Onde andará Dulce Veiga (Parte 5)

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VI
SÁBADO VAGA ESTRELA DO NORTE
53
O quarto estava destruído. Frangalhos das capas de revistas e jornais das paredes misturavam-se aos cacos do toca-discos, espalhados pelo chão. Os vestidos antigos, echarpes, chapéus e sapatos tinham sido arrancados do guarda-roupa, jogados sobre a cama de ferro. Embora velha, desbotada, cheia de manchas, a única coisa relativamente intacta naquela devastação era a poltrona de veludo verde. Jogado entre os trapos, com um robe de seda puída, um dragão nas costas, Saul soluçava. Sentada na beira da cama, Iracema repetia consolos inaudíveis, passando a mão pela cabeça dele − e a cabeça dele, sem a peruca loura igual aos cabelos de Dulce Veiga, era quase completamente raspada. Como a de um presidiário, um louco, um judeu em campo de concentração, um doente terminal submetido à quimioterapia. Da têmpora direita até quase a nuca, fios grisalhos espetados circundavam uma cicatriz rosa, sinuosa feito cobra. Iracema sobressaltou-se: − Ah, é o amigo da moça. Achei que fosse dona Márcia. − Dona Márcia já vem − eu disse, chegando mais perto da cama. Do meio dos panos, do corpo esquelético de Saul, das costas curvas sacudidas pelos soluços, do dragão verde e vermelho vinha um cheiro de suor, roupa suja, mijo seco, perfume vagabundo. Fartum, era uma palavra antiga, e foi a que lembrei. − Acho bom ela vir logo − Iracema disse. − Já faz tempo que liguei para a boate. Eu também não posso ficar aqui o tempo todo. Tenho a minha
vida para cuidar, moço. Armei um ar confiável, eu era bom nisso: − Pode ir, eu cuido dele. − Dona Márcia falou que não era para deixar ele sozinho com ninguém mais, a não ser eu. Ela hesitou, eu insisti. Eu tinha uma cara prestativa, crédula, talvez bondosa, quem sabe idiota. Iracema saiu, fechou a porta. A chuva batia violenta nos vidros da janela fechada. Tentei abri-la, para que aquele cheiro fosse embora, mas ela parecia nunca ter sido aberta. Ao lado da poltrona verde, uma goteira transformava aos poucos numa pasta de cor cinza os jornais rasgados, cacos e panos. Pensei em ratos, baratas. No mesmo momento, uma lagartixa cruzou a rachadura da parede. Sa-la-man-dras, soletrei, duendes do fogo, e isso era esquisito em mim. A chuva batia, a goteira pingava, Saul soluçava arranhando o ferro da cabeceira da cama com as unhas vermelhas, e eu tremia um pouco, chegando cada vez mais perto. Estendi a mão, toquei seu ombro. Gravetos finos, soltos dentro de um feixe, os ossos deslizaram embaixo dos meus dedos. Ele voltou-se. No rosto deformado pela loucura e pelo sofrimento, apenas os olhos continuavam iguais, castanhos muito claros. Outra vez, depois de tanto tempo, tive certeza de que ficariam verdes quando o sol batesse neles de frente. Como naquele dia, chamei: − Saul. Ele gritou. Não era um grito, mas um grunhido, um ronco sem forma, como se a dor não encontrasse palavras. Lembrei então da tática de Iracema. − Dulce, Dulce Veiga. Ele sorriu. Os dentes escuros, manchados de cigarro, roídos de cáries. − Onde está Dulce Veiga? Ele tornou a gritar, a gemer sem palavras, mas não parecia ter medo de mim. Passei a mão por sua cabeça, os fios muito curtos espetavam as
