Onde andará Dulce Veiga (Parte 6)

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VII
DOMINGO NADA ALÉM
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Passava da meia-noite. Era meu aniversário, lembrei. Quis contar para Dulce Veiga, a sala estava vazia. Meu corpo não doía mais, nem a cabeça. Levantei, fui espiar pela casa. No quarto dela, ao lado da cama de solteiro, havia uma carta. A letra no envelope era exatamente igual à de Márcia, na dedicatória que escrevera para mim no disco Armagedon. Abri a gaveta da mesinha-de-cabeceira. Estava cheia de outras cartas com a mesma letra, algumas mais embaixo, em envelopes debruados de vermelho e branco, vindas do exterior. Fechei a gaveta, eu não tinha vontade nenhuma de lê-las, as cartas de Márcia F. Olhei pela janela, a lua atravessara a parte do céu que ficava sobre a casa, não se podia mais vê-la. Apenas sua luz, vaga e dourada, sobre a mata. Ó lua, cantou alguém ao longe. A porta para o jardim estava aberta, eu comecei a sair mas, no meio da sala, percebi que meu corpo estava enredado em fios cinzentos, eu quase não podia andar. Toquei neles. Viscosos, nojentos, deixavam uma gosma prateada nas mãos. Cambaleei até o jardim, eu precisava arrancar aqueles fios, um a um. Eram teias de aranha, teias tão emaranhadas que levei muito tempo até conseguir tirá-las todas de mim. Minhas mãos ficaram pegajosas de seus resíduos. Como sair de um casulo, parecia.
62 Lavei as mãos, o rosto, os pés numa torneira no canto do jardim. Não havia onde enxugá-los, eu comecei a sacudir as mãos, a cabeça e as pernas até ficar completamente tonto. Então veio a náusea. Um desgosto, uma revolta amarga na boca do estômago, um rodopio. Apoiei o corpo na madeira da parede da casa, sozinho no mundo, no meio do mato, longe de tudo, fechei os olhos e vomitei. Eu quase não tinha comido nada naquele dia, no outro também. Um jato amargo nascia do fundo de alguma coisa escura, no centro de uma coisa torturada, depois rolava pela garganta transformado numa serpente de prata, num cometa, então batia na terra, espirrava longe. A terra bebia o veneno. Lavei outra vez o rosto, enchi a boca d'água, cuspi fora. Abri a camisa. E na luz da lua, na luz que vinha de dentro da casa, da beira da estrada, em outra luz também, vi que havia três fios de cabelos brancos no meu peito. Em volta tudo brilhava. 63 Sentada numa pedra lá embaixo, quase na estrada, Dulce Veiga tocava violão e cantava. Era estranho, mas ela colocara nos cabelos uma espécie de tiara, diadema, uma pequena coroa de pedrinhas brilhantes. Trocara de roupa e, por cima do vestido branco de saia comprida, usava um avental verde plissado. Sentei junto dela. A lua, dali era possível ver, estava do outro lado da casa, descendo atrás da mata. E de repente, como nunca mais conseguira ver, desde criança, embora me esforçasse, mas tinha perdido aqueles olhos, inesperadamente consegui enxergar outra vez São Jorge de lança em punho, matando o dragão na superfície da lua.
Fiquei ali sentado, ouvindo. Dulce cantava novamente aquelas canções desconhecidas. Além da lua, das estrelas e coisas assim, do espaço sobre nossas cabeças, percebi que falavam também de seres da terra, escondidos entre as árvores, na fundura das grutas, nas curvas dos caminhos. Ela disse: − Força e fé, repete comigo: dai-me força e dai-me fé, dai-me luz. Eu pedi: − Força e fé. Dai-me força, dai-me fé e dai-me luz. Dulce perguntou se eu queria cantar junto com ela. Disse que não, eu preferia ficar ouvindo. Eu não sabia cantar, expliquei. No mesmo momento, sem ouvir o que ela dizia, e talvez não dissesse nada, apenas cantasse, uma estrela cadente riscou o céu. Pensei em fazer um pedido, era meu aniversário. Mas não tinha nada para pedir. As coisas vivas, pensei, as coisas vivas não precisam pedir. 64 Pareciam diamantes, as pedras que cercavam o caminho da porta de entrada até o portão e a estrada lá embaixo. Eu me ajoelhei ao lado delas. Cristais miúdos, topázios, ametistas, rubis. Embaixo delas, a terra arfava feito um gato feliz. Curvei-me para ouvir a terra, mas levantei assustado com uma forma viva enorme na minha frente. Um homem, um animal, pensei − era uma árvore. Encostei o corpo nela. Primeiro de costas, depois de frente. Circundei-a com os braços. Ela tremia, eu também. Eu abri minhas pernas, encostei meu sexo duro na sua casca áspera, depois a barriga, o peito, os ombros em arco, para melhor amoldá-la a mim. Eu encostei também o meu rosto, o topo da minha cabeça onde os cabelos começavam a fugir. O corpo da árvore recebia meu corpo como o corpo de uma pessoa recebe o corpo de outra, quando fazem amor. Além de sua casca áspera, havia
