Enfim, enumerou na esquina, Raul se enforcara no banheiro, cinco anos exatos amanhã, e este maldito velho com passinho de tartaruga bem na minha frente, eu tenho pressa, quero gritar que tenho muita pressa, Lucinda quebrou as duas pernas atropelada por um corcel azul três dias depois da Martinha confessar que estava grávida de três meses, e não quer casar, a putinha, desculpe, mas o senhor não quer deixar eu passar? tenho pressa, meu senhor, o telegrama, a putinha, crispou as mãos de unhas vermelhas pintadas na alça da bolsa, pivetes imundos, tinham que matar todos, venha urgente, ir como com aquele desconto de trinta por cento no salário e todos os crediários, papai muito mal pt, apoiou-se, não, não se apoiou, não havia onde se apoiar, apenas pensou no apoio de alguma coisa sólida que não estava ali, havia só os corpos, centenas deles indo e vindo pela avenida, ela roçando contra as carnes suadas, sujas, as gosmas nas lentes dos óculos, como se não bastasse a tia Luiza agora que nem criancinha, mijando nas calças, brincando de boneca, dá licença, minha senhora, tenho seis crediários para pagar ainda hoje sem falta, aqueles jornais cheios de horrores, aqueles negrinhos gritando loterias, porcarias, aquele barulho das britadeiras furando o concreto, naquele dia, a fumaça negra dos ônibus e eu de blusa branca, a idiota, introduzindo devagar a chave na porta do, apartamento de Arthur, buquê de crisântemos na outra mão, uma hora tão inesperada, e tão inesperados os crisântemos, a senhora não vai andar mesmo? o sinal já abriu faz horas, só uma cretina seria capaz de trazer duas crianças ao centro da cidade a esta hora, ele jamais poderia imaginar, o ruído leve da chave abrindo a porta, animal, por que não olha onde pisa? atravessar a sala na ponta dos pés, abrir a porta do quarto e de repente a bunda nua de Arthur subindo e descendo sobre o par de coxas escancaradas da empregadinha, meu deus, mulatinha ordinária, se pelo menos fosse uma profissional, eu podia entender, eu não podia entender, vomitou no elevador sobre os crisântemos amarelos, não, não sei onde é a Casa Oriente, pergunte para o guarda, agora ele vai morrer, será castigo? câncer no baço, nunca mais seu cheiro de cavalo limpo, nunca mais o peso e os pêlos de seu peito sobre meus seios quase murchos, a putinha, a mulatinha vadia, por isso me olhava com aquele ar superior, ainda por cima esse calor absurdo em pleno inverno, o eixo da Terra, dizem, a estufa, o ozônio, tudo um horror, em dez anos estaremos todos surdos, cegos, envenenados, as lãs do começo do dia vertendo suores entre as pernas, como é que uma gorda dessas pode sair à rua ao lado de outra gorda ainda mais larga? fazem de tudo para atravancar o movimento alheio, se pelo menos tivessem avisado a gente, você não vai me vencer, ouviu bem sua vida de merda? eu vou ganhar de você no braço na raça e quem se meter no meu caminho eu mato, sem falar no Marquinhos o tempo todo enfiando aquelas coisas nas veias, roubando coisas pra comprar a droga, e sou eu sozinha quem carrega todo esse peso nas costas, isso ninguém percebe, ninguém valoriza, não, eu não nasci para viver neste tempo, sensível demais, no colégio já diziam, certo talento pra dança, eu tinha, e a Lia Augusta agora querendo ser modelo, fortunas naquelas fotos, não tenho nada com isso mas falei assim pra lolanda, bem na cara dela: é tudo puta, o senhor por favor poderia fazer o obséquio de tirar o cotovelo da minha barriga? porque precisa ser super-humana, vocês estão me entendendo, seus porcos, boiada, manada, desviou com nojo do velho, a pústula exposta, vai pedir dinheiro na Secretaria da Fazenda, já cansei de dizer que mendigo é problema social, não pessoal, a cadela da Rosemari bebendo cada vez mais, meio litro de uísque até o meio-dia, depressão, ela diz, no meu tempo isso tinha outro nome, pouca-vergonha era como se chamava, este fio fino de arame atravessado na minha testa, de têmpora a têmpora, vibrando sem parar, é preciso sim ser biônica, atômica, supersônica, eletrônica, vocês pensam que eu sou de ferro?
Quando ia começar a rir alto parada na esquina, viu a bilheteria do cinema, a franja de Jane Fonda, imaginou a temperatura amena, o escuro macio na medida exata entre o seco e o úmido e pelo menos, decidiu olhando o relógio, ainda dá tempo, os crediários podem esperar, pelo menos duas horas santas limpas boas de uma outra vida que não a minha, a tua, a dela, a nossa, uma vida em que tudo termina bem.
