Onde andará Dulce Veiga (Parte 4)

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III
QUARTA-FEIRA A FERA MUÇULMANA
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Estou parado no centro da igreja em ruínas. Oblíqua, a luz penetra os vitrais quebrados, cai em fatias coloridas sobre os bancos em pedaços. Desde a janela até o piso, acompanho com os olhos uma réstia iluminada, metade verde filtrado por um caco de vitral, metade cor do sol. E exatamente no ponto onde incide essa faixa de luz, sobre o piso de mosaicos frios, rasteja uma cobra − metade verde, metade cor de sol. Penso em voltar atrás mas, sem me mover, continuo a olhar o piso adiante, em volta de mim. Todo ele está coberto de cobras. Como um tapete movediço, elas trançam-se em meus pés, enroscam-se nos bancos quebrados, escalam os altares vazios. Quando escapam das fatias de luz tingidas pelo que resta dos vitrais, na sombra, posso ver que suas escamas são pardo-claro, quase castanhas. Alguma coisa em mim não tem medo, embora continue a sentir nojo desses corpos que pressinto tão gelados quanto os mosaicos sob meus pés. Procuro as imagens dos santos, mas eles não estão nos altares vazios, cheios apenas de cobras entre tocos de velas derretidas. Feito pessoas, da minha altura, mas imóveis como estátuas, os santos espalham-se pelo interior da igreja, entre o pó, as cobras, as fatias de luz. Deve ser Semana Santa, penso. Quaresma, pois todos estão cobertos por tecidos roxos transparentes. Gazes, rendas, tules. Vagamente, entre as transparências, decifro certos relevos conhecidos, algumas formas, e vou adivinhando aos poucos, guiado pelas memórias da infância. Aquele, com o menino no colo, deve ser Santo Antônio; o outro, de mãos amarradas, três flechas cravadas no tronco nu, São
Sebastião; aquela de crucifixo nos braços, entre rosas brancas, Santa Teresa de Lisieux; mais ao fundo adivinho as grandes asas de São Miguel Arcanjo, empunhando a espada onde se enrola uma cobra viva. Caminho devagar entre as estátuas, até esta imagem de costas, que não consigo reconhecer. Flores, harpa ou cordeiro − não há nada entre seus braços caídos. Num lugar que não vejo, um cravo começa a tocar Haendel. Toco na cabeça da imagem, para afastar os véus roxos do luto pelo assassinato de Jesus de Nazaré, os panos deslizam pelo corpo imóvel. Ela volta para mim o rosto descoberto de uma mulher loura. Do interior do crânio, pelas órbitas vazias dos olhos, pelos orifícios das narinas e orelhas, pela boca aberta e desdentada, escorregam cobras lentas, pardas, vivas. Acompanho o movimento das cobras por seus ombros, entre os panos, seus seios nus. Mais abaixo, posso ver os pêlos de seu sexo entreaberto e, dentro dele, duas fileiras de dentes agudos, serrilhados. Rapidamente, desço os olhos até o chão. Com o pé esquerdo descalço, ela esmaga a cabeça de uma serpente de cor diferente das outras. Não chego a descobrir essa cor, não chego a reconhecer essa mulher antes de acordar gritando. Mas sem necessidade de lembrar seu nome, sei perfeitamente quem ela é. 20 Aquele som real, furando a manhã. Grosseiro demais para um cravo, vulgar demais para Haendel. Pulei do sofá, bati o tornozelo em alguma coisa dura. Buceta!, gritei. E fiquei dando voltas e pulos num pé só pelo meio da desordem, evitando pisar em algo que já não estava ali. Sabia que sonhara, mas não conseguia lembrar nada mais que uma sensação crescente de pavor e dos acordes do cravo. A campainha tocou outra vez. Ninguém me visitava àquela hora, ninguém me visitava sem telefonar, ninguém me visitava. Gritei já vou, enfiei
uma das calças jogadas no chão, abri a porta. Era Jacyr, não Jacyra. De bermudas e tênis brancos muito limpos, camiseta vermelha com a cara de Prince, nem uma gota de maquiagem na cara miúda de mico-leão, tinha-se transformado novamente no mulatinho espichado, filho de Jandira e Moacyr-aquele-cafajeste. Ele me empurrou, entrou sem pedir licença: − Quase meio-dia, faz horas que estou chamando. Não vou ficar o dia inteiro à disposição do bofe. Tarde demais, enquanto tentava encaixá-lo no fim daquela manhã, lembrei da faxina combinada com Jodie Foster no corredor. Jodie se fora, ficara uma espécie de Grace Jones mais baixa e clara, travestida de moleque. Os braços e as pernas eram iguais, longuíssimos. Tentei organizar na memória os restos do dia anterior, e o que precisava fazer hoje, a entrevista com Márcia, preciso de uma agenda, e logo tornei a esquecer. Por trás dos pedaços das frases que escrevera no jornal, de lembranças como os cabelos eriçados de Filemon ou do copo de uísque de Pepito Moraes sobre o piano e de todas aquelas coisas, havia outras imagens. Numa das mãos, Perseu segurava pelos cabelos de cobra a cabeça decepada de Medusa, erguendo na outra uma espada onde se enrolava uma cobra. Como consegue deslizar assim pelo fio afiado sem partir-se em duas, pensei e, num corte rápido, como se o diretor mudasse o enquadramento e tudo aquilo fosse um fotograma, Perseu, Medusa e a cobra estavam num altar, sob um foco de luz apagado em resistência. Entre essas imagens e o apartamento que parecia ter sobrevivido a um terremoto, Jacyr mexia-se sem parar, recolhendo livros, roupas, latas, olhando para mim com estranheza. − Que-que foi, nunca me viu? − Você mudou − eu disse. Como se ajeitasse um xale invisível, ele sacudiu os ombros:
− Foi o arco-íris depois da chuva. Sempre acontece isso. A mãe diz que é Oxumaré, que eu trago comigo. Seis meses homem, seis meses mulher. Fico bem louca quando baixa, depois passa − de repente benzeu-se e saudou, erguendo a mão para o céu: − Aro-boboi! minha mãe. − A serpente − falei. Não sabia por quê. Ágil, bailarina, Jacyr rodopiou. Sacudiu um lençol sujo no ar: − Parece que bebe, cara. Garanto que encheu a cara ontem. Fumou, cheirou? Até pensei que estava trepando. − Olhou para o sofá vazio com desprezo e malícia. − Mas todo mundo sabe que você não é disso. Passei a mão na cabeça, como se assentasse pensamentos despenteados. E peguei um cigarro em cima da mesa. Jacyr arrancou-o das minhas mãos. − Não, senhor. Faz um mal horroroso fumar sem comer nada antes. Tinha os mesmos cuidados da mãe, só que desaforados. Começou a me empurrar para o banheiro. A voz macia, as palmas das mãos nas minhas costas nuas. Era bom ter alguém vivo dentro daquele apartamento. − Toma um banho enquanto eu faço um café. Fechei a porta do banheiro minúsculo. Por trás dela e do ridículo adesivo de um pingüim enxugando-se numa toalha amarela, que provavelmente Lídia colocara ali, continuava ouvindo Jacyr a zumbir e a crepitar pela sala, inseto de asas febris. Abri o chuveiro, mas a água fria não conseguia resgatar aqueles restos e reflexos de imagens perdidas, viradas pelo avesso. Entre os pêlos negros do peito, contei à toa dois fios inteiramente brancos. Amanhã serão três, pensei. Depois dez, cem. Mil, em direção a quê? A um daqueles senhores cinqüentões em que talvez me tornaria em breve, tufos de pêlos grisalhos escapando pelo colarinho aberto, uma corrente de ouro entre eles. Digno, só um pouco patético. Essa era a melhor maneira de ficar deprimido pelo resto do dia. Então tive vontade de cantar, que estava tudo, tudo certo, repeti esfregando a
cabeça, mas não lembrava nenhuma canção, eu não sabia cantar, navegando naquele pequeno milagre que começara a acontecer há dois dias. Um emprego: acordar, tomar banho, fazer a barba, beber café - e ter para onde ir. Jacyr tinha escancarado a janela que dava para a Augusta, em frente à funerária do outro lado da rua. Happy Days era um nome engraçado para uma funerária, ou apropriado? Sem filtros nem disfarces, na luz de quase meio-dia, o apartamento parecia ainda menor, mais sujo, atravancado. Ele, e eu também, como certas plantas, certos bichos, sobrevivíamos melhor nas sombras. Bem longe do sol das manhãs. Enrolado na toalha, sentei na ponta da mesa. Jacyr colocou na minha frente uma xícara de asa quebrada, cheia de café. Botou as mãos na cintura: − Você podia fazer um pouco de musculação. Uns peitos seriam ótimos. Por que não começa a malhar e põe uns peitos nesse corpo? Fico louca quando vejo um homem bem peitudo. Provei o café. Doce demais. − Acho peito de homem muito mais bonito que peito de mulher. Ainda mais cabeludo, bem cabeludo. Sabe aquele tipo de peito que o cabelo emenda com a barba? Daí o cara faz a barba e fica assim, meio uma gola role. Não posso nem ver que me dá vontade de cair chupando. Acendi um cigarro, Jacyr tirou das minhas mãos. Acendi outro. − Aquele negrão, sabe aquele negrão de cabelo rastafari que fica sempre ali no Quênia's Bar? Aquele que vende fumo, diz que tem vinte e cinco centímetros, já pensou? Isso não é uma jeba, é uma jibóia. Tentei prestar atenção em alguma outra coisa. Não havia nada além da desordem e da voz de Jacyr, ocupando todo o espaço dentro do cérebro, impedindo de pensar. Safada, sacana. − Até vinte agüento numa boa, até o cabo. Vinte e cinco não sei, tenho até medo. Pode rasgar a gente por dentro, sei lá. Qualquer dia experimento, você não quer que eu compre fumo dele? É só me dar a grana,