palmas esfoladas das minhas mãos. Ele parou de arranhar o ferro da cama, torceu uma ponta do robe. Lembrava um gato sarnento, escorraçado, igual a um que eu vira certa vez, depois de atropelado, arrastando as vísceras pela sarjeta sem poder morrer. Eu não sabia que linguagem usar com ele, eu não conhecia aquilo, nunca estivera daquele lado das coisas. E voltei a falar em voz mansa, baixa, tola: − Dulce, Dulce Veiga, lembra dela? Ela gostava tanto de você, você também gostava dela. Eu também gosto de você, e também gostava dela. Onde ela foi parar? Como num eco, Saul repetiu: − Onde, onde ela foi parar? Eu continuei: − Ela morreu? Ele disse: − Não, ela não morreu. Eu perguntei: − Mas onde, então, onde ela foi parar? Ele repetiu: − Onde, onde ela foi parar? Eu sugeri: − Muito longe daqui. Ele confirmou: − Muito, muito longe daqui. Eu pedi: − Me diga onde. Eu vou buscá-la. Ele sorriu: − Você vai buscá-la. Eu prometi: − Vou, eu vou buscá-la para você. Ele acreditou: − Para mim. Eu confirmei:
− Para você, eu prometo. Ele pediu: - Promete de novo. Eu repeti: − Prometo, eu prometo sim. Ele exigiu: − Então me beija. Ficou me olhando sereno, sarnento, embalando a si mesmo dentro do robe com o dragão verde e vermelho. Talvez me reconhecesse, pensei em pânico. Além de qualquer memória ou desejo, ele continuava a olhar para o fundo dos meus olhos. Como alguém que vai morrer no próximo minuto pediria a um desconhecido, sangrando no asfalto, ele pedia. É preciso beijar meu próprio medo, pensei, para que ele se torne meu amigo. Entreaberta, a boca dele cheirava mal, os lábios cobertos de partículas purulentas, os dentes podres. Uma cara de louco, uma cara de miséria, de maldição. Uma maldição passada de boca em boca, que eu poderia exorcizar agora, devolvendo um beijo que era ao mesmo tempo a retribuição daquele, e inteiramente outro. Sem compreender coisa alguma, eu começava a compreender alguma coisa vaga. Era preciso coragem para compreendê-la, muito mais que coragem para realizá-la, e coragem nenhuma porque, aceita, ela se fazia sozinha. Eu repeti, de outra forma, aquele vago conhecimento assim: é preciso ser capaz de amar meu nojo mais profundo para que ele me mostre o caminho onde eu serei inteiramente eu. Pensei então na GH de Clarice mastigando a barata, em Jesus Cristo beijando as feridas dos leprosos, pensei naquela espécie de beijo que não é deleite, mas reconciliação com a própria sombra. Piedade, reverso: empatia. Talvez eu também estivesse louco. Ele continuava esperando, a boca aberta. Eu passei a mão por seus ombros. Ele fechou os olhos quando aproximei mais o rosto. E eu também fechei os meus, para não ver meu espelho, quando finalmente aceitei curvar o corpo sobre a cama e beijar aquela
boca imunda. Saul se afastou sorrindo, depois, e começou a andar pelo quarto, entre as ruínas. Porque aquilo era insuportável, pensei em segurá-lo pelos ombros, em bater no seu rosto muitas vezes, sacudi-lo até que começasse a gritar novamente, até que entrasse a mulher com cara de índia e gritasse comigo, e chegasse Márcia para aplicar-lhe a droga, e qualquer coisa assim histérica, ruidosa, violenta, acontecesse logo para que eu pudesse sair dali e esquecer para sempre. Mas continuei imóvel. Ele aproximou-se da poltrona verde. A chuva tinha ficado fraca, quase não se ouvia mais. Ele ficou em pé ao lado da poltrona, eu levantei. Parado ao lado dele, a mão em seus cabelos de louco, de mendigo, de pária, acariciei a cicatriz de cobra e repeti, muito baixo: − Onde andará Dulce Veiga? Ele tocou o assento da poltrona: − Aqui. Podia ser loucura. Delírio, fantasia. Ou uma premonição tão extraordinária que mal percebi quando me ajoelhei em frente à poltrona. Levantei lentamente a almofada do assento. Havia um rombo embaixo dela. Enfiei a mão lá dentro. Os braços cruzados, os pés descalços, Saul balançava-se ritmado para a frente e para trás, cantarolando uma oração sem nexo. − Saul é o sal salgado, a noite prisioneira − ele dizia. − Dulce o doce dulcíssimo, a luz do dia claro, liberto, amém. Abri os dedos dentro da poltrona, eles não tocaram em nada. No máximo alguma aranha, pensei, ratinhos rosados, recém-nascidos, com suas caudas de vermes. Não senti medo. Ajoelhado como eu estava, minha mão não chegava a tocar o fundo. Ergui mais o corpo, afundei o braço. E lá embaixo, então, lá no fundo, meus dedos finalmente tocaram alguma coisa. Fechei-os em torno dela, puxei-a para fora. Era um caderno. Rasgado, manchado de umidade, um daqueles velhos
