A Maria Lídia Magliani

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Gay Port, 28 de agosto (vai-te, peste!) de 1995.

Magli,
Francamente, teu silêncio me dá nos nervos. Mas tudo bem. Nem sei se você
recebeu o livro nem duas ou três cartinhas. Ana Amaral me disse ontem que esteve
aí com você, e que você está bem. Pelo menos isso. But, please, send me news!
Te escrevo desta vez por uma razão bem objetiva:
Seguinte — lembra que lá por 1982/83 te pedi uma capa para uma reedição
de Inventário do irremediável? Bueno, viajei, sambei, voltei, o Paulo saiu da Nova
Fronteira, e a coisa não andou. Agora, quero fazer isso, está tudo numa pasta, já
revisado e tudo e tal e com a capa LINDÍSSIMA. Seguinte parte dois — você
autoriza a utilização? O livro tem que estar pronto para a Feira do Livro, da qual
sou — cruzes! patrono (que sempre confundo com padroeiro...). Então, please, tem
que ser jogo rápido.
A editora é a Sulina, em nova — e boa — fase, e eu quero que te paguem o
trabalho. Vou me informar de preços, tabelas, e você pensa nisso também, OK?
Ainda, se você quiser, te mando por Sedex uma xerox colorida da capa procê ver se
quer mudar alguma coisa. Por mim tá linda, perfeita, maravilhosa & etc. [À
margem: No caminho do correio, fiz a xerox para adiantar serviço.]
Andei telefonando para Marijot de Montmorency à tua procura. Mas talvez
tenha o número errado. Nunca ninguém atende, dá ocupado no meio dos números,
bodes assim. [...]
No más, guerreamos. Jocasta teve uma isquemia cerebral em julho, ficou 10
dias no hospital, quase paralítica do lado direito. Agora está se recuperando (elas não se entregam, o que é admirável), mas comigo assim, meu pai tem segurado
todas no astral doméstico. E também ele tem lá os seus problemas. Enfim, tá
virando mais Hospital do que família Abreu...
Hay que tener cojones e braço forte pra segurar um bom astral todo dia. A
gente tem, e se não tem Deus dá, e se Deus não dá a gente inventa, você sabe.
Quanto a moi même, well, hoje começo uma radioterapia para o câncer na pele
e no céu da boca. E caríssimo, mas todos gentilmente garantem que é coisa
simples, não tem efeitos colaterais e tudo, tudo vai dar pé. Ponho nas mãos de
Deus. Quero muito viver um pouco mais só para escrever um pouco mais (e
conhecer a Grécia, bem, New York também, e quem sabe Pequim? e o Peru?). Meu
médico feriu-se com uma seringa cheia de sangue contaminado e está de saia
justérrima, tomando AZT preventivo — só acusa a contaminação após três meses.
Me sinto exausto do vírus, entende? Acho que AIDS caiu de moda, encheu o saco,
ficou brega, precisamos virar a página logo. Afinal, lá vem o Ebola... Mas tô firme,
embora magérrimo (54) e mais Egon Schiele do que never. Levo vida de monge, e
acho bom.
Comecei a tentar, com a chegada de setembro, salvar o jardim. O inverno
aqui é foda para as plantas (e as pessoas, então?). Ervas daninhas aos montes,
caramujos, formigas-cortadeiras, todo voodoo da natureza baixa. Hoje concluí que
não sou mais jardineiro mas, digamos, enfermeiro vegetal. Anyway, as roseiras
resistiram bravamente e estão lindas. Mas foi-se a angélica, o brinco-de-princesa, as
begônias andam agonizantes, a hortênsia empacou. Só os crisântemos amarelíssimos
resistem admiravelmente. Ontem plantei cravina, e tô com uma muda de araçá
esperando energia para cavar o buraco (é uma árvore).
Durmo mal, insônia, suores, febres. Mas não me entrego não. Outubro sai a
antologia de contos na Itália, querem que eu vá, e eu vou. Se Deus e San Gennaro
quiserem. Descubro todo o prazer exaustivo de lutar pela própria vida. Não me
olho no espelho há mais de um ano, e só há dois dias consegui voltar a ouvir
Cazuza sem abrir o berreiro. Todo dia, Cazuza já sabia, eu vejo a cara da morte e
ela está mesmo viva. Não é medonha, só que não aceito seu convite para dançar.
Pelo menos por enquanto. Quero ver o ano 2000 chegar, é pedir muito?
Sei lá, dez mil coisas...
Me dá uma notícia, carta, telefone, aerograma, telefonema a cobrar, o que
for. Mas rápido, please. O tempo não pára.
Besitos para Marijot.
Para usted, otros, muy calientes. Saudade sempre. Seu,
Caio F.

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