eu já provei e é do bom. Lembrei da carta de Lídia, há dois dias jogada sobre a mesa. Afastei os livros, jornais, cinzeiros cheios, o rosto de Márcia na capa do disco, peguei o envelope. Abri com lentidão deliberada, como se fosse algo tão importante que, só pelo clima, Jacyr fosse obrigado a calar-se. Mas ele não olhava para mim, fumando e dando passos de dança: − Tem cara que quer me comer em pé, no banheiro do Quênia's. Hotel não dá, sou de menor. Quando não tem outro jeito, até dou. Mas não entra direito, prefiro de quatro. Aí sim, entra tudo. Não era uma carta, era um poema de Cecília Meireles, Lídia costumava fazer isso. Em vez de cartas, aquelas cartas falando das delícias das paredes caiadas de branco, das portas e janelas azul-marinho & etc, poemas. Jacyr continuava falando em peitos, pêlos, paus e porras, as buzinas entravam pela janela aberta, num passo rápido Jacyr ligou o rádio que tocava Laurie Anderson, strange angels sing Just for me, uma coisa assim, a carta aberta, à beira do vaso de violetas quase mortas, li Este é o menino de sal, o menino de sal que pesa no meu coração, e ao mesmo tempo, inesperadamente, depois de mais de vinte e quatro horas sem pensar nisso, e só agora percebia que, durante todo esse tempo, não fizera outra coisa senão permanecer consciente do estar inconsciente dele no meu pensamento, no trânsito do espaço em branco entre esses versos e aqueles outros, que diziam olhai o fundo dos meus olhos, por este prisma de lágrimas, olhai, olhai, e avistareis, com um arrepio subindo desde a cintura até os cabelos molhados da nuca, os olhos embaçados pela luz do dia, água do banho ou de lágrimas, quem sabe, de repente um vazio que nem todas as obscenidades que Jacyr continuava dizendo poderiam preencher, tornar engraçado ou mais leve, dentro daquela saudade que não ia embora por mais que o tempo passasse e dentro dele, mesmo sem lembrar, apenas agindo, todos os dias eu acordava e tomava banho, escovava os dentes e fazia todas essas coisas rotineiras, igual a alguém que aos trancos, mecanicamente,
continua a viver mesmo depois de ter perdido uma perna ou um braço que, embora ausentes, ainda doem − sem poder evitar, inesperadamente, sem querer evitar, outra vez lembrei de Pedro. − E aquele rapaz que vinha sempre aqui? Hein, eu disse, quem. − Aquele rapaz bonito, aquele meio dourado. Aquele dos olhos claros, nunca mais apareceu. Subitamente eu falei que era muito tarde, que estava atrasado, que tinha um dia de cão pela frente, e levantei, e afastei Jacyr um tanto brusco demais. Ele esbarrou na mesa, virou um resto de café sobre as violetas quase mortas, sobre a carta de Lídia, sobre o poema de Cecília, e como se meus olhos embaçados, não sabia de quê, dessem um zoom de aproximação no papel, antes de me afastar li os versos agora manchados falando naquele menino em que tanto desejei pregar asas de Amor e de Anjo. Eu poderia ficar ali parado, olhando a mancha de café espalhar-se lenta sobre o poema, lembrando tudo que não queria lembrar e assim, parado para sempre no meio do apartamento, enquanto vidas alheias acontecem além das janelas, fora e longe de mim, sentisse apenas mágoa, saudade e esse tipo de espanto amargo em que ninguém dá jeito, eu poderia. Mas repeti que era tarde, que eu tinha um dia de cão, que não tinha tempo e me desculpe, você sabe, esta cidade, esta vida, esta manhã. Enfiei as calças, a camisa, rebusquei dinheiro, estava perdido se não conseguisse um vale no jornal, Castilhos quebraria o galho, paguei Jacyr e me fui. Sem admitir nenhuma pergunta indiscreta, nenhuma cumplicidade barata, nenhum consolo viscoso. Fechava a porta quando olhei para dentro e vi Jacyr debruçado sobre a mesa. Sorridente feito criança que acaba de ganhar um presente, sacudia no ar a capa do disco de Márcia, gritando: − Você não me contou que tinha isso, bofe. Ela é mulher, mas é uma deusa. Posso ouvir?
Em frente à porta das velhinhas, saindo para a rua, ouvi o rock and roll estremecendo as paredes do prédio na voz de Márcia Felácio e as Vaginas Dentatas: O passado é uma cilada, não há presente nem nada, o futuro está demente: estamos todos contaminados. 21 Debruçado no balcão do Quênia's Bar em frente a um copo de cerveja, o negro cantarolava baixinho o que imaginei que fosse um reggae. O cabelo duro comprido até pouco abaixo dos ombros, cuidadosamente dividido em faixas, como canteiros num terreno arado, depois caindo em tranças finas, entremeadas por contas brancas e vermelhas. Devia ser ele. Quando percebeu que eu o observava, virou de frente para a rua, o rosto erguido numa atitude de desafio. Eu baixei os olhos. Ele então abriu as pernas dentro das calças brancas muito justas. Não usava cuecas, pelo menos não se notava nenhuma muna por baixo das calças. Só podia ser ele. Jogou as tranças para trás, as contas brilharam ao sol. Pisquei, tornei a baixar os olhos. Ele projetou o sexo, acariciou-o com a mão cheia de pulseiras. Era mesmo ele. Virei depressa para o outro lado da rua, afundei dentro do orelhão. Depois de três toques, do outro lado ouvi a ficha cair e entrar aquela gravação com Nara Leão. Ia desistir sem deixar recado, mas alguém desligou a secretária e uma voz conhecida, irritada, sonolenta, resmungou um alô. − Patrícia? Estou ligando para marcar a entrevista. − Marcar o quê? − A entrevista. Com Márcia, para o Diário da Cidade, tem que ser ainda hoje. − Impossível, só se for.
O escapamento de uma moto apagou a voz dela. − Fala mais alto, não estou ouvindo. Patrícia berrou: − Às seis, com o sol na cúspide da sete. − Muito tarde, pinto aí às quatro. − Com o sol na oito, de jeito nenhum. Talvez ao meio-dia, ela sugeriu, com o sol na dez, mas o meio-dia já tinha passado. Quem sabe então às oito, com o sol na seis, mas essa era hora do ensaio delas. E várias outras dessas combinações, todas incompreensíveis para mim. O olhar do negro queimava minhas costas. Comecei a transpirar, eu tinha que me ver livre daquilo. Avisei: − A ficha vai cair. − Pode ser amanhã, então. Porque a lua em Gêmeos, você sabe. Antes que a ligação caísse, consegui berrar: − Às quatro sem falta, hoje. Me dá o endereço. Patrícia pareceu paralisada com minha firmeza. Sem reagir, deu o endereço. Memorizei a rua, o número − era uma casa. Eu era bom nessas coisas, às vezes guardava um número durante anos. Mas nem pelo nome da rua nem pelo prefixo do telefone consegui localizar o bairro. Talvez Morumbi, delírios artísticos de meninas ricas mortas de tédio. Britadeiras vibravam no prédio em construção em frente ao Quênia's Bar, ao lado da funerária. Nordestinos quase nus, carrinhos de mão, pedras, suspensos nos andaimes, formigas fervilhantes numa longa fila, do Cariri à Estação da Luz, lembravam Metrópolis. A cidade ia explodir um dia, e eu não tinha nada com isso. Ou tinha? Bati o telefone. Com a ponta de um prego, alguém riscara no esmalte vermelho: Ti xupo todo goztozo. O negro agora estava encostado na porta do bar, copo na mão, olhando a rua. De cima, como um rei. Do fundo do bar vinha uma música de percussão primitiva, tambores na selva, repetindo qualquer coisa como Bob
Marley pra sempre estará no coração da raça negra. Dava vontade de dançar, mas ninguém tinha tempo para isso. Somente ele, o negro forte das tranças, balançava sinuoso o corpo dentro das calças brancas muito justas e de uma camisa florida amarrada na cintura. Um ônibus passou, me enfiei entre os office-boys amontoados na porta de saída. Equilibrado na porta, entre o bafo quente de carne úmida que vinha de dentro e o bafo quente do asfalto seco de fora, batido de sol, olhei para trás. Uma das mãos acariciando lenta sua lança de guerreiro, dentes, contas e pele reluzindo na luz do começo da tarde, o negro erguia no ar o copo de cerveja dourada. Feito um brinde, para mim. 22 As pás dos ventiladores giravam silenciosas. Nenhum ruído de telefone ou máquina de escrever. Em preto-e-branco a redação era um fotograma projetado no espaço. Ao fundo, de costas para a janela filtrando uma luz sempre baça pelos vidros sujos, Castilhos flutuava entre nuvens de cigarros. À esquerda, vestida de cinza, voltada para a parede, inteiramente imóvel, Teresinha O'Connor contemplava mais uma página do calendário Seicho-No-Ie que devia ter acabado de virar. Procurei Filemon, não havia ninguém mais na sala além das duas estátuas. Que não eram de sal, mas de papier maché do suco de inúmeros jornais. Tambores na selva, lembrei, ligar um rádio para que a música afro fizesse aquela natureza-morta estremecer. Ou entrar desejando boa tarde! em voz alta, tão alta que fossem obrigados a mover-se, mesmo para me olhar com desagrado, sem dizer coisa alguma. Mas parado na porta − se a câmera mudasse seu enquadramento e substituísse meus olhos pelos olhos de Castilhos ou de alguém postado atrás dele, por sobre seus ombros curvos −, eu também fazia parte daquela cena. Qualquer movimento, o filme andaria.
