A Maria Lídia Magliani

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São Paulo, 10 de janeiro de 1990 (cruzes!)

Magli Magoo, menina loba,
espero que você continue nesse endereço, caso contrário nos perderemos,
espero que não para sempre. Recebi teu recado de ano-novo (minúsculas
propositais), mas você não deixou nem um número de telefone para onde eu
pudesse ligar. Haverá um? Se houver, passe-mo. Eu tinha ido a Porto Alegre — me
mandaram uma passagem para (pode?) apresentar uma festa no Porto de Elis — e
de lá para o Rio, tomar o Santo Daime no dia 31. Parênteses: tomar o Daime e
cantar e dançar hinos para Deus e as entidades da floresta foi talvez minha única
alegria ano passado. Parênteses dentro do parênteses: não, não estou pirando, nem
entrei na seita nem nada. Vou lá porque acho lindo. Fechar parênteses.
Saudade enorme de você. Ontem vi uma foto de Tiradentes na revista Corpo
a Corpo, uma vista geral, e fiquei pensando em qual dos morrinhos você moraria.
Pois há de ser, certamente, num morrinho, acertei? E morrinhos e morrinhos a
perder de vista no horizonte. Inveja. Inveja do bem, saudável, por você ter cortado
os laços com o urbano. Cortou? Eu continuo atado.
Não ando bem. Como não ando bem há exatos 41 anos e quatro meses,
concluo que nada de grave. Mas — digamos — problemas brasileiros. Trabalho
demais, trabalho em todas as direções, trabalho mal pago, suado, sofrido. Contas,
contas & contas. Nenhum amor, há tanto tempo, ando até pensando que amor é
como uma espécie de fantasia com o Papai Noel, só que dura até os 40. Será? Por
favor, me desmente. Nos últimos tempos, me baixou uma humildade, criatura, dei
para cozinhar, fazer faxina. Saio quase nada, vejo quase ninguém. Uma vida pra
dentro, numa cidade indiferente. Bem dificilzinho — o diminutivo é porque sempre penso nas criancinhas embaixo das pontes e aquelas coisas todas.
O problema antigo continua: inventar tempo para escrever minhas próprias
coisas. Claro que não consigo. E os dias vão te engolindo, os meses, os anos (aliás,
acabei de ler Os anos, a única Virginia Woolf que me faltava — é tão aflitivo na
maneira como os humanos nascem, crescem e envelhecem enquanto as estações se
sucedem). Mas eu rezo. Tenho fé. Descobri qualquer coisa dentro de mim que, não
sei exatamente como nem por quê, consegue manter-se serena no meio desta falta
absoluta de perspectivas.
Pensei, um dia — não sei quando, também não sei se é plano ou fantasia,
nunca tenho dinheiro — visitar você. Nessa revista onde vi a foto da cidade diz que
há uma viagem de trem que se pode fazer até São João Del Rei “numa bela
travessia de 12 km entre inesquecíveis paisagens românticas” (copiei literalmente da
revista). Certamente eu poderia usar frasqueira e um modelinho safári, confere? De
fevereiro a maio estarei preso pela Oficina Três Rios (que mudou de nome para
Oswald de Andrade), dirigindo o tal laboratório-de-criação-literária (não me
pergunte do que se trata — é pago e isso basta). Mas quem sabe depois, um dia.
Pois é, um dia.
Tenho quase sempre vontade de ir embora de São Paulo. Viver uma vida
onde se possa olhar o céu e os horizontes. Só isso. Quem sabe uma casinha com
um pouco de terra? Aliás, ando com uma mão ótima para plantas — coisa que
nunca tinha tido, Cultivo begônias estonteantes, violetas gloriosas, pés de guiné
altíssimos. Quando tenho insônia — e tenho sempre — fico imaginando enormes
roseiras na frente de uma casinha branca com coberturas azul-marinho. Geralmente
sou sacudido por uma sirene de polícia, uma moto com descarga aberta, o alarme
de algum carro sendo —- naturalmente — assaltado.
Quem diria que viver ia dar nisso?
Mas sempre tem uma mostra — começa hoje — de Pedro Almodóvar no
MIS, e é possível ler mais algumas páginas de Cai a noite tropical (o último Manuel
Puig, lindíssimo) ou ouvir Nara Leão cantando My foolish heart. Tenho a mais
inequívoca certeza de estar ficando velho. Nunca pensei.
Me dê notícias. Sempre me perguntam por você, e nunca sei ao certo o que
dizer. “Está em Tiradentes” é muito vago. A propósito, você está mesmo em
Tiradentes?
Apesar de Fernando Collor e sua Barbie inflável, havemos de vencer. Na
pior das hipóteses são apenas cinco anos. Na pior? Bem, sempre acho que ele vai
acabar dando uma de Jânio, e lá vêm os militares com todas aquelas botas e espadas
e tudo. Pois não é assim que são os chamados “ciclos históricos”? Deus nos livre e
guarde. Me escreve. Tenha dias lindos, mesmo quietinhos. Ah, acabei de achar aqui
uma anotação do diário de Cesare Pavese de 9 de fevereiro de 1940 que é a nossa
cara: “O entusiasmo como profissão é a mais nauseante das insinceridades”.(*)
Sinceramente desanimado, então, mas sempre com muito carinho, tasco-te beijos
diversificados.
Caio F.

(*) Já pensou se ele tivesse conhecido o Silvio Santos?

P5 — Graça Medeiros, que vive em NY, anda por aqui — muy guapa — e manda
muitos beijos.

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