cadernos escolares com um grupo de escoteiros caminhando no meio da selva, na capa, uma bandeira do Brasil desfraldada: Avante! Alguns papéis caíram de dentro. − Ao norte − Saul disse. − Bem no centro da estrela. Apanhei os papéis, pareciam cartas, guardei-os dentro do caderno, depois recoloquei com cuidado a almofada no assento da poltrona, cobrindo o buraco. Ninguém suspeitaria, não havia vestígio algum. Eu estava abrindo o caderno quando ouvi a sirene de uma ambulância distante aproximando-se cada vez mais. − Os fios − Saul gemeu. − As faíscas. De repente, como um vampiro de filme de terror barato, ele gritou outra vez, jogou-se sobre mim, tentando enfiar as unhas vermelhas nos meus olhos. Mas já nos perdoamos, pensei sem medo. E desviei o corpo, ele bateu de encontro à penteadeira. O espelho quebrado rolou em cacos pelo chão, sete anos de azar, pensei ainda, mas não para mim, não tinha sido eu. Aquela foto de Dulce Veiga ficou solta no ar, presa apenas por uma das pontas num caco de vidro. No meio do horror, ela continuava a sorrir apenas com a boca, o resto do rosto encoberto por um véu negro. Saul jogava potes de cremes, vidros de perfume, maçãs e discos antigos para todos os lados. − Os fios, os fios não − ele gritava. − As faíscas, não! Alguma coisa em mim disse que não havia mais tempo. Abri a porta, saí para o corredor. Iracema espiava, a criança ranhenta em seus braços. Passei por ela sem responder às perguntas que fazia, o caderno nas mãos, atravessei velozmente a sala com o sofá de plástico rasgado, o quadro de Iemanjá − Odô iá! saudou em mim uma voz que eu não conhecia − pisando sobre as águas lamacentas, o caminho que levava até a rua. Fiquei escondido embaixo da marquise da loja ao lado. Apertei o caderno contra o peito. E vi primeiro a ambulância dobrar a esquina para estacionar quase em frente onde eu estava. Dois enfermeiros desceram, com uma camisa-de-força.
Alguns vizinhos espiaram nas janelas dos edifícios próximos. Poucos, deviam estar acostumados. Atrás da ambulância, um táxi parou e Márcia desceu. Mesmo daquela distância, eu podia ver o brilho de seus olhos, o cabelo descolorido esverdeado pela luz da rua. Ela conversou por um momento com os enfermeiros, depois entraram juntos pelo portão de ferro. O táxi partiu. O motorista da ambulância desligou a sirene, os faróis, o motor. Os vizinhos fecharam as janelas. As vibrações coloridas de uma televisão ficaram pulsando nas frestas de um sétimo andar. Vindos do fundo da casa, os gritos de Saul cessaram aos poucos. Quando a rua ficou inteiramente silenciosa, saí caminhando pela chuva fria. Tinha ficado muito fina, quase nem se notava. Para ter certeza de que caía, seria preciso olhar para cima, lá onde a luz amarelada dos postes a tornava mais nítida, desenhada oblíqua contra o céu violeta de sujeira. Protegi o caderno sob a camisa. Para que a água não confundisse e dissolvesse ainda mais as palavras guardadas dentro dele, fazendo-as escorregar pela minha roupa branca encharcada de suor e de chuva, até os pés, depois as fundisse na lama das calçadas, na corrente suja fluindo pelas sarjetas, e as levasse diluídas em água barrenta, ilegíveis para sempre, para os bueiros escancarados, para os esgotos imundos, cheios de ratos e merda, para depois quem sabe conduzi-las aos rios poluídos e finalmente ao mar repleto de lixo onde terminam todas as palavras um dia escritas e depois perdidas, inúteis, jogadas fora. Eu queria cuidar das palavras. Embora não soubesse a quem pertenciam. Como se fossem minhas, como se fossem lindas, eu queria tanto. 54 Era o diário de Dulce Veiga, escrito no ano em que ela desaparecera. Faltavam algumas páginas, outras estavam incompletas. Em outras mais, era impossível compreender a letra dela ou o significado dos delírios