um centro macio que eu penetrava. Tremi com mais força de encontro a ela, e fiquei todo molhado. 65 Como sempre ouvira dizer que acontece com os afogados, eu tinha medo do mar, em segundos minha vida inteira passou na frente dos meus olhos. Vou morrer, pensei, em algum próximo segundo depois destes segundos e mais alguns, não sei quantos. Encadeadas, cronológicas, como slides ou fotogramas, alguns coloridos, outros preto-e-branco, quadros vivos − assim a minha vida passava em frente dos meus olhos, dia após dia, uma por uma de todas as cenas daquela última semana. Tudo lógico, natural, uma cena gerava outra e outra e unidas me conduziam até exatamente aquele lugar onde eu estava. Eu estava ali, onde eu devia estar. Inteiro. Como uma gota de mercúrio. 66 Lá em cima, o céu não era uma tampa fechada sobre a terra, como quase sempre eu via, sepultado vivo. Ele era aberto e sem fim e cheio de mundos e indizível de qualquer outra forma que não fosse esta banal, porque não haveria palavras para ele, o Muito Maior que Tudo. Galáxias, buracos negros, supernovas, anãs brancas, pulsares, quasares, constelações, asteróides, cometas, planetas, satélites, anéis, pontos de sombra e de luz. Minha cabeça girava, acompanhando o movimento determinante das estrelas sobre meus ombros que suportavam o mundo. Tive medo de, por um segundo que fosse, continuar girando o corpo, olhando para cima, e de repente alguma coisa em mim, ou eu inteiro, saísse direto sem rumo nem volta em direção ao céu tão habitado que, qualquer ponto escuro que eu fixasse mais tempo, imediatamente se enchia também de
estrelas. Para não me perder, abri aboca e os olhos, me enchi de estrelas feito ele. 67 Entre as sobrancelhas e o início dos cabelos, no centro da minha testa, havia um ponto como a lente na extremidade de um telescópio que eu apontava para as pessoas que amava, e estavam distantes. Quase todos dormiam, menos Saul, deitado numa cama de hospital, com Márcia fumando ao lado dele, Patrícia sentada no chão, a cabeça encostada nos joelhos dela, Vita Sackville-West no colo. Eu desejei que Márcia tocasse Patrícia. Ela então apagou o cigarro, abriu os dedos e mergulhou-os nos cabelos de Patrícia, ainda grossos de maresia. Ao lado de Castilhos, Teresinha O'Connor também dormia. E Filemon, inteiramente nu, virado de bruços. E Jacyr, num pijama curto um tanto ridículo, a cara de Garfield estampada. E Jandira de Xangô, sem turbantes. E Lilian Lara, o lenço ainda nos cabelos, retesada como se estivesse desperta. E Alberto Veiga entre Arturo e Marco Antônio, numa cama de motel, redonda, e Pepito Moraes debruçado no piano do bar vazio, e todos os outros, e Lídia em sua casa de janelas azul-marinho, entre quadros inacabados, e os outros de antes deles, os de muito antes ainda. Só não vi Rafic e Silvinha, uma nuvem toldava as lentes. Voltei-as na direção de Pedro, mas continuavam embaçadas. 68 Eu perguntei: − Você não quer voltar? Ela disse: − Nunca mais, eu sou feliz aqui.
Eu perguntei: − Mas o que você quer, afinal? Ela sorriu: − Além de cantar? − Mais além. − Nada além: eu quero encontrar outra coisa. Mas você já encontrou, pensei. 69 Um galo cantou na distância. Perguntei: − Esse é o Frank Sinatra? Dulce riu, me estendeu a xícara de café recém-passado: − Esse não é meu, ainda não tem nome. Quando terminei de calçar os sapatos, ela me alcançou algo que a princípio parecia um novelo, uma bola de lã, de neve quente. Era um gatinho branco, olhos verdes da cor dos dela, focinho cor-de-rosa. − Para você, é seu aniversário. Este é o Cazuza, cuide bem do príncipe. Mas nem contei nada, pensei. − Não sei se eu vou saber − eu disse, o gatinho nas mãos. − Saberá sim, não é difícil. Me beijou dos dois lados do rosto, depois na testa. − Já sabe o caminho, volte quando precisar. − E o que eu digo a eles? Ela me levou até a porta, eu comecei a descer os degraus de madeira. − Diga o que você quiser, faça o que você quiser. Não diga nada. Se achar melhor. Minta, não será pecado. Mas se contar tudo, não se esqueça de dizer que eu sou feliz aqui. Longe de tudo, perto do meu canto.
70 Eu fui descendo pelo caminho cercado de pedras. A mochila nas costas, Cazuza entre as mãos. Ele dormia, parecia confiante em nosso futuro. Eu, nem tanto. Na luz do amanhecer, as pedras não eram cristais nem brilhantes, safiras ou esmeraldas, topázios nem ametistas. Pedrinhas comuns, de beira de rio, arredondadas pelas águas. Guardei uma, verde, no bolso. Do outro lado do rio, o sol começava a nascer. Dava apenas para ver um semicírculo vermelho acima do horizonte, subindo aos poucos para iniciar seu caminho pelo céu de todas as cores. Quando cheguei ao portão, à beira da estrada que fazia uma curva, depois desaparecia no caminho de Estrela do Norte, do aeroporto, do sul do Brasil, antes de ir embora, como eu gostava sempre de fazer, ainda olhei mais uma vez para trás. Toda de branco, Dulce Veiga estava parada na porta da casa, ao lado do cachorro. Uma arara pousou na árvore perto dela. Os primeiros raios do sol faziam brilhar aquela estranha coroa − tiara, diadema − que tinha entre os cabelos louros. Pisquei, ofuscado. Ela ergueu o braço direito para o céu, a mão fechada, apenas o indicador apontado para o alto, feito seta. Depois gritou qualquer coisa que se esfiapou no ar da manhã. Parecia meu nome. Bonito, era meu nome. E eu comecei a cantar. São Paulo, 1985-1990

Ah Força do que Existe, ajudai-me, vós que chamam de o Deus.
Clarice Lispector: Água viva

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