Entrei. Tão sorrateiro que Teresinha levou um leve susto quando li em voz alta a frase no calendário: − "Seja o personagem principal em qualquer circunstância". Ela sorriu melancólica, parecia ter chorado. − Pobre de mim, sou apenas uma coadjuvante. − E acrescentou, apontando minha mesa: − A estrela hoje é você, querido. Acabaram de chegar. Em cima da minha mesa, entre pilhas de laudas e jornais, havia uma dúzia de rosas brancas e vermelhas. Dessas compradas em floricultura, misturadas a galhos de samambaias e outras florezinhas miúdas, brancas, que pareciam estrelas. Preso no laço de fita azul, um cartão. Durante toda a minha vida, eu não lembrava de ter conhecido alguém capaz de me enviar rosas. Peguei o cartão, Teresinha espiava. Não era um cartão comum, de loja. Em papel de linho sépia, no canto direito tinha as iniciais A. V. gravadas em relevo dourado. Li em voz alta, para que Teresinha não pensasse − eu não sabia o que ela poderia pensar, e fosse o que fosse, não tinha a menor importância: − "Obrigado pela emoção. Só mesmo uma sensibilidade especial como a sua poderia lembrar com tanta ternura da inesquecível Dulce Veiga. Venha me ver, talvez eu tenha mais informações". Inesquecível, ternura, sensibilidade, emoção: eu não gostava nem um pouco dessas palavras. Embaixo, antes da assinatura barroca de Alberto Veiga, havia um número de telefone. Fiquei pensando numa Parker 51, tampa de ouro, nunca mais vira uma. E levei algum tempo para lembrar daquela foto de canastrão de filme mexicano: o marido de Dulce e, pelo que eu sabia, pai de Márcia. − Parabéns, você merece − disse Teresinha. − Eu também fiquei emocionada. Lindo texto, muito espiritual. − Obrigado − falei. E só então lembrei de abrir o Diário da Cidade daquela quarta-feira.
Na primeira página do segundo caderno, os blocos de texto emolduravam a fotografia de Dulce Veiga em quatro colunas, jogando para trás os cabelos louros que vazavam as palavras. A qualidade de impressão do jornal era medonha, capaz de fazer louras escandinavas parecerem deusas africanas de insólitos cabelos lisos. Mas por algum milagre, naquele dia, naquela foto, fora preservada a aura serena em torno do rosto dela. Dulce olhava para algum ponto acima da cabeça de quem a olhasse de frente, com tanta firmeza que dava vontade de olhar também, e quase sorria. Seu rosto claro, de maçãs salientes, não tinha nenhuma contração ou ruga. Como se seu estado natural fosse constantemente esse, quase sorrindo, olhando para outro lugar que não era aqui. Onde as coisas fossem diferentes, boas de serem vividas. Mas embora tudo naquela foto desse a impressão devida e alegria, o buquê de rosas sobre ela de repente a transformava numa lápide roída pelo tempo. Teresinha sussurrou: − Onde andará Dulce Veiga? Talvez morta, pensei pela primeira vez. Castilhos chamou do fundo da redação. Sem dizer nada, estendeu meia dúzia de telegramas. Rasguei os papéis, atrapalhado com os grampos. E a morte, voltei a pensar, telegramas sempre carregavam um augúrio de morte, venha urgente pt papai passa mal pt, talvez não num cemitério, mas anônima, sem lápide nem rosas, numa beira de estrada, no canto de algum terreno baldio, sob uma pilha de lixo, em algum lugar longe de tudo, porque ninguém sentira o cheiro podre, sem ter sido jamais descoberta. Vinte anos depois, apenas ossos, restos de tecido. Intactas, além de cabelos e unhas, quem sabe as pérolas. Um fio de pérolas tão brancas quanto as vértebras nuas de seu pescoço. Afastei o pensamento. Os telegramas eram todos de pessoas conhecidas, elogiavam a crônica, queriam saber mais de Dulce Veiga.
Nenhuma pista, nenhum indício. Passei-os para Castilhos. − Muito bem − ele rosnou. E com a brasa do cigarro começou a furar um dos telegramas. − Quer dizer que a sua crônica é um sucesso. − Não pensei que alguém lembrasse dela. Castilhos fez outro furo ao lado do primeiro, ficou olhando fixo para ele. Olhei também. As bordas incendiadas crepitaram por um momento, até encontrar as bordas apagadas do outro furo. Então apagaram-se também, para formar um único orifício que lembrava o número oito deitado, assim ∞. − Escrever tem desses mistérios. De repente, sem esperar, um dia você consegue despertar alguma coisa que está viva dentro de muita gente. − Sua voz era um tanto amarga, talvez ele mesmo jamais tivesse conseguido algo desse tipo. Fez outro furo embaixo dos dois primeiros. E antes que os três furos se unissem, formando um triângulo de extremidades arredondadas, disse com ironia: − Só espero que você não esteja planejando agora deitar em cima dos louros. Ou das louras. E a nossa matéria? − Já marquei a entrevista. Entrego amanhã sem falta, dá tempo? − Tempo dá. Mas tem um outro problema. O Rafic ligou, quer falar pessoalmente com você. Aquela alegria − era alegria? − que eu começara a sentir com as rosas, os telegramas e tudo, desapareceu de repente. Rafic era o dono do jornal, de prédios, ilhas, iates. Queria agora um canal de tevê e, falavam, andava metido em política. Jamais alguém dizia seu nome, cochichavam apenas Ele, onipresença ameaçadora. Nunca aparecia no jornal, mas como uma espécie de Big Brother muçulmano, sabia de tudo que acontecia ali dentro. − O que é que ele quer? − Talvez convidar você para um cruzeiro pelas ilhas gregas. Andros, Tenos, Mikonos, Delos, Naros, Terá, Creta − Castilhos recitou. E acariciou o boi de cerâmica. Por um momento o cigarro equilibrou-se entre os dois chifres amarelos, como um terceiro chifre fumegante. Estendeu um cartão: −
O endereço do homem. Pede que você vá vê-lo hoje, sem falta às seis em ponto. Não se atrase: o chefão odeia esperar, que se há de fazer? Com o sol na sete, pensei absurdamente. Para conseguir fazer a entrevista com Márcia, teria que chegar sob um sol inconveniente. Fodam-se Patrícia e seus astros, pensei. Era bom correr. Braços cruzados, Teresinha contemplava as rosas. Parecia mais O'Connor do que nunca. Talvez pensasse em Dublin, algum amor perdido, com aquela mesma expressão de Anjelica Huston parada nas escadas ouvindo The lass of aughrim, em The dead. Ausente e sem dor, por isso mesmo ainda mais dolorida. Mas não nevava lá fora, sobre toda a Irlanda, sobre o túmulo de Dulce Veiga. Por trás das janelas da mesa de Castilhos, São Paulo chiava na fervura dos quase quarenta graus de fevereiro. Teresinha suspirava, agora prisioneira na torre Martello de onde, em dias excepcionalmente claros, e hoje talvez fosse um deles, podia-se ver Bray Head. Pensei em levar as rosas para Márcia, talvez pudessem amansá-la. Mas Vaginas Dentatas deviam odiar flores. Anão ser talvez cactos, antúrios. Fálicos, pontiagudos. Guardei no bolso o cartão de Alberto Veiga, o endereço de Rafic, tirei uma rosa branca do buquê e, com minha mais esmerada inflexão de filme inglês dublado por Herbert Richers, curvei-me e entreguei as restantes a Teresinha: − Lady O'Connor, embora não o perceba, você sempre será o personagem principal. Oh, ela levou a mão à boca. Eu já estava longe. Sem que ninguém percebesse, quase na saída, deixando aquele fotograma voltar outra vez à sua imobilidade, coloquei a rosa branca em cima da máquina de Filemon, peguei o gravador e dei o fora.
