe? — realmente gosto muito de você.
Não esqueça disso.
Voltei sábado de Saint-Nazaire, de onde te enviei um cartão (pedindo o
endereço/telefone de Gianni em Lisboa). Ao chegar encontrei teu cartão.
Eternamente Bambi, abri todo saltitante — foi o primeiro que recebi do Brasil, e
desde que saí, há mais de mês, não tive notícias daí. Então levei um choque. Deus,
quanta hostilidade! Fechei o cartão e só reabri hoje, depois de muito pensar se
devia uma resposta ou não. Porque realmente-gosto-muito-de-você, acho que sim.
Ô Guila, calma lá! acho um pouco ridículo um bate-boca transoceânico, mas
não consigo ficar com essas coisas atravessadas. Então:
1º fui injusto — um pouco — ou excessivo com você. Ma non troppo.
Como te disse, voltei a SP ano passado, após dez meses de ausência, sem
trabalho, sem casa sem nada. Discretamente, enviei sinais de socorro aos
amigos. Ninguém ajudou. Me virei sozinho. Isso me endureceu um pouco
mais. Não foi só você, não. Foram também pessoas até mais íntimas, como
Jacqueline. Eternamente Bambi, me virei sozinho com enormes dificuldades.
Não me lamuriei. Mas preciso que as pessoas saibam que isso doeu —
exatamente porque algumas destas pessoas, como você ou Jacqueline,
importam para mim.
2° Cheguei em Paris preocupado com a minha violência, o meu “excesso”.
Metade pelo menos provocada pelo álcool e pela excitação da viagem.
Pedi desculpas, com doçura,
3° Você me responde duramente. Escuta:
4° “Ar blasé” — não sei o que significa isso. Certa vez num grupo de
psicanálise (fiz 14 anos, ganhei duas altas: acho que lido mais ou menos bem
com meus demônios) uma garota disse que eu era “altivo”. Achei chique.
Talvez você queira dizer “ar aristocrático”?
Bivar, que tem um olhar doce sobre o mundo, certa vez disse que eu parecia
um príncipe — normando. Não sei por que “normando”, mas também achei
bonito. Sou terrivelmente tímido e, na verdade, acho que tenho mais é um ar
de cachorro surrado, daquele que levou muita porrada, passou fome, dormiu
ao relento.
5° Eu “não resisto a uma baixaria bem brega”! Resisto sim. Tenho um passado
hippie que me deixou muitas coisas boas. Estou sempre preocupado com a
ética, com a beleza, com a dignidade. Sou educadíssimo, e fui criado de
maneira muito católica, com toda aquela culpa de “maus” pensamentos,
“mas” ações, e uma terrível nostalgia da “bondade” (como a “Alice” do
Woody Alien).
Gosto de pessoas doces, gosto de situações claras — e por tudo isso, ando
cada vez mais só. É como me sinto melhor.
6° A propósito do parágrafo acima, hoje li um Wolinski chamado Les français me
font ríre que começa com esta frase: “Si tout le monde était comme moi, je
n’aurais pas besoin de detester les autres!
7° Amigos não “são para essas coisas”, não. Isso é um clichê detestável,
significando quase sempre que amigo é saco de pancadas, é uma espécie de
privada onde o outro pode jogar dejetos, detritos imundos e dar a descarga.
Amigos são para dividir o bom e o mal, mas também para deixarem as coisas
sempre limpas entre eles — amigos devem ser solidários. Um dos meus
maiores amigos, [...], que vive em Paris há quase 30 anos e é soropositivo há
9 (mas graças a Deus saudabilíssimo), tem sempre a preocupação de ser útíl
aos amigos. Quase não fala, não envia flores, não escreve cartas — mas quando procurado está sempre ali, firme e cheio de informações práticas
para ajudar a gente. Amigos são também para escrever cartas enormes e um
tanto idiotas como esta, cheia de carências, porque gostam de outros amigos
e não querem que as relações de amizade tombem nesse poço nojento de
brutalidade e vulgaridade que viraram os anos 90.
E por isso que te escrevo, quase meio-dia, um sol raro lá fora. Guila, não me
mande coisas assim raivosas. Eu não tenho anticorpos para esse tipo de coisa. Até
hoje, um dos meus truques para sobreviver, mesmo não sendo mulher e nem
sequer tendo cabelos, foi fazer o papel de “loura burra”. Deixei passar muita
agressividades muita humilhação — e não me refiro a você, mas estou farto. Fui
vivendo minha vida de maneira tão solitária, conquistando minhas coisas tão no
braço, tão sempre sem nada, que aprendi a ter uma enorme admiração por mim
mesmo. Vou chegando muito perto dos 50 anos sem dever absolutamente nada a
ninguém.
Então, nos últimos tempos — deve ser a meia-idade — comecei a ter uma
sensação, digamos, de “direitos adquiridos”. Não agüento mais desaforo, e vou
ficar pior, vou ficar, se Deus quiser como Odete Lara, Greta Garbo, Fauzi Arap,
Helen Lane — americana budista de 84 anos que conheci semana passada, e vive
só numa cabana no Perigord, cercada apenas de livros e gatos. Ando exausto de
seres humanos.