transformados em palavras. Em outras ainda, o tempo e o mofo tinham roído o sentido. Encontrei também duas cartas e o mapa do Brasil, com uma estrela de seis pontas desenhada sobre ele. No centro exato das seis pontas, assinaladas por um círculo verde, havia uma cidade chamada Estrela do Norte. As cartas, assinadas por um tal Deodato, também vinham de lá. 55 "R. não aceita que o tenha abandonado. Disse que não tenho ninguém mais, ele não acredita. Me esbofeteou, disse que tenho outros homens." "Alberto e Lilian dizem que é perigoso que eu me envolva com Saul, que ele está metido em coisa que não compreendo. Ah, velhos amores. Não quero ouvi-los. Quando Saul me beija, e pega meus seios, e me penetra, esqueço tudo. Nunca conheci um homem como ele." "R. soube que tenho andado com Saul. Disse que vai mandar fazer uma investigação sobre ele." "Não posso romper completamente com R. Saul não compreende. Há coisas, eu disse. Tenho usado sempre mangas compridas." "R. disse que acionará toda a imprensa. Que jogarão tomates e ovos podres no dia da estréia do show, que a crítica dirá que sou ridícula." "Recebi outra carta de Deodato, ele diz que a hora que eu quiser, a comunidade está aberta. Mandou um pouco, provei. E amargo de mau. Tive vontade de ser outra coisa." "R. diz que pagou pessoas para me apedrejarem na saída do teatro. Não suporto mais. Não posso falar nada, só poderia fugir." "Quero apenas cantar. Não quero nada disso que vejo em volta, eu quero encontrar outra coisa." "Vou ajudar a preparar a Nova Era. E me esquecer de mim."
56 Ao amanhecer daquele sábado, eu estava certo de que sabia onde estava Dulce Veiga. Então dormi um sono pesado, sem sonhos. Quando acordei, quase meio-dia, telefonei para Rafic e, na maior inocência, disse que precisava de outra passagem, que tinha uma pista maluca, coisa assim. Ele insistiu para que eu contasse mais, não revelei nada. Ele falou que confiava em mim, mandou que eu procurasse uma certa Júlia, no Aeroporto de Guarulhos. Liguei para lá, estava com sorte: cheio de escalas, havia um vôo naquela tarde que me deixaria muito perto de Estrela do Norte. Eu quase não pensava, não sentia nada. Sabia apenas que precisava cumprir, uma a uma, feito provas, todas aquelas etapas. Tomei banho, vesti uma roupa limpa, joguei algumas coisas dentro da mochila e fui para o aeroporto. 57 Depois do verde da mata lá embaixo, interrompido apenas pelas clareiras de desmatamento, manchas de petróleo no mar, feridas na pele - em terra firme o calor era um murro na nuca. Minhas pálpebras, meus membros começaram a pesar toneladas. Árvores gigantescas além das vidraças e aquelas pessoas baixas, de cabelos lisos e olhos miúdos, movendo-se em câmera lenta no meio da umidade, davam a sensação estranha de que eu estava em outro país. Mas no país verdadeiro, como se o falso fosse de onde eu vinha. Senti medo. Eu era um alienígena vindo da corte neurótica e mínima do centro do país. Se quisesse, poderia voltar na mesma noite, havia outro vôo em seguida, bastava comprar algumas revistas e − absurdamente − pensei na I-D, The Face: escapar de tudo aquilo, para o século quase XXI −, seria fácil esperar o tempo passar. Mas eu queria encontrá-la.