23 A casa não ficava no Morumbi, Jardins ou qualquer outro desses bairros chiques. Depois de voltas e voltas, consultas num guia em pedaços onde as ruas sempre continuavam justamente nas páginas que estavam faltando, perguntas nas esquinas e informações do tipo conta três faróis, mas só existiam dois, vire depois à esquerda, mas à esquerda não havia rua alguma, o motorista do táxi conseguiu encontrar um pequeno sobrado no alto da Freguesia do Ó. Paguei sem reclamar, dinheiro do jornal. Parecia cidade do interior. Figueira no centro da praça em frente à igreja, meninos jogando bola. Mais estranho ainda, parecia uma casa do interior. Se, claro, eu não olhasse por cima dos telhados baixos para esbarrar na massa pestilenta do rio Tietê, filete de pus sublinhando o perfil da cidade. Era um dia quase sem poluição, o cinza transparente sobre a cidade e o céu de nuvens esparsas tão brancas e redondas que, se eu ainda ousasse escrever maus poemas, seria irresistível compará-las a bandos de ovelhas. Gregas, naturalmente. Talvez armênias. Pelas terras distantes, quem sabe, lembrei de Teresinha O'Connor − sim, certamente era um daqueles raros dias em que se pode ver Bray Head do outro lado −, e me arrependi de não ter trazido as rosas. Nos dois metros de jardim entre a porta e o muro baixo, que a hera começava a cobrir, não havia antúrios, cactos ou unhas-de-gato. Sobre a grama recém-cortada, cresciam azaléias ainda sem flores, margaridas moles de calor e um jasmineiro. Alguém parecia cuidar bem delas, mas era difícil imaginar uma vagina dentata fazendo qualquer coisa assim. Talvez uma empregada, talvez morassem com os pais. Os pais de Patrícia, claro. Patrícia abriu a porta. Ela substituíra os óculos gatinho por outros mais pesados, um pedaço de esparadrapo prendendo a haste quebrada, usava um jeans cortado na altura dos joelhos e tinha um livro nas mãos. Não parecia mais tão moderna. Ao contrário, lembrava uma dessas moças com ar de
solteirona desde os doze anos. A única coisa contemporânea naquele cenário era a moto estacionada na calçada. Fiquei tentando ler o título do livro, sem olhar para ela. E quando olhei, embora não fossem sequer três da tarde, percebi que não estava zangada. − Tive que vir antes. Tenho um compromisso às seis. − Não tem importância. Eu tinha esquecido que é horário de verão. Com o sol na nove, pode até dar certo. De repente vocês viajam juntos. Afastou o corpo para que eu entrasse, tinha um vago cheiro de leite condensado. A sala também parecia uma sala do interior, modesta e limpa, um sofá de estampado meio puído, poltronas combinando, guardanapos de crochê no espaldar, nos braços. Mas onde estará afinal o rock and roll, pensei, olhando a parede com reproduções de gravuras inglesas do começo do século. Uma gata branca e cinza-claro estava escarrapachada numa das poltronas. Patrícia apresentou-a: − Esta é Vita Sackville-West. Sentou na poltrona, colocou a gata no colo e fechou o livro. Era Virginia Woolf, The voyage out. Na capa verde-claro, no interior de um quarto aberto para uma enseada cheia de navios, havia uma moça recostada num diva de estampado quase igual ao das poltronas da sala. Se estivesse de jeans, a moça da capa, ou se Patrícia também usasse um daqueles vestidos brancos, cheios de babados, seriam praticamente idênticas. Acendi um cigarro. − Quer um? − Não fumo. Apontei o livro: − Ela parece com você. − Por isso mesmo comprei esta edição − Patrícia disse. Depois, estudada, virou de perfil, tirou os óculos, puxou o cabelo para a nuca e prendeu-o num coque, baixando um pouco o rosto. − Tenho certeza absoluta que sou a reencarnação de Virginia Woolf. Você não acha que sou a cara dela?
Era verdade, ou quase. Faltava certa angústia, ainda. Tentei brincar: − Pena que desta vez Vita tenha reencarnado como gata. − Em compensação, tenho certeza que Márcia é a reencarnação de Katherine Mansfield. Desta vez resolvemos essa história. Well, agora a tarde ficará cada vez mais fria, e enquanto a bruma sobe do rio Ouse, ela vai acender a lareira e preparar um chá, talvez Earl Grey, em bules e xícaras de porcelana com delicadas guirlandas de flores campestres, para esperar Roger e Lytton. Depois, quando já estivermos na segunda ou terceira chávena, chegará o pobre Leonard, carregado de provas das novas edições da Hogarth. E pela noite adentro, sem dar muita atenção ao boletim dos bombardeios transmitido pela BBC, ficaremos lendo em voz alta, encantados, os novos poemas de Eliot. Ou falando mal de Joyce, aquele grosseirão, interrompidos apenas pela chegada do pequeno Quentin e Vanessa − mas quem seria Vanessa? Pouco provável que fosse a tecladista de cabeça raspada ou a japonesa enorme do baixo elétrico − e eu? Quem sabe E. M. Forster, de volta da índia para encontrar Alec Scudder. Comecei ame sentir tão confortável que cheguei a estender os pés para alguma invisível banqueta de veludo adamascado. − Cuidado − avisei. − Não vá encher os bolsos de pedras e entrar no Tietê. Patrícia ia responder qualquer coisa. Inteligente, bem-humorada, quem sabe um pouco pedante, mas coerente com a nova Patrícia que, além de fazer com que me sentisse muito bem, tinha belas pernas, queimadas por um sol que Virginia Woolf poucas vezes ou nunca tinha visto. Chegou a abrir a boca, acariciando a gata. Mas de repente, solo de guitarra, o rock and roll entrou em cena. Parada na escada de madeira, de calcinha e sem sutiã, completamente fora de propósito naquele suave ambiente british, um exemplar do Diário da Cidade nas mãos, Márcia gritava:
− Quem deixou esse cara entrar? Patrícia, você me paga. Quem esse idiota pensa que é, me usando como pretexto para explorar a história de uma pobre mulher desaparecida num pasquim escroto de imprensa marrom. E aquela perua O'Connor ainda conta que eu sou filha de Dulce Veiga. Já disse e repito: não sei nada sobre essa maldita história. Não vou dizer porra nenhuma sobre isso porque nem eu mesma sei. Miando alto, Vita saltou do colo de Patrícia e desapareceu no interior da casa. Márcia jogou o jornal no meio da sala: − Quero ser reconhecida pelo meu próprio talento. Me recuso a alimentar toda essa necrofilia baixo-astral em torno da minha mãe. Subiu as escadas, bateu uma porta. Patrícia jogou o livro sobre a poltrona: − É assim mesmo. Ela é Leão, uma estrela. Você é Aquário, o oposto. Sabe aquela coisa, se atraem e repelem? − Começou a subir as escadas. De repente parou, voltou-se e afirmou numa voz que soava inexplicavelmente triste: − Tudo vai dar certo. Afinal, vocês têm as luas em conjunção, em Virgem. Já devem ter tido alguma encarnação juntos. Sozinho na sala, sorri para o sorriso de Dulce Veiga, jogado no chão. "Quero encontrar outra coisa", dizia a legenda. Eu também, suspirei. A gata voltou, instalou-se em cima do jornal. Talvez não fosse a reencarnação de Vita, mas era sem dúvida muito britânica, apesar de birmanesa, com seus modos contidos, a pequena mancha escura no focinho que lhe dava um permanente ar de enfado aristocrático. Estendi a mão para acariciá-la, mas ela esquivou-se e caminhou para um biombo no canto da sala, tão lenta que parecia me convidar a segui-la. Atrás do biombo havia uma escrivaninha e uma estante com duas filas de livros. Na de cima, todos os de Virgínia Woolf, incluindo diários, cartas, mais as biografias de Leonard Woolf, Quentin Bell e John Lehmann. Muito manuseados, desordenados, riscados, certamente não estavam ali escondidos
para impressionar visitas. Que de resto, naquela distância, deviam ser raras. Embaixo, além do I Ching, apenas livros sobre Astrologia, a maioria em inglês. Ao acaso, li os nomes de alguns autores − Liz Greene, Robert Hand, Stephen Arroyo, Dane Rudhyar −, não me diziam nada. A gata roçou nas minhas pernas, depois pulou sobre a escrivaninha. E lá, entre caixas de incenso indiano, cristais, pedras e inúmeras caixinhas de vários tamanhos e formatos, estava o que imaginei que fosse meu mapa astral, pelo menos havia meu nome no alto da folha. Já tinha visto em revistas, mas não compreendia aqueles sinais dentro do círculo do Zodíaco, ligados uns aos outros por linhas retas, azuis ou vermelhas. Passei a mão pelo dorso de Vita Sackville-West. Ela ergueu no ar a cauda felpuda, depois deixou-a tombar de leve sobre o desenho do que devia ser um planeta em forma de garfo, cheio de traços vermelhos ligando-o a outros planetas. − Nunca vi um Netuno tão aflito em toda a minha vida − disse Patrícia às minhas costas. − Só estava dando uma olhada, não entendo nada. A gata pulou no colo dela. E ficaram as duas me olhando com aquele mesmo olhar um tanto vesgo de Jandira de Xangô, quando via em mim coisas que nem eu mesmo conseguia ver. − Você deve ter pés tão frágeis − ela disse. Era verdade. Eu tinha pés magros, fracos, pequenos demais, que tropeçavam e doíam o tempo todo. Pensei que Patrícia ia pedir para que eu ficasse descalço, mas ela fez um movimento de cabeça em direção ao andar superior. − A superstar está mais calma. Pode subir agora. Enquanto subia, fui compreendendo. No andar de baixo, Inglaterra, começo do século, flores desmaiadas nos estampados, chá e simpatia. No andar de cima, Nova York ou Berlim, o final envenenado deste mesmo século. A divisão era tão radical que não se podia dizer que fosse
maluca. Pelo contrário, parecia perfeitamente equilibrada. Mais ainda quando, pela janela ao lado da escada, vi a pitangueira lá fora: o Brasil ficava no quintal. Como numa galeria pop exclusivamente feminina, pelas paredes fui identificando pôsters de Janis Joplin, Patty Smith, Tina Turner, Laurie Anderson, Suzanne Vega, Sinéad O'Connor, Madonna, Annie Lennox e outras que eu não conhecia. De brasileiras, apenas Wanderléa, Marina e Rita Lee, vestida de fada. Pisquei para Rita. Se Deus quiser, lembrei, um dia eu quero ser índio. O vago perfume de incenso e chá Mu do andar inferior cedia lugar ao cheiro denso de maconha e cigarros. A porta do quarto de Márcia estava aberta. Ela continuava de calcinha, mas tinha vestido aquela medonha camiseta das Vaginas Dentatas. Pernas cruzadas, sentada na colcha amarelo-brilhante sobre o colchão colocado direto no assoalho, em frente a um cinzeiro cheio de pontas. Vacilei na entrada, exagerando na atitude de respeito. O temor do macho, uma vagina dentata devia adorar esse tipo de coisa. − Entra de uma vez, vamos fazer logo esse negócio. Sentei no chão, o gravador entre nós. − Não vou dizer nada sobre minha mãe. − Tudo bem − eu disse. Ela acendeu a ponta de um baseado. − Só vou dar essa porra de entrevista porque Patrícia me convenceu. Ela diz que é bom para o grupo. Fuck off: a mídia, esses caçadores de cabeças. Hã-hã, eu disse. Com todo aquele sol lá fora, a janela continuava fechada. Na penumbra, além da cama e roupas espalhadas, quase todas pretas, havia uma tevê ligada sem som, vídeo, tape-deck, uma guitarra em pé num canto e um único pôster. Iluminado pelas vibrações coloridas da televisão, o rosto ao mesmo tempo frágil e duro, de maxilares salientes, queixo quadrado e lábios femininos, o rapaz − para minha surpresa era um rapaz − parecia um pouco com Pedro, mas parecia mais Jim Morrison. Um Jim Morrison que não