Foi então que a menina segurou seu braço pedindo um troquinho pelo amor de deus pro meu irmãozinho que tá no hospital desenganado, pra minha mãezinha que tá na cama entrevada, tia. Ela disse não tenho, crispando as unhas vermelhas na alça da bolsa enquanto puxava a entrada do outro lado do vidro da bilheteria. A menina insistia só um troquinho pro meu irmãozinho e pra minha mãezinha, moça bonita, tão perfumada. Ela repetiu não tenho e de novo não tenho, mas a menina olhava o troco pedindo cinqüenta centavinhos, uma tia tão bonita, eu tô com tanta fome e o meu irmãozinho desenganado no hospital e a minha mãezinha entrevada em casa, eu que cuido. Ela gritou não tenho porra, e foi tentando andar em direção à porta do cinema, não me enche o saco, caralho, em volta os outros olhavam, e não me chama de tia, mas a menina não largava seu braço. Assim: ela segurando com força a alça da bolsa fechada enquanto tentava andar, e sem querer arrastando a menina que não parava de pedir. Ela sacudiu com força o braço como quem quer se livrar de um bicho, uma coisa suja grudada, enleada, e foi então que a menina cravou fundo as unhas no seu braço e gritou bem alto, todo mundo ouvindo apesar do barulho dos carros, dos ônibus, dos camelôs, das britadeiras, a menina gritou: sua puta sua vaca sua rica fudida lazarenta vai morrer toda podre. Tão exato, subitamente. Inesperado, perfeito. Mais contração que gesto. Mais reflexo que movimento. Como um passo de dança ensaiado, repetido, estudado. E executado agora, em plenitude. Ela ergueu a perna direita e, com o joelho, pelo estômago, jogou a menina contra a parede. A menina escorregou gritando cadela filha da puta rica nojenta vai morrer toda podre. Mas tantos carros passando e tanto barulho mas tanto tanto, justificaria depois, à noite, na mesa do jantar, bem natural, servindo a sopa ainda não decidira se de ervilhas ou aspargos, sabem, hoje me aconteceu uma coisa que, tudo vibrando tanto, tudo se movendo tanto, tudo girando tanto, esse arame atravessado na minha testa, uma coroa de espinhos. Certeira, com a ponta fina da bota acertou várias vezes as pernas da menina caída. Alonga e contrai e bate e volta e alonga e contrai e bate e volta: exatamente como numa dança, certo talento, todos diziam.
Mas não esperou pelo sangue. Afastou as pessoas em volta com os cotovelos, só o tempo de comprar um pacote de pipocas, para afundar naquele escuro exato, nem úmido nem seco, em tempo ainda de ver no espelho da sala-de-espera uma cara de mulher quase moça, cabelos empastados de suor, roxas olheiras fundas e mãos de unhas vermelhas pintadas crispadas com força na alça da bolsa.
Quase uma assassina, não pensou, meu deus, quase uma criminosa, espalhando-se sem horror na poltrona no momento em que as luzes começavam a diminuir. Apertou a bolsa no colo, puxou com as unhas, para baixo, a gola alta arranhando o pescoço, cheiro de bicho, sentiu, cheiro meu de bicho eu brotando do meio dos meus seios quase murchos, seis crediários e esse dinheiro por um filme que nem sei direito, Arthur deve estar morrendo mais um pouco agora, os cabelos finos e frágeis da quimioterapia. Ah, se enforcar feito Raul, se deixar atropelar igual Lucinda, regredir como tia Luiza, emprenhar que nem Martinha, trair como Arthur, se drogar igual Marquinhos, beber feito Rosemari, virar puta que nem Lia Augusta: biônica atômica supersônica eletrônica — catatônica o dia inteiro no canto do pátio, enrolando no dedo um fio de cabelo ensebado, os outros mijando e cagando em cima dela, a pia cheia de louça de três meses, lesmas, musgos, visgos, deixar apodrecer a vida como a vida deixou apodrecer o coração, não, não nasci para este mundo, a bunda num subindo e descendo sobre um par de coxas alheias, ainda por cima mulatas, nunca mais e eu de blusa branca e com crisântemos amarelos, puta fudida, cadela escrota, ai que vou morrer toda podre por dentro, por fora. O bico da bota ardia querendo mais, cinco anos no fundo de uma cama, e de repente o contato do joelho quente de uma perna estendendo-se da poltrona ao lado, tentou prestar atenção nas imagens, a silhueta das cabeças, meu deus, que boca tem a Jane Fonda, pensou em mudar de lugar, mas tão cansada, um oceano de paz, e antes de decidir arriscou um olho para o nariz poderoso do macho ao lado desenhado no escuro a seu lado, e suspirou mole, por que não, ninguém vai saber, cadela gorda no cio afundada cada vez mais na poltrona, a boca cheia de pipocas. Pouco antes de abrir as pemas deixando os dedos dele subirem pelas coxas, bem devagar, para não assustá-lo, ainda esfregou as palmas secas das mãos uma contra a outra, tão ásperas, o espelho da sala de espera, uma lixa, que pele meu deus tem a Jane Fonda, o lixo das mas e o roxo das olheiras tão fundas, mas tão fundas pensou acariciando o rosto enquanto um dedo dele entrava mais fundo, tão fundas que resolveu, eu mereço, danem-se os crediários, custe o que custar saindo daqui vou comprar imediatamente um bom creme de alface.