Mais forte ainda, eu me sentia preparado para isso. Como um estrangeiro cheio de temores, tirei informações e descobri que, nos últimos vinte anos, a cidade crescera tanto que Estrela do Norte agora era apenas um bairro afastado. Periferia da periferia na periferia do Brasil, eu fui em frente. 58 Pensão Estrela, estava escrito numa placa de floreios desbotados, bem em cima do nome da rua e do número da casa, os mesmos das cartas de Deodato. O sobrado de esquina era muito velho, caiado de branco, portas e janelas verde-escuros. Na sala de janelas escancaradas para as bananeiras do quintal, um papagaio velho dava voltas tortas em frente à televisão ligada num programa de calouros. Um travesti dublava Cármen Miranda cantando South American way. Não havia ninguém assistindo. Bati palmas, três vezes, quase gritei ô de casa! como era hábito, antigamente, no Passo da Guanxuma. Hoje não sei, fui embora de lá. Arrastando as chinelas havaianas, apareceu uma mulher cor de cuia, cabelos pretos meio grisalhos repartidos ao meio, escorridos dos lados da cara larga, buço cerrado. Devia estar chegando nos cinqüenta anos. Antes que eu dissesse qualquer coisa, ela viu a mochila: − Se é quarto pra alugar, moço, tá tudo lotado. O rosto, o jeito arrastado de falar, lembravam outra pessoa. − Estou só procurando uma pessoa que morou aqui. A senhora trabalha aqui há muitos anos? Ela pareceu ofendida. Apoiou um braço na porta, o pé direito na altura do joelho. Num vôo rasante, o papagaio pousou em seu ombro. − Eu nasci aqui. Sou a dona da pensão. Mas quem é mesmo que o senhor está procurando? − Deodato − eu disse. Ela coçou a cabeça do papagaio, o mesmo jeito de índia. Eu estava
exausto. Devia ser o calor, o fuso horário. O papagaio cobriu os olhos com a película branquicenta das pálpebras. − Seu Deodato morreu faz uns dez anos, moço. Que Deus o tenha em sua luz eterna, santa pessoa. − Amém Jesus − eu disse, e comecei a ficar aflito. − Mas a mulher dele, algum filho, parente. − Seu Deodato não tinha ninguém, fora o pessoal do culto. Era um homem muito só, muito decente. − Mas de repente, quem sabe, a senhora conheceu também uma amiga dele. Uma moça que veio de São Paulo, uma moça loura. − Eu cruzei as mãos com força. − Dulce Veiga, a senhora já ouviu falar? A mulher franziu as sobrancelhas, jogou o papagaio longe. Ele gritou um palavrão fanhoso, três penas despencaram no ar. A mulher levou a mão à porta para fechá-la. − Nunca ouvi falar, não, seu moço. E agora me dá licença que eu tenho que preparar a janta, tratar da minha vida. Naquele momento, antes que batesse a porta, naquela frase, lembrei: ela era a cara de Iracema, a mulher que cuidava de Saul. Podia ser que todas tivessem a mesma cara, mas arrisquei: − A senhora é tão parecida com uma pessoa que eu conheço. Ela me olhava cada vez mais desconfiada: − O senhor é de São Paulo? − Sou. − Tenho uma irmã que mora lá faz uns dez anos. Eu perguntei: − Por acaso ela se chama Iracema? A mulher fechou a cara, falou com raiva: − Olha, moço, tem muita Iracema neste mundo de Deus. Tem muita gente que não tem o que fazer, muito desocupado metendo o nariz onde não foi chamado. Nós aqui vivemos em paz, eu acho bom o senhor ir embora de
uma vez. Eu não sei de nada não. Cheguei a avançar o corpo para entrar. Aporta bateu quase na minha cara. Lá dentro, o papagaio gritou outro palavrão − filho da puta, vai te foder, tomar no eu, alguma coisa assim. Uns meninos descalços pararam para olhar. Eu devia parecer estranho parado naquela porta. Estranho, exausto, coberto de suor, louco de fome e de sede, sem conseguir respirar direito naquele calor infernal. Então desisti. Naquele momento exato, em frente à porta fechada do sobrado branco, desisti de tudo. Perdeu a graça, pensei, que aluguel, porra. Eu já tinha ido longe demais. Era melhor voltar para São Paulo, enterrar de vez tudo aquilo, procurar outro emprego, talvez voltar para o Passo da Guanxuma, de onde nunca deveria ter saído. A não ser que me enredasse novamente por aquele emaranhado de vagos indícios, nomes misteriosos, pistas falsas, sinais equívocos, loucura e maldição. Eu queria outra coisa: uma vida simples. Minha energia, se é que havia alguma, tinha morrido ali, naquela porta. E foi com alívio que disse em voz alta assim: − Pronto, acabou. Perguntei aos meninos onde havia um bar, uma lanchonete, Mac Donald's, churrascaria, qualquer coisa. Eles indicaram um lugar a umas duas quadras dali. Saí andando pela terra vermelha batida, poeirenta, as casas velhas cercadas por uma natureza monstruosa que, a todo instante, ameaçava invadir os terrenos para destruir tudo. Ah que venham os cipós, amaldiçoei, as parasitas, as sanguessugas das margens dos rios, as cobras venenosas, a grama alta, incontrolável, que venham todos os mosquitos e febres, todos os dengues e malárias para invadir Estrela do Norte e reduzir para sempre à lama, solidão e ruína aquele lugar dos infernos.