estivesse morto, enterrado naquele cemitério em Paris, nem velho, se ainda vivesse ou, como diziam, escondido e louco em alguma cidade remota da América. Um Jim Morrison rejuvenescido que, de acordo com os tempos, tivesse também descolo-rido os cabelos, e continuasse cantando aquele interminável final de um apocalypse now eternamente adiado. Ia perguntar se era realmente ele, alguma montagem − seria possível cortar e oxigenar os cabelos de uma fotografia? Márcia estendeu o baseado. − Vamos lá? Cruzei as pernas, prendi a respiração. Com a ponta dos dedos, ela eriçou os cabelos. Me senti numa squatter house em Kreutz-berg, antes da queda do muro. E apertei o botão do gravador. 24 Márcia Francisca da Veiga Prado não era nome de estrela. Mas esses quatro nomes tinham história. Márcia, modernezas do fim dos anos 6o, heranças de JK; Francisca homenageava a avó goiana, mãe da mãe, diziam que sangue de índia com alemão, estranhos olhos verdes; Veiga vinha de Dulce, e Prado do pai Alberto. Alberto conhecera Dulce quando era apenas um estudante de teatro, e ela uma cantora conhecida. Ele então, no nome artístico, preferira o Veiga ao Prado, mais dramático. Quando a mãe desapareceu, Márcia não tinha dois anos. O pai, filho único, mandou-a primeiro para a avó paterna, no Rio de Janeiro, uma senhora portuguesa bem de vida, viúva num apartamento em Copacabana. Márcia tinha sete, oito anos, quando ela Me conte a sua vida, pedi meio sem graça. Eu nunca fora nem seria um bom repórter, desse tipo que espicaça e provoca, eu tinha medo de ferir. Quase sem me olhar, Márcia falava de cabeça baixa, acendendo cigarros,
roendo as unhas ou espiando de vez em quando a tevê ligada. Espiei também, acompanhando seus olhos, mas não cheguei a descobrir se, numa sessão da tarde qualquer, era Imitação da vida, o Erro de Siuan Slade ou O candelabro italiano. Quando perguntei ela disse que tanto fazia, esses melodramas ridículos românticos caretas de vinte anos atrás, que ela adorava. Sou louca por Troy Donahue, revelou, e achei que se fosse mesmo Imitação da vida ela devia achar a mãe Dulce a cara de Lana Turner no papel de Lora Meredith. Mas não morreu atropelada, que se excedia no vinho do Porto. O pai, já então ator e diretor razoavelmente conhecido, mandou-a para a outra avó, a tal Francisca Veiga, num lugar chamado Alto Paraíso de Goiás. De lá eram as memórias mais felizes, tipo banhos de rio, vestidinhos de algodão, tetos de sapê, pés descalços e inacreditáveis noites estreladas. Tinha fotos, se eu queria ver. Márcia cantava pelas estradas procurando o som das asas das borboletas, quando param de voar e tremem brevemente sobre as flores abertas, e o som dessas flores, enormes hibiscos vermelhos, quando o vento louco sopra em suas pétalas, e o das pedras jogadas nas corredeiras, enquanto rolam por baixo d'água batendo em outras pedras, e o do cascalho seco estalando sob o sol em pleno meio-dia, e as estrelas que caem, transformadas numa chispa ao desaparecer no horizonte de trezentos e sessenta graus, no coração do Brasil. Tudo muito poético e bucólico e folclórico, enquanto a avó Francisca, falei nada sobre Dulce, nós tínhamos combinado, só perguntei que-mais ou qualquer coisa assim, evitando falar nas rosas que o pai tinha mandado, e continuei a ouvir suas histórias, decupando na mente aquelas cenas tropicais que pareciam feitas de encomenda para uma futura cinebiografia da artista quando jovem. Ela soava falso ao contar essas coisas, mas essa falsidade, percebi aos poucos, não passava de um jeito de esconder a emoção, porque no fundo, além de todos os filtros glamourosos, alguma coisa daquela história verdejante devia mesmo ser verdadeira. Pelo menos a voz dela, às vezes, era realmente assim como buscara. Eu acendia cigarros, ela acendia cigarros, eu
pensava que ela não devia fumar tanto, se queria mesmo preservar tanto sol pela garganta. Ao mesmo tempo, lembrava sua voz radioativa, então editava mentalmente títulos como anjo-contaminado-do-apoca-lipse-pirado-de-dentro-de-todos-nós, e as falhas e que-meio curandeira, aprontava tisanas e ungüentos para capiaus. Honesta, Francisca provava cada uma de suas beberagens antes de aplicá-las. E como numa fábula irônica, um dia, misteriosamente, morreu envenenada por um de seus próprios remédios. Não havia autópsias nem paranóias por lá: só um caixão barato, coberto por terra vermelha. E a certeza angustiosa: não tinha mais ninguém no mundo além de Alberto Veiga. Pai artista, isto é, instável, capaz de todas as vilezas e grandezas num piscar de olhos. Aos quinze anos, Márcia foi mandada para Londres, para "completar sua educação". Segundo Alberto, esse era um sonho da mãe Dulce Veiga, que ninguém sabia onde andava. Foi lá que conheceu Patrícia, no colégio onde estudava e, um pouco mais tarde, ícaro. Com ele, que queria ser músico, começaram a tocar em metrôs e pubs, e ela suspirou ao falar de Noting Hill Gate, Covent Garden, I remember you in Ladbroke Grove, canais de Camden Town, bras na voz eram corretas e estavam certas assim, inteiramente erradas: ela era um rouxinol brilhante de césio goiano. Não vinha nenhum ruído lá de baixo nem de fora, só algumas crianças gritando longe, na rua de cidade do interior, e quando virei a fita e disse muito bem, vamos à segunda parte de sua vida, ela de repente estremeceu como se sentisse frio. Estendeu a mão para algum lugar e pegou a jaqueta de couro, enrolou-se nela como se fosse um cobertor. Pensei que assim, magra, pálida, os olhos verdes arregalados, aquele cabelo branco, parecia a imagem, negativa, claro, de alguma campanha antidrogas. As partidas, as mortes, os exílios, e tive um impulso louco de adotá-la, cuidar para que bebesse bastante leite, mel, germe de trigo, vitaminas, sais minerais. Mas eu não estava certo se esse tremor contemporâneo, esse ar doentio, essa fragilidade cosmopolita, de repente e apenas não passavam de puro simulacro. As mil faces da pequenas tardes
cinza, roupas pretas, cheios de anéis. Patrícia recolhia os pennies shillings minguados, ícaro tocava qualquer coisa eletrônica, Márcia cantava Guantanamera de poncho, Let it be com purpurina no rosto, Tico-tico no fubá com bocas de Cármen Miranda, e também as primeiras músicas dele, com letras dela ou Patrícia, que lia e escrevia o tempo todo num quartinho em Bloomsbury. Se eu queria ver, tinha foto na Time Out e tudo. Um dia largou os estudos e fugiu para Nova York com ícaro. Caíram de boca na heroína, alguém dedou, o pai mandou buscá-la. Estava ficando velho, sentia saudade e remorsos por não tê-la assumido, mandou buscá-la para que ficasse junto dele enquanto envelhecia e pudessem assim reunir os pedaços de cada um. À força, Márcia voltou, tinha dezoito anos, um mês numa clínica, ícaro veio pouco depois. E Patrícia quase junto. Então brigou com o pai, que ela chamava de Alberto, um careta repressor, conheceu as garotas Márcia: a frágil, a louca drogada, a órfã rebelde e maldita. Só que eu não conseguia evitar uma tristeza enorme enquanto ela continuava a lembrar de todas aquelas cenas perdidas nas ruas nevoentas de London, London, olhando de vez em quando para o pôster de Jim Morrison com cara de Sid Vicious, abrindo pastas para mostrar fotos, alfinetes nas narinas. Na tevê o filme acabou, entrou um comercial de iogurte, biscoitos, ela apertou o controle remoto e a imagem se foi. Sem a luz da tevê o quarto ficava ainda mais escuro, com qualquer coisa pesada no ar. A voz dela foi diminuindo enquanto eu tentava fazer algumas perguntas, mas ela parecia exausta. Cada vez mais encolhida sobre a colcha amarela, foi ficando quieta, e eu também, porque era tão difícil, eu sabia, voltar para ser aqui e começar finalmente a crescer ou morrer, tanto faz, dá no mesmo. Assim, aos poucos, enquanto os dois íamos parando de falar, o quarto foi ficando cada vez mais escuro, e da banda, pensaram numa coisa assim bem heavy, muito hard, mas queria romper aqui você sabe como é, e o resto eu já sabia, não? eu olhei em volta, a cara de Jim Morrison na parede, três brincos na orelha, e claro que eu compreendia,
compreendia tudo, perguntei se ela queria parar, ela disse que sim, e eu desliguei o gravador. 25 Perdidamente, pois é assim que se define a ação de quem não sabe aonde vai, nem o que faz, Márcia olhava a fotografia daquele rapaz. Que não era Jim Morrison, nem Pedro ou alguém que eu conhecesse. Acompanhei seu olhar. Pela primeira vez naquela tarde, ela desviou os olhos de onde estavam para olhar meus olhos, que acompanhavam os olhos dela, interceptados no meio do olhar. Entardecia no quarto quase escuro. Ficamos nos olhando assim, sem saber aonde ir. Os olhos dela: verdes de acrílico, pupilas dilatadas. Os meus: olheiras, cansaço, miopia progressiva. Alguém precisa cuidar de você, menina, pensei. Não sei o que ela pensou. Ao mesmo tempo, desviamos os olhos para procurar, outra vez, a foto do rapaz que parecia Jim Morrison. Ela disse: − Esse era ícaro. − Por que era, ele morreu? − Foi, um ano atrás. − Overdose? − Digamos que sim. No meio do silêncio, talvez por isso, no meio do vazio de repente instalado dentro da minha cabeça, emergiu então aquele nome que Pepito dissera, e perguntei: − Quem é Saul? Márcia estremeceu: − Quem? − Saul − repeti, e outra vez, escandindo as sílabas: − Sá-ul, quem é? Ela bateu a palma da mão na coxa nua: − Não tenho a menor idéia.
