Mas apenas e antiamente guirlandas sobre o poço

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Yes I am that worm soul under the heil of the daemon horses
(Alien Ginsberg: Planet News)

De certa forma era o meu rosto. Apenas de certa forma: acentuo. Mas isso já não tem importância. Antes: afastamos as grades de ferro do elevador e descemos para o corredor cinzento. E não era sequer um corredor estranho. Talvez o prédio fosse um pouco velho demais para a rua. Mas ainda assim justificável. Ou compreensível. Também as miúdas farpas de cimento engastadas nas paredes — o piso de ladrilhos escuros — a luz amarelada na distância do teto. Tudo isso antes. E.
Ouvimos a campainha soar muitas vezes no interior do apartamento e sem querer visualizei o som agudo desvendando adentros que eu não conhecia e que também não me importavam até então porque nada sabia dele e também porque estava imerso numa espécie de escolha assim como um lago escuro de fundo e superfície iguais onde nunca outra vez as pedras ou as folhas caídas no outono formariam círculos concêntricos. Mas eu ouvia. Várias vezes depois da campainha soar ela disse que ele não estava e ainda antes acrescentou que era pena ele não estar porque eu gostaria de conhecê-lo. Não disse se também ele gostaria de me conhecer mas não teve importância: ainda que fosse dito nada acrescentaria ao que eu já desesperava. Também não me lembro dela nem seu rosto porque até o momento seguinte tudo seria esquecido. Todo esse antes que assim rotulo e desenrola-se em espirais na memória entrelaçada de turvos afundados em fundo e superfície daquele mesmo lago que não refletiria o céu outra vez: todo esse antes e tudo isso antes eu já sabia. Só não sabia dele. De quando voltamos pelo mesmo corredor enquanto eu passava a palma das minhas mãos pelas farpas de cimento e a luz do teto amarelava nossas sombras no cinza dos ladrilhos. Não lamentei. Sei que não lamentei porque inesperava que alguém ou alguma coisa voltasse a perfurar o endurecido que fora se sedimentando ano após ano no de dentro do meu eu por dentro. E nem sequer estava sozinho. As grades do elevador se abriam quando ele nos chamou na porta do apartamento: durante.
Repito exatamente: durante. A partir de então não consegui voltar nem à superfície nem ao fundo: manifestava-se o interstício entre sono e vigília — branco e preto — bem e mal. Ponto de transição. Ela voltou-se. Eu voltei-me. E foi então que o lobo veio à tona. Encolheu-se encolhendo as unhas feito gavinhas de planta carnívora aconchegada à própria ferocidade. Ah. Não era fácil mas tinha o áspero gosto do escuro vertiginoso. Sei que olhei a face dele. E de certa forma a sua face era a minha face. No a minha face inexpressiva que — durante — o encarava perplexa do meio do corredor enquanto ele estendia a mão para tocar-me. Não. Apenas de certa forma a sua face era a face que eu deveria ter tido antes de sabê-lo com aquela face que deveria ter sido a minha. Eu olhei a sua face. Ele olhou a minha face. E enquanto dizia coisas à mulher eu soube que pensava a respeito da minha face coisas semelhantes às que eu pensava a respeito da sua porque me olhou com olhos enormes e os enormes olhos esverdeados que eu não tive e qualquer coisa vaga como um peixe colorido e lento cortou de leve o fundo das pupilas dele. Não nos falamos. O apartamento era feito de estreitos labirintos metálicos no meio dos quais ele se movimentava com desenvoltura mostrando entradas e portas mas nunca saídas nemjanelas. Não havia nada de extraordinário:
esse era o jeito dele morar. A partir de então não lembro da mulher. Sei que falava: minha memória auditiva registrou uma espécie de fita em rotação alterada rapidamente sobrepondo palavras desimportantes. Minha memória visual nada registrou. Talvez porque ela não devesse ser vista mas ouvida. Talvez porque ouvida atormentasse menos do que vista e ainda assim insuportável. Era. Enfim: uma mulher interferindo como outra qualquer no momento do encontro entre dois homens. Os olhos esverdeados que não eram meus detalhavam minha face: os olhos parados que eram os meus detalhavam sua face. Percebi no seu pulso direito a mesma cicatriz que marcava meu pulso esquerdo. Mas percebi nos seus ombros uma desenvoltura que os meus não tinham. Seus dedos mais longos que os meus e sua boca mais livre que a minha e seus gestos debruçavam-se no ar em direção ao que desejava tocar: eu. Enveredava em direção à minha ferocidade de lobo. Sozinho em meu covil e vindo à tona e talvez pisando cuidadoso outras latitudes além da que me era mostrada. Temia. E o que queria ver: via jamais.
Quem sabe no fundo do lago alguma gruta.
Quem sabe no fundo da gruta alguma planta.
Quem sabe no fundo da planta alguma flor.
Quem sabe no fundo da flor alguma sede.
Quem sabe no fundo da sede algum lago.
Cerquei-o sedento porque não me dessedentavam os encontros. Porque a sua nitidez eu conquistaria palmo a palmo assim como nele fora natural feito um dom de fada madrinha em mim seria disputada em ranger de dentes e navalha contra veias em direção ao debruçar-me sobre o gesto — sobre o outro — sobre o tudo — mas em dor. Ele me tocava. Tudo tocava com seus dedos claros. O pescoço definido nascendo de um peito múltiplo. O cheiro das papoulas entorpecia o ar. As suas pupilas dentro das minhas. Um lago parado de águas apodrecidas e talvez mas apenas e antigamente guirlandas sobre o poço refletido num lago simplesmente limpo. Ou não. Toda a sua escuridão se dilufra ao adensar-se como se a concentração nas coisas transformasse essa coisa numa outra que fosse seu próprio oposto. Baixei os olhos: tudo que em mim se anunciava rude nele se mostrava doce. A mulher falava e falava e falava e falava ainda emitindo sons orgânicos guinchos distorcidos eletrônicos e uterinos porém eu não sabia o que viria depois. Se lhe pedir amor — porque o daria; se lhe pedir papoulas — porque as havia em quantidade pela sala; se lhe pedir um toque — porque o faria. Não lhe pediria nada. Senti que o ritmo se acelerava pressagiando o depois em breve. Não decidi porque já não decido meus rumos: minha única preocupação é manter a fronte ereta e o porte altivo exatamente como se cantasse um hino ainda que dentro de mim as águas apodreçam e se encham de lama e ventos ocasionais depositem peixes mortos pelas margens e todos os avisos se façam presentes nas asas das borboletas e nas folhas dos plátanos que devem estar perdendo as folhas lá bem ao sul e ainda que você me sacuda e diga que me ama e que precisa de mim: ainda assim não sentirei o cheiro podre das águas e meus pés não se sujarão na lama e meus olhos não verão as carcaças entreabertas em vermes nas margens ainda assim eu matarei as borboletas e cuspirei nas folhas amareladas dos plátanos e afastarei você com o gesto mais duro que conseguir e direi duramente que seu amor não me toca nem comove e que sua precisão de mim não passa de fome e que você me devoraria como eu devoraria você ah se ousás semos.
Ele me olhava triste. Eu não suportava seu olhar triste a lembrar-me das vezes todas que o tinha procurado inutilmente pelas ruas sem encontrá-lo. Agora que o encontrava já não o procurava. E um encontro sem procura era tão inútil quanto uma procura sem encontro. Detalhei meus movimentos para que não o atemorizassem. E novamente o olhei. Ah se conseguisse. Mas sempre será preciso o pão desta agonia. E disse:
— Não farei um movimento para afastar os cadáveres que juncam as águas do lago não farei um movimento para conduzir o barco em direção ao sul pois sei que existem ventos e que os ventos sopram sei que se uma folha bater de leve no meu rosto eu a esmagarei feito mosca e sei que se houver cirandas pelas margens eu matarei as crianças sei do meu ser de faca sei do meu aprendizado de torpezas sei do que há no fundo desse lago e sei que você não o tocará porque a superfície não o revela e será mais fácil para o teu gesto afastar os cadáveres que juncam as águas de teu próprio lago e movimentar o barco a favor do vento e acolher as folhas que baterem em teu rosto e ouvir as cirandas e sorrir para as crianças paradas nos beirais sei da tua forma de chegar à morte sei da minha forma de chegar à vida e sei que não te tocarei no campo de trigo atrás de tua face e sei que não tocarás na ponta de faca atrás da minha face e sei do nosso mútuo assassinato e sei de nossa insaciável fome de carne humana porém te digo que este meu ser inaparente que este meu ser é de faca e não de flor. Não foi difícil. A mulher calou-se repentinamente espantada. E tenho certeza que a matei naquele instante porque um pouco mais tarde ouvimos o sangue gotejar pelas escadas. Mas eu não queria o mal. Apenas não encontraria outra vez o mesmo pôr-do-sol na mesma tarde assim como a minha face não seria jamais a dele.