59 Entardecia, pássaros gritavam na mata. O homem mais triste do mundo − ele, que era eu, foi andando de cabeça baixa, arrastando a mochila pela terra. Os mosquitos começavam a chegar, invisíveis, inchaços vermelhos cocavam nos meus braços. Eu estava a ponto de sentar numa daquelas calçadas tortas, no meio dos cachorros magros das ruas, enterrar a cabeça nas mãos e chorar e chorar pelo tempo perdido, pela falta de sentido, pela minha derrota. Então ouvi uma voz de mulher. Não muito longe de onde eu estava, provavelmente daquele mesmo lugar para onde ia indo, acompanhada apenas por um piano, a mulher cantava uma velha canção de Vinícius, e por falar em saudade, onde anda você, uma coisa mais ou menos assim, eu não sabia a letra direito, uma canção de ausência, saudade e perda, isso eu sabia, e levantei a cabeça para ouvir melhor, tentando prender os farrapos de versos que se perdiam no ar, levados pelo vento morno, onde andam seus olhos que a gente nem vê, eu fui acompanhando sem cantar, eu não sabia, os trechos que ainda lembrava, era tão antiga, pendurei a mochila no ombro, comecei a andar mais depressa para encontrar aquela voz, e por falar em você, razão de viver, você bem que podia me aparecer, e eu sempre tivera certeza que, desde o início, embora tudo pudesse continuar a ser somente loucura, vontade de voar, eu nada tinha a perder perseguindo uma canção, razão de viver. A voz ficou mais clara em frente à churrascaria. Era muito cedo, não havia quase ninguém. Duas, seis pessoas nas mesas de fórmica cobertas por toalhas xadrez, o piso fresco de lajes, as pás de um ventilador girando no teto, o garçom espantando moscas. Parei na porta, esperando meus olhos se acostumarem à luz mais fraca lá de dentro. Ao fundo, entre o pianista e a cozinha, estava Dulce Veiga. Ela não fugiu, nem ergueu o braço em direção ao céu. Desta vez, sem
parar de cantar, olhou para mim como se me reconhecesse, e indicou a mesa mais próxima com um movimento de cabeça. Eu sentei, eu estava morto de cansaço, tão perto dela que não foi preciso levantar a voz: − Quero falar com você. Dulce Veiga sorriu, afastando da testa os cabelos com muitos fios brancos entre as mechas louras. Tinha mudado, percebi. Não apenas pelas rugas nos cantos dos olhos verdes, nem pelos vincos mais fundos ao lado da boca. Seus maxilares haviam perdido a dureza, o orgulho, e desaparecera do sorriso de lábios finos aquela expressão de cinismo, ironia, certa crueldade. Uma mulher de pouco mais de cinqüenta anos, cara lavada, um vestido amarelo-claro de algodão, sandálias nos pés pequenos, de unhas sem pintura. Não era mais bela, tornara-se outra coisa, mais que isso − talvez real. Entre dois versos, ela pediu: − Espere eu parar de cantar. E continuou cantando velhas e novas canções, algumas desconhecidas. Sua voz criava uma espécie de redoma, que parecia proteger os que estavam em volta. Esperei esquecido da fome, da sede, enquanto a churrascaria enchia aos poucos, até ficar quase completamente lotada. Era estranho cantar àquela hora, cedo demais, mas todos pareciam estar ali para vê-la. Toda vez que terminava alguma canção, aplaudiam, gritavam seu nome, pediam mais, embora não houvesse sequer um microfone e o piano precisasse de afinação. − Ora iê iê ô! − gritou alguém. Ela agradeceu os cumprimentos, sentou na minha frente. − Você lembra de mim? − perguntei. − Claro que lembro. Você esteve no meu apartamento em São Paulo, há muitos anos. − Eu mudei muito, como você lembra? − Eu mudei também, quem sabe por isso lembro.
