A Luciano Alabarse

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SP 28.01.85

Luciano, muito querido,
tardezinha de segunda-feira, quase 19h. Mais uma tarde — e dia inteiro —
deste estranho verão paulistano, feito de chuva, cinza, frio. Pela janela do
apartamento posso ver o céu carregado entre os edifícios. Falta de sol e de
vitalidade.
Estou aqui há exatamente 12 dias. Foi difícil mudar. É sempre difícil.
Primeiro fugi, adiei coisas. Depois aceitei, ganhei alguma energia no dia exato da
eleição de Tancredo Neves — e mudei no dia seguinte (16), em ritmo de “Muda,
Brasil!”. E um apartamento muito pequeno e provisório. Posso ficar até o começo
de março, apenas. Mais um mês, portanto. Mas já vi outro, bem maior, e na mesma
rua. Vou dividi-lo com Sérgio Bianchi, o cineasta, que é um bom amigo.
Interrupção telefônica: PUTZ, COMO EU TENHO SORTE! Imagina que
tinham me telefonado da Folha de S.Paulo, um editor-assistente, me propondo
trabalho e convidando para almoçar com ele, hoje. Só que estou com uma gripe
danada, e ontem fiquei até altas assistindo a Nasce uma estrela, com Judy Garland.
Resultado: acordei is duas da tarde, morto de vergonha e culpa. Ei-lo que liga agora,
pedindo mil desculpas: não foi sequer trabalhar — imagina que me deu o bolo — e
transferiu o almoço para amanhã. Fiquei frio, claro. Pode, esta sorte?
Mas então é assim, tem uns trabalhos novos rondando — nada acertado,
nada definitivo. Eu só tenho que tomar tento dentro da minha inenarrável preguiça.
Mudar foi bom. Trouxe mais energia. Fica mais perto de tudo, e andei curtindo todos os cinemas que consegui. Vi simplesmente tudo que há em cartaz: não perca
O baile, de Ettore Scola — mas tenho a impressão que você vai adorar também Um
amor de Swann, o Proust no cinema, um pouco frio, mas com fotografia e cenografia
belíssimas. E não perca também Os eleitos, aquela história sobre astronautas: é lindo.
O livro do Pirandello — Contos pirandellianos — foi lançado com muita badalação,
mas é ruim pra caralho. Eu fiz o que podia, e na verdade gosto do meu conto. Mas
o livro simplesmente não se sustenta.
Paranóias: vim daí assustado com a história de Fernando Zimpeck. Cheguei
aqui, havia outra: Luiz Roberto Galizia. Ele era do Grupo Ornitorrinco, diretor
(bom), uma época escreveu crítica literária para a Veja, tem uns dois livros de
poesia publicados. 34 anos. Não éramos amigos íntimos, mas tínhamos uma relação
bonita — sempre conversávamos muito quando nos encontrávamos. Ficava no ar
aquela coisa assim “Um dia, se houver oportunidade, ainda seremos bons amigos”.
Bem, ele está hospitalizado há 15 dias, desenganado. Diagnóstico: AIDS. É então,
quando essa peste começa a sair das páginas dos jornais para atingir pessoas
conhecidas, que você pára e pensa “meu Deus, a tal doença parece que existe
mesmo”. E dá medo. Porque te ameaça no que você tem de mais precioso: a
sexualidade. Medo, medo, medo. Eu ando inteiramente casto. Na verdade, já há
algum tempo, desde que conheci o Pedrinho [...], em julho. O último contato sexual
foi com ele mesmo, comecinho de dezembro passado.
Temos nos escrito e falado por telefone — ele quebrou o pé, dançando na
festa de vitória de Tancredo. Está em casa, lendo muito, recolhido. E uma relação
bonita, que eu quero preservar e deixar crescer. Imagino que ele também. Mas fica
complicado, solitário, assim à distância. Jogo I-Chings que me recomendam calma,
paciência, e dizem coisas como “A mulher perde a cortina de sua carruagem. Não
corra atrás dela, no sétimo dia você a receberá de volta”.
Luiz Arthur veio do Rio para fazer umas entrevistas — Antunes Filho,
Abujamra — para a tese dele, sobre Nelson Rodrigues. Ficou uma semana comigo.
Volta para Nova York no final desta semana. Imagino que você esteja a mil com o
seu Nelson Rodrigues aí — e envio todas as boas vibrações possíveis.
Eu ainda estou me sentindo meio solto, e continuo com alguns problemas de
grana. Penso muito em dar uma outra direção à vida: surgiu uma oportunidade de
algum tempo nos Estados Unidos, e estou a fim. O problema é a grana para a
passagem. Mas — quem sabe? Não estou escrevendo nada. Sinto uma espécie de
esgotamento (daí, viajar também por isso seria bom). Precisava me renovar, de
alguma forma.
Mas é isto. Estou achando esta carta muito da sem graça. Mas é mais para te
dar notícias, passar endereço e telefone novos. Espero que tudo esteja correndo
bem com a senhora dos afogados: dê um beijo meu em todas as pessoas
especialmente na Gorda (ou ex- Gorda). Cuide-se bem, que o verão esteja te
tratando na palma da mão. Muito carinho e um beijo do
Caio F.


Sampa, 07 de fevereiro de 1985.