E subitamente, aos gritos de que não tinha tempo, que tudo aquilo parecia um inquérito policial, um absurdo inútil e idiota, que precisava ensaiar e já era muito tarde, que só faltava eu querer saber sua cor favorita, sua posição sexual preferida, que tinha perdido o saco, e ficou em pé no colchão, as pernas fortes, pernas de quem muito andou, abriu violentamente a janela, deixando entrar uma luz dourada dentro do quarto, depois saltou para o meio do quarto, apertou um botão do tape-deck e, ao som de Lou Reed cantando Walk on the wild side, jogou a jaqueta num canto e me empurrou para fora. Enquanto mergulhava outra vez na galeria pop do corredor, ainda pude vê-la de joelhos, curvada no chão, batendo uma carreira de pó na superfície esmaltada da guitarra. 26 Deitada na poltrona, entre o livro de Virginia Woolf e a foto de Dulce Veiga no jornal, a gata lambia as patas brancas. "Vita", chamei baixinho, "Vita Sackville-West." Ela não se moveu. Ausente, parecia contemplar pirâmides no fundo das próprias pupilas, tapetes persas, nas longas noites sem Virginia, ou os gramados de Long Barn. Não havia ninguém na sala. No livro aberto, em tinta roxa, Patrícia sublinhara esta frase: "As usual in the evening, single cries and single bells became audible rising from beneath". Single cries, repeti, era bonito single bells. No Largo da Matriz, um sino começou a tocar. De repente, apavorado, lembrei que deviam ser seis horas. Eu tinha que encontrar Rafic, o chefão que odiava esperar. Precisaria de um helicóptero capaz de cruzar a cidade até o Morumbi em menos de cinco minutos: dinâmico repórter vence mais uma prova na dura batalha pela sobrevivência. Comecei a andar em direção à porta, mas enquanto andava começou a acontecer também uma coisa completamente paranóica: tive certeza que, de algum canto, Márcia devia estar me espiando, e também aquelas outras três, a
gorda de cabeça raspada, a japonesa gigantesca, a negra de trancinhas. Todas escondidas, com suas camisetas de vaginas dentatas, rindo de mim. Espiei atrás do biombo, tudo continuava igual. A não ser por uma varinha de incenso queimando sobre a mesa, quase no fim, a cinza prestes a cair sobre o vértice de uma pirâmide de cristal. No andar de cima, Márcia aumentara ao máximo o volume do som. Lou Reed convidava: "Hey, baby, take a walk on the wild side". Como se fosse pintada, indiferente aos sinos, ao rock e à minha paranóia, Vita não se movia. Abri a porta, atravessei o jardim onde os jasmins começavam a cheirar. Enjoativos, fúnebres. A moto continuava estacionada na calçada. Alcancei a praça. Entre crianças e namorados, nenhum táxi à vista. Pensei em entrar de novo na casa, pedir para telefonar, mas as vaginas dentatas à espreita, emboscadas, iriam se deliciar com essa cena de desamparo masculino. De repente eu a vi outra vez, do outro lado da rua. Foi muito rápido. Dulce Veiga estava parada na porta da igreja, com um vestido leve, de verão. Ao me ver, ela estendeu o braço para cima, em direção ao céu, como sempre fazia, depois baixou-o e desapareceu dentro da igreja. Desviei do anjo louro erguendo o peixe de prata no meio do chafariz, mas a boca do peixe estava completamente seca, não saía nenhum jato d'água dela para encher o tanque redondo entupido de copos de plástico, pedaços de jornal, camisinhas usadas, pontas de cigarro, um querubim no meio do lixo. Eu deveria ter voltado, para telefonar ou descer a ladeira até encontrar um táxi, cruzar a cidade o mais rápido que pudesse, enfrentar Rafic, a fera muçulmana disposta a fazer quibe cru dos meus colhões. Mas irracional, irresponsável, atravessei a rua atrás dela. Uma moto freou, o gravador caiu no chão. Um cara de cabeça raspada gritou: − Quer morrer, veado? Peguei o gravador todo arrebentado, a fita escapava de dentro. Se
fosse uma máquina fotográfica, o filme estaria velado, e para sempre perdidas as comoventes confissões de Márcia F. Na praça, todos olhavam. Continuei andando, sem olhar para trás. Da janela do sobrado, Márcia Felácio e as Vaginas Dentatas deviam estar assistindo a tudo. Enquanto eu subia os degraus da igreja, o cara ainda gritou: − Ai-ai querida, vai ver que ela é filha de Maria. Não voltei, as orelhas em fogo. Covarde, gemi para mim mesmo, fracote. Entrei na igreja, parecia vazia, nenhuma outra porta aberta a não ser aquela por onde eu entrara. E Dulce Veiga não estava lá. A única pessoa dentro da igreja, ajoelhada ao lado do altar principal, era Patrícia. Olhos fechados, ela rezava aos pés da imagem de um santo negro, colocado sobre uma urna de vidro. Toquei seu ombro, ela olhou para cima: − Onde está Dulce Veiga? − Não sei − ela disse −, não sou detetive. − Eu a vi entrar na igreja. − Você está louco, estou aqui há meia hora, não entrou ninguém. − Patrícia apontou para a imagem do santo, levou o indicador à boca, pedindo silêncio, e sussurrou: − Faz um pedido. Faz que ele atende. No vidro da urna havia um papel contando a história de um certo beato Antônio de Categeró, escravo que virará monge franciscano, depois eremita, e morrera na Itália, quinhentos anos atrás. Meu Deus, pensei. Pero Vaz de Caminha acabara de mandar a tal carta. Dentro da urna, estendidos num estojo aberto, dois ossos do antebraço do beato. Era meio nojento, e eu não entendia como aqueles ossos pequenos, finos, tinham vindo parar no alto da Freguesia da Nossa Senhora do Ó, se o santo era italiano, africano ou brasileiro. Patrícia puxou a barra da minha calça. − Faz um pedido − insistiu. Eu fiz: pedi para descobrir onde andaria Dulce Veiga. Me benzi rapidamente, sem ajoelhar, eu tinha que correr para a casa do maldito Rafic.