Guilherme, mon cher, precisamos — eu e você e todo mundo — tomar
muito cuidado com esses tempos. São tempos de horror. Tudo fica ainda mais
grave neste país de là-bas, como é o Brasil, e mais ainda numa cidade como São
Paulo — onde a crise econômica, a corrupção, a violência, a falta de futuro, a
miséria material foi gerando sem que as pessoas percebessem também uma miséria
psicológica, uma miséria espiritual ainda mais terrível e mais patética. São Paulo
virou um grande salve-se-quem-puder: ninguém ajuda ninguém. E se as pessoas
como nós — os “especiais”, os cineastas, os escritores, os músicos, os poetas: a
gente que tenta criar beleza e dignidade — também começarem a agir dessa
maneira, então vale mais a pena a casinha pobre de Dulce Veiga no meio do mato,
as panelas arrebentadas em que Odete Lara uma vez cozinhou arroz integral para
mim. Compreende?
Devo estar chatíssimo, mais “blasé” do que nunca, com todo esse texto
parecendo discurso do Partido Verde... Et voilá: sou também um pouco tolo, um
pouco naive, um pouco pêra — e eternamente Bambi. Quando a barra pesa,
compro flores e ouço Mozart, Não creio que isso seja gostar de uma “baixaria bem
brega”. Além disso, essa linguagem rasteira absolutamente não combina com você
— um von Almeida Prado!
Sinto que o Brasil tenha ficado “ainda mais medonho” sem mim. Em
compensação, a França parece ter ficado ainda mais encantadora comigo. Os livros
caminham lindamente, críticas ótimas nos jornais e revistas mais importantes, rádio,
TV. Ontem — foi hilário — dei autógrafo na rua, em Saint-Germain des Prés, para
um garoto — estranhamente chamado Damour — que viu um dos programas de
TV, comprou os três livros, deu vários de presente. Cheguei na editora rindo: meu
Deus, a Laika de São Paulo, a negra sem ter onde morar, vivendo com 500 dólares
por mês, lavando roupa num balde sob o chuveiro, fazendo a feira toda sexta —
dando autógrafo em Saint-Germain!
Por tudo isso, tenho me divertido muito, muito. Ontem, a poderosa de uma
editora que recusou Dulce VeIga, após várias najices, me convidou para jantar no
“Le Temp Perdu”, o melhor restauante do Quartier Latin. Eu disse educadamente
“não”, muitos compromissos muitas viagens. Se gostasse de uma “baixaria bem
brega” aprontava uma grosseria em plena mesa de jantar. Mas não sou hipócritas
Guila. Não sei fazer “jogo social”. Até saberia, mas não me interessa, tenho
preguiça. Como Dulce V., eu sempre quis só “outra coisa”, e vou chegando a um
ponto em que tenho pensado se essa “coisa” não será a solidão mais completa — e
se não ela, essa solidão idealizada, porrada de gatos, rosas, Mozart e livros, será
quem sabe somente a morte. Há que ter paciência para esperar por ela, que é a
única certeza entre todas as nossas ilusões tolas. “Ah, quando virás, cavalinha,
montar meu dorso fatigado!” — dizia Hilda Hilst (60 anos no próximo dia 21) num
poema de um livro chamado Da morte — Odes mínimas.
A propos: você já viu Short cuts, do Altman? Não sei se chegou aí. Fiquei
PARALISADO. Não é um bom filme: é genial, é uma radiografia um corte tão
profundo e impiedoso na sociedade americana e na alma humana que vale por ter
vivido uns 20 anos. Ensina muito sobre a nossa loucura, a nossa vulgaridades a
nossa crueldade.
São de coisas assim que quero falar com você, meu amigo — cinema,
literatura, música, vida. Que enorme desgaste trocar najices — gastar um cartão
lindo daqueles (que vou ter que jogar fora, sorry, é muito ofensivo) mais selo, sem
falar na produção sempre euxastiva de enfrentar os correios paulistanos — de
hemisférios opostos. Ah, Guilherme, não me envie mais coisas assim. Não escreva
nada, não nos procuramos mais: um dia nos cruzamos por acaso, de repente, e
então vemos o que aconteceu a nossos rancores e reagimos de acordo com isso.
Mas se você quiser me contar das suas funduras, e não apenas defender-se — e os
amigos são, sim, para trocar abismos — então me escreva 10, 100 páginas, e eu
responderei com calor, com carinho, com toda amizade que realmente sinto por
você.
Continuo a sentir que Dulce Veiga é nossa, minha e sua. Te mando dois
recortes simpáticos — um do L’Express, a Veja (com ética, claro) daqui. Outro do
Les Inrockuptibles, uma revista chique e cult, um pouco como a A-Z dos bons
tempos, mas com circulação bem maior. Divida isso comigo, tem um gosto bom.
Ah: se você tiver o endereço/fone do Gianni seria maravilhoso. Pedi
também a Cida Moreira, que precisaria pedir ao Ivan Mattos, que. E aí entra todo
aquele mar de lama que você conhece, e que eu prefiro evitar.
Beije com carinho a divina Zu Val por mim: Zu, quero te ver cantando, com
direito a muito jubão crespo, quando voltar. Diga a ela que, por aqui o Império do
Bustiê também tem seu poder. A diferença é que os bustiês são Gaultier, Channnel
e Yamamoto — embora para mim bustiê seja bustiê e pronto, no Champs Elysées
ou Taboão da Serrra.
E diga também ao Ricardo que mando um beijo. Cuide-se, fica feliz.
Je t’ embrasse
Caio F.

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