Luciano, muito querido,
aconteceu urna coisa boa hoje que tenho vontade — incontrolável
— de contar para você imediatamente. Sabe que o Naum Alves de Souza me pediu
a adaptação de Reunião de família? Pois é, ele adora o trabalho da Lya (e também —
deixa eu me exibir um pouco — o meu) e está procurando um texto para dirigir.
Nada marcado, nada definido: só quer dar uma olhada. Mas achei fantástico. Aí
cheguei em casa, fui reler o texto, me vieram uns flashes da montagem (tão linda) e,
como não podia deixar de ser, uma saudade grande de você. Amanhã mando o
texto pra ele, com um programa. Faça um pensamento bom. Podia dar certo, não?
E com Naum dirigindo? Tudo a ver. Não conte pra ninguém, nem pra Lya (que,
aliás, está na praia).
Fiz uma pausa agora e — noutro Impulso Incontrolável, este telefônico —
liguei pro Rio. Queria falar com o Pedrinho [...] Desliguei, fiquei melancólico.
Acendi um incenso. No rádio, Chico canta Vai passar. Sim, vai passar. Passa.
Passará.
Andei meio mal, meu amigo. Saúde de novo. Voltei ao homeopata, me deu
os mesmos remédios, porém em doses mais fortes. Sulphur, enxofre. Ele me
recomenda que fique “mais feliz”. Não ensina como, claro. Anda um surto de
pestes solto em São Paulo. Um pouco, talvez, por causa do falso verão: muita
umidade, falta de sol, tristeza na cabeça das pessoas. Eu sinto muita falta de luz do
sol, faço fantasias com praias tropicais, areias clarinhas, Um pouco isso, também.
Mas tento ficar mais feliz aqui mesmo, ás vezes consigo. Enfim, estou em
tratamento e em observação — se dentro de uns 15 dias não houver melhora, parto
praquela fase meio paranóica: exames.
Outro dia estava lendo um romance de Norman Mailer que, lá pelas tantas,
tem uma frase assim: “Tudo começou aos 36 anos, com uma pontada do lado
esquerdo do peito”. Muitas coisas começam aos 36 anos? Acho que sim.
Estou cheio de trabalho: além de um fechamento meio alucinado da Around
de março, peguei, para a Brasiliense, a tradução de um livro espanhol — um
depoimento de um traficante de drogas apanhado por um antropólogo. Fanny
Abramovich, a psicóloga, me pediu um texto para uma antologia que ela está
organizando sobre a adolescência (na mesma linha daqueles anteriores dela O
sadismo da nossa infância e O mito da infância feliz). Já tenho uma história linda na
cabeça, estou deixando ela crescer um pouco sozinha. É puro Eros e Thanatos.
O chá de alecrim (é antidepressivo, sabia?) acabou, vou pegar mais na
cozinha. Voltei. Estou muito chegado a chás: este de alecrim, mais um de levante
(energético), outro de bardana (purificador do sangue). Tenho me cuidado, muitas
frutas, ginástica, um pouquinho de ioga, mel e leite. Uma consciência de que o
corpo é frágil, e tudo muito rápido.
Hoje conversei longamente com Regina, a Duarte — e soube que minha
história está trancada na Censura Federal: Dona Solange só libera para depois das
23h, e depois das 23h há um problema com anunciantes, o horário é fraco. Haja,
não? E eu JURO que amenizei TUDO que podia. Mas enchi de TV. Tava a fim de
mais teatro, estou animado com esse negócio de Naum, e continuo trabalhando a
quatro mãos naquela peça com o Fauzi Arap (Todos os insetos). Continuo com aquela
minha própria peça, que se chamaria Overdose, dando voltas na cabeça. Hoje fiquei
bem obcecado com ela. Mas tenho um medo de sentar pra escrever minhas
próprias coisas, Luciano — há demônios s vezes incontroláveis que vêm à tona.
Por aqui, vou torcendo pela sua Senhora dos navegantes [sic]. Sim, deve dar
certíssimo. Espero que Miguel tenha melhorado (um beijo nele) e que Ernesto
tenha reaparecido. Eu estou de molho com vida afetiva, preferindo me concentrar
em trabalho, em mim mesmo. Sim, freqüentemente baixa uma grande solidão.
Tenho experimentado às vezes, ao vivo, a solidão urbana de ver a cidade esparramada e cheia de néon brilhante além dos sete andares onde moro, pela
janela aberta.
Imagina, no rádio Gal começou a cantar agora Tigresa... Mas sempre é bom
poder tocar um instrumento, não? Estou cuidando bem desse instrumento. Tem
cordas frágeis, às vezes fica calado sem mais nem menos. Estou lendo a lírica de
Camões, leio em voz alta, com sotaque português — é tão lindo. Te mando, por
exemplo, este soneto:
“Busque amor novas partes, novo engenho
para matar-me, e novas esquivanças,
que não pode tirar-me as esperanças;
que mal me tirarão o que eu não tenho.
“Olhai que de asperezas me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes, nem mudanças,
Andando em bravo mar, perdido lenho.
“Mas, conquanto não pode haver desgosto
onde esperança falta, lá m’esconde
amor um mal, que mata e não se vê.
“Que dias há que n’alma me tem posto um não sei quê, que nasce não sei donde,
vem não sei como, e dói não sei porquê”.
Lindo, não? De 1500 e poucos — a edição foi póstuma, em 1595. Já doía, naquele
tempo... Tenha cuidado. Penso com carinho em você. Pense com carinho em mim.
Um beijo do
Caio F.

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