Eu disse: − Vinte anos. Ela concordou, sem melancolia: − Vinte anos. Era difícil falar. Eu comecei, mas ela interrompeu, falou que seria melhor conversarmos na casa dela. Quase na rua, um daqueles meninos da frente da pensão puxou-a pela saia, cochichou qualquer coisa, apontando para mim. − Ele é meu amigo − Dulce falou. − Vai e diz à sua mãe que está tudo bem. Olhei para cima, um pouco tonto. À noite, o céu imenso demais, o equador. Vertiginoso, repeti, e sem saber por quê, outra vez, voltou aquela palavra do parque − pentimento, era essa. Alua cheia subia atrás de uma palmeira, a luz dourada salpicava uma bruma fosforescente na copa das árvores. Ruídos estranhos vinham da mata. Não pareciam mais sinistros, apenas desconhecidos. Vivos, e eu parei de odiar Estrela do Norte. Na beira da calçada, Dulce tirava as sandálias: − Sempre faço isso quando acabo de cantar. Vou para casa descalça, pisando no chão. Você não quer fazer o mesmo? Sentei ao lado dela, desamarrei os sapatos. Eram umas botinas de couro, solas de borracha, no melhor estilo Vaginas Dentatas, que pesavam e ardiam como o diabo. Amarrei os cadarços, coloquei as meias dentro, pendurei-as no ombro. Sem contar a sexta-feira, na areia do Arpoador, eu não lembraria a última vez que pisara descalço sobre a terra. Acendi um cigarro. E comecei a falar de tudo, de todos, tramando dúvidas paranóicas, revelando suspeitas aterradoras, fazendo perguntas delirantes. Ela não respondia. Mal parecia ouvir, caminhando a meu lado, sandálias nas mãos, cantando baixinho. Às vezes sorria, sem parar de cantar, como se achasse engraçado o que eu dizia. Não havia indiferença nisso, nem
cinismo ou frieza, mas qualquer outra coisa que eu não identificava porque ainda não aprendera o nome. Continuei a falar, acentuando os detalhes escabrosos, os mais dramáticos, como se fosse um contador de histórias desesperado querendo de qualquer forma conquistar a atenção da platéia. Em voz baixa, ela cantava canções desconhecidas que falavam em luas, estrelas, rios, pássaros e matas. Depois de uns vinte minutos de caminhada, deixamos as ruas principais e tomamos a pequena estrada que levava até a casa dela, no topo de uma colina baixa. Eu tinha fumado cinco cigarros, estava exausto, completamente rouco. 60 Dulce Veiga abriu a janela que dava para o jardim, um gato branco pulou no peitoril. Ela ficou a acariciá-lo enquanto olhava a noite, respirando o perfume que vinha de fora. Dama-da-noite, manacá, jasmim. Ela olhou para dentro, fez um gesto para que eu sentasse. Tudo era claro e reto. Não havia muito onde sentar, além da mesa com quatro cadeiras, algumas esteiras e almofadas no chão. Não havia também quadros nas paredes, nem bibelôs ou qualquer enfeite. Apenas um guardanapo branco no centro da mesa, algumas flores amarelas, um cesto de frutas no canto. Um por um, todos os músculos do meu corpo doíam, detalhados. Como se tivesse feito horas de ginástica, ou apanhado uma gripe. Dulce Veiga entrou pela cozinha, abriu a porta que dava para o pátio. Um cachorro entrou na sala em disparada, parou na minha frente, começou a me lamber as mãos. Era grande, manso, desajeitado. Ouvi a voz dela, rindo: − Esse é o Dick Farney, não se assuste se ele ficar meio carente. − Ela espiou na porta, alguma coisa nas mãos: − Gosto de dar a eles nomes de cantores. Você devia ter conhecido a Elizeth, era uma gatinha linda, parecia gente. Morreu de parto na última lua cheia, deixou quatro gatinhos. Eu chamei