Esse era o depois: tudo se turvou. Digo: qualquer coisa que eu não fui. Ele. Qualquer coisa que eu poderia ter sido. Qualquer coisa um pouco mais dura e menos preocupada em entretecer ternuras. As minhas possibilidades esfaqueadas. Desde que tudo se turvou. Como o amava — e tanto — quis dizer-lhe que tivesse cuidado. E que se curvasse ao me ver baixando a mão até o cinto para retirar o punhal e depois e lentamente cravá-lo inúmeras vezes no seu peito múltiplo e que detivesse meu braço no momento exato em que eu começasse a fincar as agulhas no fundo verde dos olhos que eu não tive e distribuí-las pelo corpo inteiro em laborioso cuidado porque eu o amava — e muito — e suavemente distender os dois braços como quem faz um exercício e na ponta dos braços abrir as mãos que não foram magras como as dele e dedos nem tão longos como eu desejaria mas fortes o suficiente para armarem uma trama em tcomo de sua garganta e depois apertarem com destreza e encantamento até que seu rosto igual ao meu se contorça em ânsia e se congestione e descambe leve para o lado esquerdo e seus olhos contenham um espanto no intervalo entre o sempre e o nunca e sua mão direita ainda esboce no ar um gesto qualquer de quem segura alguma coisa redonda e viva feito uma papoula. Depois: abandonar os dois cadáveres e ultrapassar os labirintos metálicos para atingir o corredor de farpas engastadas e ver minha sombra única projetada nos ladrilhos escuros e comprimir o botão do elevador e abrir as grades e fechar as grades e descer e abrir as portas para ir além de um átrio iluminado pelo sol que não verei e recusar os toques e finalmente sair para a rua nova cheia de cores que não as minhas e sentir o lobo contrair-se voltando a ser inaparente e só então me deter. Deter-me para lembrar com saudade daquele rosto que matei e que de certa forma era o meu. Apenas de certa forma. Porque tanto e muito repito que eu o amava. Exatamente como quem mata.

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