− Estou atrasado, tenho que ir até o Morumbi. Patrícia benzeu-se. Beijou as pontas dos dedos, encostou-os na urna com aqueles ossos, depois tocou de leve na própria testa. Mesmo com seu novo ar de solteirona precoce, não combinava com aquela cena. Nem eu. O rosto dela parecia muito sereno quando levantou. − Eu levo você de moto − disse. Talvez, afinal, eu devesse começar a acreditar em milagres. Em rezas, em sonhos, em delírios. 2 7 O vento batia na cara de E. M. Forster, equilibrado na garupa da motocicleta de Virgínia Woolf. A cara dele era queimada pelo sol de Calcutá, Nova Délhi, talvez Poona. Ela parecia magnífica com seu capacete de astronauta, jaqueta e botas de couro negro. Desviava dos ônibus, costurava em ziguezague entre os carros, fazia curvas como quem desafia a gravidade no globo da morte, quase deitada no asfalto, passava embaixo dos espelhos retrovisores dos caminhões. Pessoas gritavam coisas ao vê-los passar, eles não ouviam. Os cabelos longos dela escapavam por baixo do capacete para fustigar os olhos desprotegidos de Edward Morgan Forster, agarrado na cintura de Virginia Stephen Woolf, sessenta ou setenta anos depois, de volta da índia. Para rever Alec Scudder, pensei. E enquanto cruzávamos as marginais, entre nuvens de fuligem, desta vez sem medo algum, lembrei exatamente de como conhecera Pedro. 28 Pedro era tão claro que, no escuro, quando estava nu, eu ficava olhando para ele à espera de que sua pele fosforescesse como roupa branca na luz negra. Talvez por isso, por outras coisas também, a primeira vez que o vi tive uma sensação de dourado. Digo
sensação porque, no primeiro momento, não vi seu rosto, seu corpo, a dimensão que ocupava no espaço. Vento,poeira. Tudo isso, que vinha dele e soprava sobre mim, era dourado. Eu estava quase dormindo quando ele entrou numa daquelas estações de metrô meio desertas depois das dez, onze horas da noite. Ponte Pequena, Tiradentes, Luz, nunca vou saber qual, nunca vou saber de onde veio, naquela vez e em todas as outras. No vagão vazio, apenas eu sentado num canto, a mochila entre as pernas, morto de sono depois de mais uma daquela viagens de ônibus ao Rio de Janeiro, ele podia ter sentado. Foi assim que pensei quando a porta se abriu e entrou alguém que eu ainda não sabia que era ele, e não abri os olhos, porque não valia a pena, eu não procurava ninguém, naquele tempo. Pedro não sentou, embora todos os lugares, a não ser o meu, estivessem vazios. Ficou parado à minha frente, a mochila exatamente entre seus dois pés abertos. E seus pés, em sentido oposto, quase colados nos meus, ridículos, malucos Como se dançássemos, dois homens estranhos e sozinhos, no vagão do último metrô. Nesse momento, começou a acontecer aquela sensação. Ainda sou capaz de lembrar como, pouco antes devê-lo parado à minha frente, fui abrindo devagar os olhos. Como se despertasse enquanto alguém abria a janela, tomado por aquela mesma sensação de dourado de quando amanhece ou anoitece nos dias claros de luz, e o sol, um instante antes de surgir ou sumir Joga sobre o horizonte todos os seus presságios, e se você souber olhar, como os homens do campo e os bichos parecem saber, poderia perfeitamente profetizar como será esse dia ou essa noite que começam ou terminam, até mesmo o dia e a noite seguintes, e muitos outros. A estação inteira, se tiver esse olhar, você pode. Desse mesmo jeito, feito bicho ou homem do campo, embora não fosse nenhum dos dois, quem sabe por estar suspenso à beira do sono, por outras coisa também, assim o previ, antes devê-lo. Dia após dia, no começo claro, e uma por uma de todas as estações de Pedro, antecipei. Depois, igual a essas nuvens douradas nas bordas e roxas no centro, que à medida que o sol sobe ou desce, nasce ou morre, vão transbordando lentas a escuridão do roxo em seu núcleo, enquanto o dourado se desfaz tão rápido que, se você piscar, num segundo eleja não está mais ali, e enquanto você se pergunta mas como? ou para onde foi? porque o roxo
quase negro tomou toda a superfície da nuvem e, ela mesma, além da nova cor, já ganhou também outra forma súbita e inteiramente diversa. assim ele se tornaria. Por enquanto, não, por enquanto eu tinha apenas uma sensação de dourado. Erguendo os olhos para o rosto daquele homem jovem que eu ainda não Sabia que era Pedro, entre os solavancos do trem, do lado oposto da barra amarela que afunda pelo túnel, tomado por aquelas sensações e todas essas outras que tento especificar agora, algumas sem nome, como aquele calafrio crispado e gozoso da montanha-russa, um segundo antes de despencar no abismo, esbarrei num rosto claro que oscilava de um lado para o outro, eu não Sabia se pelo balanço do trem ou se estaria um pouco bêbado. Devia ser sábado, passava da meia-noite. Ele sorriu para mim. E perguntou: −Você vai para a Liberdade? −Não, eu vou para o Paraíso. Ele sentou-se ao meu lado. E disse. −Então eu vou com você. 29 Não foi difícil encontrar a casa de Rafic. Na curva da Avenida das Magnólias, seria impossível ignorar aquele número 58 brilhando em neon rosa no começo da noite. Samambaias verdejantes despencavam em cascatas no jardim suspenso, mas insuficientes para ocultar o grafite no muro daquele bolo de cimento coberto de antenas parabólicas. Com spray vermelho alguém escrevera Turcão Bundão, bem ao lado de um enorme falo esporrando notas de cem dólares. Rico como era, não entendi por que ele não mandava pintar ou raspar aquele negócio. Mas talvez, fui pensando, talvez achasse excitante aquele falo, aqueles dólares. Desci da moto, pisei numa carta de baralho caída no chão. Antes que pudesse vê-la, Patrícia pegou-a. Era um rei de espadas. − Cuidado com esse homem − ela disse. E desapareceu na curva, atrás da ilha de bananeiras.
O portão abriu-se, olhei para cima, para a câmera do circuito interno de televisão, precisei me conter para não dar adeusinho. Pelo menos minha aparência, acho, não era suspeita, embora me sentisse um bocado sujo. Meus jeans desprendiam aquele cheiro de cachorro molhado de chuva, de roupa seca na sombra, passada a ferro ainda úmida. Esse cheiro, misturado ao suor, à fuligem das ruas, devia criar em torno de mim uma aura pestilenta. Para agravar as coisas, o perfume de dama-da-noite solto no jardim me dava vontade de vomitar. Cheguei a estender a mão para a amurada de cimento. No alto da escadaria, entre crisântemos impecáveis, polpudos, amarelos, espiava um anão de cerâmica. Parecia o Zangado. No meio da orgia de bananeiras, palmeiras nanicas, espadas-de-são-jorge e outras plantas de folhas agudas, lustrosas, que pareciam de plástico naquele excesso de esplendor, apareceu de repente um mordomo. Nada britânico, apesar do uniforme e luvas brancas. Lembrei do mordomo filipino de Reflexions on a golden eye, não era difícil imaginar o soldado se espojando nu naqueles gramados, enquanto Marlon Brando espiava. O sotaque cearense cortou a fantasia: − O senhor é o moço do jornal, é não? Falei que sim. E segui-o pelos degraus, usava sandálias havaianas. Estendeu a mão para a parede envidraçada, depois sumiu. Imensa como um navio, a sala era toda branca. Os tapetes, as paredes, sofás e poltronas, a mesa com tampo de vidro cheia de prataria baiana. As cores estavam apenas nos quadros acima dos sofás. Primitivos, tropicais, laranjas e verdes e azuis berrantes, bandeirolas de São João, ladeiras, igrejinhas no topo de colinas, selvas com tucanos e araras de bicos e penas resplandecentes, palmeiras e luas cheias solitárias pairando sobre marés encapeladas. Tudo isso em torno do que devia ser a peça principal: em moldura dourada, o retrato de uma mulher loura, empinada, com uma águia entre as mãos. Fiquei vagando no meio daquilo, com meu cheiro que empestava o
ambiente. Das caixas de som colocadas no alto saía uma música tão familiar que custei a reconhecer Ray Conniff. Sem me atrever a macular a alvura dos sofás, cheguei mais perto de um quadro que lembrava Di Cavalcanti. Eu precisava mesmo de óculos: era uma mulata extremamente parecida com aquela que Castilhos publicara a foto. − Muito bem, muito bem. Beleza, vejo que tem bom gosto − disse uma voz. Eu me virei, o gravador caiu no chão, a fita saiu para fora outra vez, levei um bom tempo até conseguir enfiá-la lá dentro, sorrir e estender a mão para Rafic. Era um cinqüentão grande, forte, de ombros largos e cabelos inteiramente grisalhos contrastando, ensaiados, com as sobrancelhas cerradas e os bigodes negros. Usava um terno de linho branco, a camisa vermelha aberta exibia três correntes de ouro entre os pêlos negros abundantes. Cheirava a Paço Rabanne pour homme, e isso fez com que voltasse a consciência fatal do meu próprio cheiro. Para o próprio bem dele, tentei ficar o mais longe possível, mas Rafic insistia em se aproximar e dar palmadas nas minhas costas. − Já sei que é um grande apreciador de arte, Castilhos me contou tudo a seu respeito. Fiquei imaginando que tipo de coisa Castilhos poderia ter contado. As unhas esmaltadas de Rafic apontaram o quadro da mulata: − Não é uma verdadeira obra-prima? Minha última aquisição, sou um colecionador exigente, você sabe. Rapaz novo, mas muito original. A moça é modelo, atriz, cantora. Puta talento, puta mulher. Até pedi a Castilhos que desse uma força no jornal. − Muito expressivo − eu disse. A náusea voltava, mais forte. Rafic me puxou pelo braço para um bar também branco, no canto da sala. As qualidades da mulata, do pintor, de Castilhos, do jornal − e as minhas, temi. Ele me empurrou para cima de um banquinho branco, deu a volta no balcão,
debruçou-se na minha cara. Ornar Sharif no papel do magnata grego, o senhor embaixador de Érico Veríssimo. Mostrou a vitrine de bebidas. − Vai querer o quê? Tudo estranja, legítimo. Tinha pensado numa singela água com gás. Mas diante daquela visão do paraíso − Cutty Sarks esplendorosos, Gordons translúcidos, Fundadores dourados − sucumbi à tentação. − Jack DanieFs, puro. − Seu sacana − ele riu, dentes de ouro ao fundo dos bigodes negros. − Não falei que tinha bom gosto? Encheu primeiro meu copo, depois o dele, JB com gelo. No minuto de silêncio em que o líquido caía dentro do cristal, fiquei tentando lembrar se aquela música seria Aquellos ojos verdes, ou seriam negros? Bebi o primeiro gole, cheirava a madeira perfumada. "Sê como o sândalo", lembrei − de onde? − "sê como o sândalo que perfuma o machado que o fere", parecia frase do calendário Seicho-No-Ie de Teresinha O'Connor. Num painel ao lado das bebidas havia várias primeiras páginas do Diário da Cidade, desde 64 ou 68, transformadas em pôsters. Numa delas, li: "Comunismo finalmente extinto do país". − Castilhos falou que o senhor queria. O anel de ouro brilhou no tampão do balcão. Tinha uma águia em relevo. − Pelamordedeus, senhor, não. Ainda estou enxuto. − Castilhos disse que você queria falar comigo. O anel chispou sob os cristais do lustre. − Be-le-za, uma verdadeira beleza o que você escreveu sobre Dulce Veiga. Minha mulher Silvinha chegou até a chorar, ela é muito sensível, pobrezinha. Que talento, que sensibilidade, que − que doce amargura −, meu caro jovem. Meus ombros se soltaram: ainda tinha um emprego.
