A Maria Lídia Magliani

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Sao Paulo, 16. o8. 94

Magli querida:
Pois é, amiga. Aconteceu — estou com AIDS — ou pelo menos sou HIV +
(o que parece + chique...), te escrevo de minha suíte no hospital Emilio Ribas, onde
estou internado há uma semana...
Ah, Magli, que aventura. Voltei da Europa já mal — febres, suadores, perda
de peso (perdi — imagina — oito quilos), manchas no corpo — e sem um tostão.
Não vou te contar todos os detalhes dolorosos dos 2 últimos meses — mas meu
santo é forte e mandou aquele nosso velho anjo da guarda chamado Graça
Medeiros, vinda de NY pque o irmão de S. [...] está terminal [...] Depois de pegar o
teste positivo, fiquei dois dias ótimo, maduro & sorridente. Ligando pra família e
amigos, no 3° dia enlouqueci. Tive o que chamam muito finamente de “um quadro
de dissociação mental”. Pronto-Socorro na bicha: acordei nu amarrado pelos pulsos
numa maca de metal... Frances Farmer, Zelda Fitzgerald, Torquato Neto: por aí.
Tiraram líquido da minha espinha, esquadrinharam meu cérebro com
computador, furaram as veias, enfiaram canos (tenho 1 no peito, já estou íntimo do
tripé metálico que chamo de “Callas”, em homenagem a Tom Hanks), etc, etc. Não tenho nada, só um HIV onipresente e uma erupção na pele (citomegalovírus) que
cede pouco a pouco...
Maria Lídia, nunca pensei ou sempre pensei: por contas e histórico infeccioso
feito com o médico, tenho isso há dez anos.
E pasme. Estou bem. Nunca tive medo da morte e, além disso, acho que
Deus está me dando a oportunidade de determinar prioridades. E eu só quero escrever.
Tenho uns quatro/cinco livros a parir ainda, chê. Surto criativo tipo Derek Jarman,
Cazuza, Hervé Guibert, Cyrill Collard.
E estou cercado de anjos. Minha irmã Cláudia — sempre a mais brava e bela
— veio de POA. Ficou dois dias. Todos da família lidam bem com a coisa. Nair, a
espantosa, não ficou nada chocada: já sabia... só ela sabia. Mas nunca duvide de
mães. E amigos ótimos, visita todas as tardes, muito amor, maçãs e chocolates.
Ganhando alta aqui, mais uma semana, vou para POA. Quero ganhar forças
para enfrentar Frankfurt e dois congressos na França em outubro/novembro. Não
sinto nenhum rancor, nenhuma mágoa. Chorei algumas vezes porque a vida me dá
pena, e é tão bonita. Passeio pelos corredores da enfermaria e vejo cenas. Figuras
estarrecedoras. Saio dessa mais humano e infinitamente melhor, mais paciente —
me sinto privilegiado por poder vivenciar minha própria morte com lucidez e fé.
Te amo muito. [...] Beije Marijô por mim (adoro escrever Marijot).
Nada disso é segredo de Estado, se alguém quiser saber, diga. Ouero ajudar a
tirar o véu de hipocrisia que encobre este vírus assassino.
Mas creia,
estou equilibrado sereno, e às vezes até feliz. Muito amor, seu
Caio F.

(finalmente um escritor positivo!)

PS — Ouço muito Maria Callas, sobretudo a ária final da Butterfly, que Augusto me
deu. Dificil ouvir outra coisa.
PS — Não se preocupe. Não fique triste. Tudo me parece muito lógico: Que outra
morte eu poderia ter? É a minha cara! E futilidade sempre foi matéria de salvação:
convenhamos que é muito moderno, muito in...
Só choro às vezes porque a vida me parece bela (O sol. As cores. As coisas). Mas é
de emoção, não de dor. Tá tudo certo.

Love
Love
Love
It’s
All
We
Need
Always



Gay Port, 27.09.94
Magli Magoo, my darling,
cheguei a ouvir daqui o grito de horror que você deu ao tocar nesse xuxesco
envelope pink. Pura implicância.
Rapidinho, pra te dar notícias antes de viajar — parto dia 4 de outubro
direto a Frankfurt, depois 10 cidades alemãs, depois três semanas em Arles (uma
minibolsa, numa Casa de Escritores e Tradutores que funciona, dizem, no prédio
onde morou Van Gogh — será possível?) — e me vuelvo só lá por 25 — 30 de
novembro.
Estou fortinho & tudo & tal. Hoje peguei o resultado de primeiro exame de
sangue pós-AZT e plaquetas leucócitos linfócitos e Tês-4 e todas aquelas coisas
sangüíneas, segundo a médica, estão má-ravilhosos! Saí do Hospital das Clínicas e
fui rezar na Igreja do Espírito Santo, bem em frente à Redenção, enquanto lasanhas
agora proibidas exibiam peitos e coxas pecaminosos para a manhã primaveril.
Falei longamente com Xô por telefone, depois encontrei-o no Theatro São
Pedro. Está muy guapo e indo para a Itália. Tenho reencontrado boas pessoas aqui
— Aida, a Tenaz, inacreditavelmente jovem; Valquíria Peña, inacreditavelmente
idem e quetais. Mas fico pelo Menino Deus, mal atravesso a ponte que leva à urbs
ensandecida. Et ça marche bien. Pai & mãe soft gagás, dá pra lidar, Nair às vezes
fica me seguindo pela casa enquanto conta histórias intermináveis. Mas me enervo
pôco, depois de toda essa saia justa, viver me parece um luxo, mesmo nos detalhes
mais aporrinhantes. Ando feliz, c’est bizarre, non?
Te mando um livrinho tosquérrimo que fiz com as três últimas Crônicas do
Estadão, usando como capa esse belo cartão da Deutsche AIDS-Hilfe. O telefone
não pára de tocar, querem entrevistas para todo canto sobre estar-com-AIDS. Me recuso — quando o “gancho” é o vírus pelo vírus. Argh. Quero falar do meu
trabalho, pô! Se perco o pé acabo no sofá da Hebe dizendo coisas do tipo ah, o
HIV é uma gracinha...
Dê um beijo estalado (ou estralado? Ou estrelado) em Marijot, cuide de seu
coração e — mau conselho — fume. É bom. Também tenho tentado me controlar,
ou pelo menos não passar de um maço. Mas catso, já não posso beber e sexo nem
pensar nem como açúcar — ninguém é de ferro! Acendi um Malboro em sinal de
protesto.
Ah, obrigado pelo oferecimento de help financeiro. Mas graças a Deus, não é
preciso. Declarei “oficialmente” meu caso (?) — o que significa que tenho
atendimento gratuitos até me dão alguns remédios —, há uma espécie de (???) sei
lá, digamos amparo aos soropositivos. E quando precisei do Rio, Lucinha Araujo e
Scarlet Moon ajudaram muito, conseguindo de graça um remédio americano que
custava quatro mil dólares o grama! Custa caro não morrer, honey. Morrer também.
Viver não menos...
Mas tô ótimo, voltei até a usar reticências e pontos de exclamação. Espero
vê-la em dezembro para um estonteante pôr-do-sol à beira do Guaíba, um beijo e
votos de força na peruca!
Seu
Caio F.
[...]
PS — Um beijo no Maschio.

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