A Maria Lídia Magliani

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Paris, 26 de março de 1994.

Maria Lídia, chérie,
papel e envelope foram escolhidos especialmente para Mademoiselle.
Gostou? Tem de todas as cores e é baratinho (reciclado). Faz sol (milagre), é
sábado aprés-midi, escuto Jeanne Moreau cantando “amour, amour fou, de vous ne
reste rien”. Peter, o hóspede alemão de Alexandre, recebeu hoje a mulher Ramona
(o nome é chicano, mas ela é alemãzésima), riem na cozinha entre salsichas.
Ando feliz, feliz-clichê: amo Paris. Acho que nunca disse isso para cidade
nenhuma. As cidades, você sabe, são falsas e traiçoeiras. Paris, você quer casar
comigo? Acampei na sala de Alexandre, a falta de espaço é terrível, para qualquer
movimento preciso abrir malas e bagagens, e nunca sei exatamente aonde está a
cuia, onde a calcinha... Males de um viajante. Vou para Saint-Nazaire, ficar uma
semana, entre 1 e 8 de abril, aí volto e fico na casa de um-pianista-que-está-indopassar-
um-mês-no-Brasil. Ele chama-se Braz Velloso, eu insisto em chamá-lo de
Brás Cubas, claro. Final de abril não sei ao certo o que faço. Ou permaneço em
Paris, ou Londres, ou quem sabe Lisboa, que não conheço. Ou sei lá. Anyway,
minha passagem vence dia 9 de junho, e não posso perdê-la. Ou posso mas não
quero. Ou posso mas não devo. Anyway, quem sabe desta vez um tempo em
Tiradentes?
Vida louca, vida breve: tu s’as (experimente dizer isso com sotaque gaúcho)
que meus livros vão indo muy bien por acá? Nunca pensei, sou um sucesso em
Paris! Hoje à noite vai ao ar um programa de TV, o melhor sobre literatura,
chamado Jamais sans mon livre (o título é medonho, não?), tipo o-Jô-daqui. A
gravação foi hilária.
Imagina que, como o mundo apesar de redondo tem muitas esquinas, o
diretor do programa é uma bicha chilena gordimensa, que vive aqui desde que
Allende foi assassinado (em 73, lembro bem arque eu estava no Hyde Park em
Londres, era dia do meu aniversário e eu lia o Le Monde) e ficou louca quando,
durante a entrevista, me referindo a Dulce Veiga, comparei-a à Maysa. Pois a
chilena, de cujo nome no me acuerdo, foi amiga íntima de Maysa. Conta ela que
muito trocou fraldas de Jayme Monjardim, o filho. Gostaria eu de trocar fraldas, ou
qualquer outra coisa, do Monjardim hoje...
Bueno, dispersões à parte, estou em todas as vitrines e dou entrevistas
furiosamente. Já saí a cores no Telérama! Me sinto assim quelque chose entre
Beatrice Dalle e Sonia Braga, et voilá. Dinheiro que é bom, nada. Ontem, muito
cadela, usei o fax da editora para tentar liberar um CDB no meu banco em São
Paulo. Sabe que não me importa mais tanto? Nem não — olha o estilo — ter casa.
Sampa-Teresinha foi uma verdadeira cidade-ogro avec moi. Só ao chegar aqui tive
consciência do quanto Sampa está doente, Maria Lídia. Não sei se quero ficar mais
lá. Onde? Onde? você me pergunta, e eu calo, se descobrir o lugar, te informo.
Talvez Paris? Et pourquoi pas? E tão lindo simplesmente caminhar aqui, há pouco
fui ao super, que no Brasil seria um martírio, e para chegar lá é preciso passar por
uma alameda de cerejeiras floridas de pelo menos 50 metros. Tudo rosa-pink, bem
naquele tom-Barbie que você odeia. E possível ser infeliz sob uma alameda pink?
[...] .
Je me promene o que posso. Nos intervalos, vou ao cinema. Fiquei louco
com Short cuts, o Raymond Carver filmado por Robert Altman, e como tinha visto
Kika, de Almodóvar, no dia anterior (com figurinos de Jean-Paul Gaultier, meu
bem), e que é uma droga, descobri que Altman é um Almodóvar COM substância.
Ainda não me joguei nos museus, mas Brás Cubas, quer dizer, Velloso, me
recomendou um Cícero Dias — não lembro de nada dele. E estou tentando
conseguir um ingresso para ver Isabelle Hupert fazendo Orlando de V. Woolf no
teatro.
Troquei La Moreau por Jane Birkin, que no momento geme “je t’aime,
jet’aime, moi non plus” e arfa e bufa e suspira e trina. Pensei agorinha mesmo em
você cantando “teach me tiger” — era mesmo teach me? — não faz muito sentido.
Por lembrar disso, sa’s que encontrei L.L. na Maison Chanel? Tinha vindo de New
York só para comprar um par de luvas — tigradas, naturalmente — e na mesma
noite estava embarcando para o Tibet, para um misterioso rendez-vous com o
Dalai Lama. Não sei ao certo se La L. converteu-se ao budismo ou, tout au
contraire, o Dalai está metido em tráfico de crack. Você conhece bem a L.L.
Hoje, talvez seja o sol, estou num insuportável humor fútil: tenha paciência.
Vai passar já-já: me esperam algumas meias e cuecas de molho na banheira. Mas as
anêmonas que comprei ontem na feira estão deslubrantes. Ramona e Peter foram
para o quarto e começaram, suponho, a trepar em alemão. Nunca pensei. Morro de
saudade. Me dá uma notícia. Tigrana mandou beijos, eu mando mais. Para Marijô
aussi. Je t’embrasse,
Caio F.

PS — Tô sem teu endereço REAL! Me mande!

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