Tweet
Procurar
Seguidores
Arquivo
-
▼
2010
(333)
-
▼
setembro
(216)
-
▼
set. 01
(216)
- Sem Ana, Blue
- Vai Passar
- Para uma avenca partindo
- EXTREMOS DA PAIXÃO
- SUGESTÕES PARA ATRAVESSAR AGOSTO
- DIÁLOGO
- SARGENTO GARCIA
- ALÉM DO PONTO
- O DIA EM QUE URANO ENTROU EM ESCORPIÃO
- OS SOBREVIVENTES
- OS DRAGÕES NÃO CONHECEM O PARAÍSO
- Linda Uma História Horrível
- AQUELES DOIS
- O DIA QUE JÚPITER ENCONTROU SATURNO
- AO SIMULACRO DA IMAGERIE
- PELA NOITE
- BEM LONGE DE MARIENBAD
- PEQUENAS EPIFANIAS
- EM MEMÓRIA DE LILIAN
- INFINITAMENTE PESSOAL
- DEUS É NAJA
- CALAMIDADE PÚBLICA
- QUANDO SETEMBRO VIER
- ZERO GRAU DE LIBRA
- O MISTÉRIO DO CAVALO DE ÉDIPO
- O ROSTO ATRÁS DO ROSTO
- DIVAGAÇÕES NA BOCA DA URNA
- NO CENTRO DO FURACÃO
- AO MOMENTO PRESENTE
- A MAIS JUSTA DAS SAIAS
- UMA FÁBULA CHATINHA
- AS PRIMEIRAS AZALÉIAS
- CARLOS CHEGA AO CÉU
- 61: VERDADE INTERIOR
- PÁLPEBRAS DE NEBLINA
- POR TRÁS DA VIDRAÇA
- UMA HISTÓRIA DE FADAS
- NA TERRA DO CORAÇÃO
- CARTA ANÔNIMA
- LIÇÃO PARA PENTEAR PENSAMENTOS MATINAIS
- SE UM BRASILEIRO NUM DIA DE DEZEMBRO...
- REFLEXÕES DE UM FORA-DA-LEI DO ATROLHO
- EXISTE SEMPRE ALGUMA COISA AUSENTE
- PRIMEIRA CARTA PARA ALÉM DO MURO
- SEGUNDA CARTA PARA ALÉM DOS MUROS
- ÚLTIMA CARTA PARA ALÉM DOS MUROS
- HAMBURGO, 11 DE OUTUBRO DE 1994
- OITO CIDADES ALEMÃS E UM BRASIL
- PARA LER AO SOM DE VINÍCIUS DE MORAES
- ATÉ QUE NEM TÃO ELETRÔNICO ASSIM
- UM UIVO EM MEMÓRIA DE REINALDO ARENAS
- BREVES MEMÓRIAS DE UM JARDINEIRO CRUEL
- AS NUVENS, COMO JÁ DIZIA BAUDELAIRE...
- BREVE INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO CICLO SECO
- A CIDADE DOS ENTRETONS
- PARA LEMBRAR TIA FLORA
- A MORTE DOS GIRASSÓIS
- O CICLO SECO ATACA OUTRA VEZ
- OS MISTÉRIOS DA PÁSCOA
- NOVAS NOTÍCIAS DE UM JARDIM AO SUL
- O LIVRO DA MINHA VIDA
- O DESEJO MERGULHA NA LUZ
- S.O.S. PARA UM JARDIM NO INVERNO
- AUTÓGRAFOS, MANIAS, MEDOS E ENFERMARIAS
- PAISAGENS EM MOVIMENTO
- A G O S T O S P O R D E N T R O
- PARA UMA COMPANHEIRA INSEPARÁVEL
- O MERGULHO DO PRÍNCIPE BAILARINO
- AOS DEUSES DE TUDO QUE EXISTE
- DELÍRIOS DO PURO ÓDIO
- FRIDA KAHLO, O MARTÍRIO DA BELEZA
- ENTREVISÃO DO TREM QUE DEVE PASSAR
- NO DIA EM QUE VARGAS LLOSA FEZ 59 ANOS
- OS ANJOS DA FEBRE E A MÃO DE DEUS
- MAIS UMA CARTA PARA ALÉM DOS MUROS
- A José Márcio Penido
- A Suzana Saldanha
- A Nair Abreu
- A João Silvério Trevisan
- A Luiz Fernando Emediato
- A João Silvério Trevisan
- A Luiz Fernando Emediato
- A Vera Antoun
- A Nair Abreu
- A Vera Antoun
- A Zaél e Nair Abreu
- A Vera e Henrique Antoun
- A Hilda Hilst
- A Vera Antoun
- A Hilda Hilst
- A Vera Antoun
- A Vera e Henrique Antoun
- A Hilda Hilst
- A Myriam Campello
- A Hilda Hilst
- A Zaél e Nair Abreu
- BRUNO
- A Hilda Hilst
- A Zaél e Nair Abreu
- A Gerd Hilger
-
▼
set. 01
(216)
-
▼
setembro
(216)
0 comentários:
Enviar um comentário