de Elis, Raul, Nara e Cazuza. Me dá o Cazuza, tive vontade de pedir. Mas quase não conseguia falar, estendi mais o corpo na almofada. Dick Farney saiu correndo pela porta da frente. Lá fora, uivou para a lua. Dulce ajoelhou-se à minha frente, estendeu um caneco de ágata: − Beba, vai te fazer bem. Espiei um líquido amarelo, frio, denso, meio dourado. Tinha um cheiro que lembrava tangerina, amêndoas, terra molhada, e a palavra exata que me ocorreu foi: pungente. De alguma forma, doía. − O que é isso? − Um chá, só um chá. Toma, vai te fazer bem. Peguei o caneco de suas mãos, provei com uma careta. Era certamente a coisa mais amarga que já provara em toda a minha vida. − É amargo demais. − Mas vai te fazer bem. Fecha os olhos e toma. Por alguma razão maluca, ou absoluta falta de razão, eu não apenas sentia que tinha que fazer aquilo, mas confiava nela. Talvez por sua voz paciente, maternal. Pensei em Jandira de Xangô, um copo de leite morno na porta do apartamento, em minha mãe, pães sobre a toalha xadrez. Tinha aquele mesmo tom, aquele mesmo jeito. Talvez, afinal, eu devesse parar de bancar o durão e começasse a aprender a: receber cuidados. Eu bebi. Como se tivesse cola, visgo, o líquido escorregou com dificuldade pela garganta. Fechei os olhos, e senti os dedos de Dulce Veiga fazendo o sinal-da-cruz na minha testa. Não como se eu morresse, mas feito uma bênção, batismo. O gosto amargo permanecia na boca. Abri os olhos. Ela tocava meus pés. − Você está muito tenso. Estende o corpo, vou fazer uma massagem. Ela tocou a planta dos meus pés descalços, na ponta dos dedos. Tão firmes, seus dedos, que cheguei a espiar pra ver se usava algum instrumento
de madeira, de metal. Não usava nada, apenas seus dedos. Onde pressionavam, doía terrivelmente. O pior gosto do mundo, a pior dor do mundo. Seus dedos subiram por meus tornozelos, pressionaram os artelhos, pensei vagamente que não gostaria que ela visse meus pés assim, tão de perto, frágeis, feios, eu mal sabia como eram capazes de me sustentar, mas fui esquecendo disso enquanto ela subia a pressão pela barriga dolorida das pernas, tocou aquele ponto remoto atrás dos joelhos, passavam-se horas, eu estava indo embora, ela me envenenara, ninguém sabia que eu estava ali, ninguém me conhecia, eu seria jogado no rio, devia haver piranhas, tudo estava acabado, tentei rir, dinâmico repórter desaparece misteriosamente, não consegui. Para não ceder a esses pensamentos, ao mesmo tempo em que repetia para mim mesmo que se tratava apenas de um chá, uma massagem, tentei falar novamente, eu precisava saber por que, afinal, ela desaparecera, e muitas outras coisas, talvez feias, sujas, loucas, eu precisava saber, e não sei se perguntei realmente ou apenas pensei em perguntar, para interromper aqueles outros pensamentos que não iam embora, como se eu fosse ser assassinado no próximo segundo, e eu estava sendo, mas de um outro jeito, apenas de certa forma, docemente, pensei, docemente Dulce. Antes de afundar numa espécie de sono, porque de alguma maneira eu continuava desperto, mais desperto que nunca, ouvi sua voz cada vez mais baixa, e quando seus dedos começaram a subir por minha coluna dolorida, apertando uma por uma das vértebras, eu já não sentia as pernas, sem ter certeza se seria realmente a voz dela, aquela voz meio rouca, densa como o veludo verde daquela poltrona que agora parecia remota, perdida num quarto imundo de uma cidade no sul, a voz talvez de minha mãe, ou a mistura de ruídos que chegavam da estrada lá embaixo da colina, da mata além da casa, do rio ao longe, da noite sobre todas as coisas, ou talvez minha mesmo, minha própria voz vindo de dentro e do fundo do meu cérebro exausto, serenamente e segura, embora parecesse tolo,
quase infantil o que dizia, essa voz que eu não sabia mais de quem era, repetiu assim: − São tudo histórias, menino. A história que está sendo contada, cada um a transforma em outra, na história que quiser. Escolha, entre todas elas, aquela que seu coração mais gostar, e persiga-a até o fim do mundo. Mesmo que ninguém compreenda, como se fosse um combate. Um bom combate, o melhor de todos, o único que vale a pena. O resto é engano, meu filho, é perdição.

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