Rafic deu a volta no balcão, sentou à minha frente e abriu as pernas. Devia ter pau grande, pensei sem querer. Mocassins de cromo alemão, mas as meias vermelhas combinando com a camisa pareciam sintéticas, com frisos do lado. Então lembrei, eu já o tinha visto. Era aquele homem de mãos dadas com Dulce Veiga numa mesa de boate, na foto do arquivo. Não sabia bem se na festa de entrega do prêmio a Leniza Mais ou com Lilian Lara, pensei em falar nisso, já que estava tão interessado talvez ele soubesse onde, afinal. Mas o Jack Daniel's, a dama-da-noite invadindo as portas abertas, o Pacco Rabanne e o meu próprio cheiro estavam retardando meus reflexos. Além disso, ele não parecia interessado em ouvir. − O dia inteiro, um sucesso. Desde manhã cedo, uma loucura. Agências de publicidade, canais de tevê, gravadoras. Todo mundo quer saber onde anda Dulce Veiga. Um editor quer publicar uma biografia dela, tem produtor já armando programa especial, não sei que lá. Gente dando depoimento, até me convidaram. Só falta uma coisa. Deu um gole no uísque, cravou os olhos em mim. Eu estava ocupado em ler outra manchete do jornal: "Militares moralizam o país". Ele aproximou o rosto, cravos na ponta do nariz adunco, aquela pele avermelhada de quem bebe bem, e há muito tempo. Como um segredo, revelou: − Ela: encontrar Dulce Veiga. Só isso que falta. − Certo − eu disse. E peguei um cigarro. Ele acendeu, o isqueiro de ouro tinha uma águia gravada na tampa, igual à do anel. Tornou a encher os copos. − Portanto, meu caro e talentosíssimo rapaz, a partir deste momento você está dispensado de cumprir horário no jornal. De agora em diante seu trabalho vai ser exclusivamente esse, beleza. Um trabalho delicioso, encontrar nossa querida Duke Veiga. − Mas ela pode estar morta num terreno baldio, numa beira de estrada − completei −, sem lápide nem flores. − Tudo era meio vertiginoso. E
cheirava pior que eu. − Estou certo que não. Verdade que ela teve uns envolvimentos estranhos por aí. Na época da bendita revolução. Guerrilheiros, subversivos, gente dessa laia. Coisa de artista, você sabe. Infelizmente, pelamordedeus. Por isso mesmo deve ter fugido. E nós vamos encontrá-la, custe o que custar. − Não sei se. − O que for preciso. Pesquisa, entrevista, viagem. Basta você telefonar, eu autorizo, carta branca. No balcão do aeroporto, na hora, qualquer coisa. Mas é que, tentei dizer. − Inclusive me resolve um problema no jornal. Que é justamente onde aproveitar alguém do seu cacife. Falta de vagas, recessão, infelizmente você sabe. Assim você fica como repórter especial, me tira até um peso da consciência por não poder aproveitar alguém do seu gabarito, entende? Eu entendia. Era bastante objetivo. − A notícia do ano, beleza. O nome do Diário da Cidade por cima outra vez. E o seu, meu caro jovem. Pode até escrever um livro, editor não falta, pagando os tubos. Em dólar: Onde andará Dulce Veiga?, já pensou. Um sucesso, como você sabe, sou muito bem relacionado. E confidencialmente, não conte a ninguém pelamordedeus, ando pensando em me candidatar. Deputado, senador, convites não faltam. Você parece esperto, pode até trabalhar comigo, beleza. Que tal uma assessoriazinha de imprensa? Eu estava ficando bêbado. Navio em alto-mar, num dia de tempestade, a sala branca girava. Imaginei Márcia sentada no chão, de calcinha e camiseta de vagina dentata, batendo uma carreira de pó no vidro daquela mesa, entre pratarias baianas. Branca como a sala, a cocaína brilhando entre cajus de prata. E Jim Morrison na parede, três argolas na orelha. This Li the end, arrotei, ele não notou. Rafic estendeu a mão:
− Topado? Era pegar ou largar. Apertei a mão dele, não tinha jeito. Eu ia começar uma lengalenga que não era detetive nem nada, e que nem a própria filha de Dulce sabia onde, quando uma mulher entrou na sala. Loira, toda vestida de verde, colares pesados de ouro, ela brilhava no meio do branco. Era a mulher do retrato, faltava a águia entre as mãos. Nervosa, estalava os saltos nas tábuas entre os tapetes. − Silvinha, meu anjo, este é o jovem autor da crônica sobre Dulce Veiga. Ela estendeu a mão fria, cheia de pulseiras. Tinha pelo menos vinte anos menos que ele, mas os olhos, a boca e os peitos começavam a despencar, na sala de espera da primeira plástica. Olhos pretos astutos, gestos lerdos de quem toma barbitúricos, eu também já a tinha visto. Claro: era "a deslumbrante Silvinha Rafic", sempre citada com fotos na coluna de Teresinha O'Connor, presente nas entrevistas das madrugadas de sábado na tevê. − Como vai − ela disse, voz arrastada. − Você escreve super-bem. Rafic passou a mão em sua cintura, puxou-a para os joelhos. Ela afundou as unhas vermelhas nos pêlos dele, entre as correntes de ouro. Por baixo da camisa vermelha, beliscou um mamilo cabeludo. Deviam trepar bem, pensei. Coito anal, oral, nada ortodoxo. Ele gemeu: − Silvinha também é poeta. Publicou dois livros, faço questão que você leia. Dá um livro a ele, meu bem, dá o Suspiros de outono, ilustrado pelo Ubirajara Trindade, publicado pelo Massao. Ela bocejou, olhou o Cartier: − Outra hora, Rá. Estamos atrasadérrimos, a Joyce está esperando no Rodeio. Suspirei aliviado, Rafic também: − Assim ele torna a nos visitar. Gosto de conviver com os jovens.
Quem sabe uma noitada daquelas bem artísticas, faz tempo que a gente não. Podia chamar o Valdomiro Jorge, conhece o Mirinho? − De vista − eu disse. Era um cineasta de sexta categoria, agora metido em política. − E a Salete de Souza, o Betinho Simpsom, a Selma Jaguaraçu, o Luisito Barroso, a Lazinha Mello e Silva, o Nenê de Vasconcelos, a Aurore Jordan − o ouro falso dos nomes reluzia no meio da sala branca. Silvinha bebericou o uísque dele, depois serviu-se de uma dose de campari. Franziu o nariz, talvez sentisse meu cheiro, depois caminhou até o sofá, parou no meio do caminho, apertou uns botões. Ray Conniff emudeceu, a voz de Simone despencou sobre a sala. Ela sentou, cruzou as pernas, começou a folhear uma Vogue estrangeira. Faltava uma cadela poodle tingida de rosa a seus pés. E os créditos de Dallca subindo sobre a imagem congelada. Rafic me empurrou para a saída. Não foi difícil, eu estava fora de combate. Do lado de fora, surgiu novamente o mordomo nordestino. A náusea voltava, eu tinha que me controlar pelo menos até a Avenida das Magnólias. Através do vidro, Silvinha deu adeusinho. − Apareça − convidou entediada. − Nossas festas são bárbaras, saem em todas as colunas. Rafic me puxou para um canto mais escuro. Longe dos olhos de Silvinha, perto de outro anão de cerâmica. Pelos óculos, esse devia ser o Mestre. − Fala franco, rapaz, você está muito duro? Apertei o gravador. − Como? − Duro, liso, quebrado, a pão e água. Pelamordedeus, eu sou um homem que veio do nada e se fez na vida. Ninguém como eu compreende essas coisas. Antes que eu talvez recusasse, mas não sei se seria capaz, ele meteu a mão no bolso, arrancou uma carteira de couro legítimo, com outra águia
lavrada, abriu-a, tirou um monte de notas. Sem contar, enfiou-as no bolso da minha camisa. − Para os primeiros passos da Operação Dulce. Fui descendo a minisselva tropical, seguindo as havaianas do mordomo. Parado no portão, olhei para trás e vi Rafic outra vez. Todo de branco no meio do verde, uma mão erguida no ar, parecia um almirante em alto-mar. Os dedos abertos formavam o V da vitória. Ou vício, vingança, vergonha, voragem, vertigem, pensei, eu estou bêbado. − O que for preciso − ele gritou. − Qualquer, qualquer coisa para encontrar Dulce Veiga. Nosso rouxinol perdido, beleza. Tropecei para fora. Um vento viscoso, cheirando a azedo, vinha do rio Pinheiros. − Vai com Deus, moço − disse o mordomo. E fechou o portão. 30 Há tanto tempo eu não jantava fora. Era como ir ao cinema. Mesa no canto, azeitonas pretas sem caroço, pão com gergelim, patê de berinjela, bloody mary. Um, dois cigarros. Na frente do rapaz a cara de Rupert Everett em Dancing with a stranger e do casal em crise, Rita Tushingan e Tom Selleck, pizza, guaraná, silêncio farpado. Elis Regina numa FM suave, sentimental eu fico, quando pouso na mesa de um bar, eu sou um lobo cansado, carente. Ao ponto, filé ao molho madeira, gordos champignons, batatas fritas, arroz à piemontesa. A loura com perfil de Grace Kelly, pena o moleton, turma da repartição cantando parabéns para Antônio Moreno, vinho riesling ou cabernet? Cerveja desce melhor, mas vinho chapa, que venga el toro. Uma garfada, um gole. Torta de limão, água com gás. Outro cigarro, café com chantili, licor de strega flambado. Da mesa ao lado Paula Prentiss e Daryl Hannah olham excitadas a chama azul, Mel Gibson e Alan Ladd fingem não ligar. Mais três, quatro cigarros, ar de Humphrey Bogart, se queres saber se eu
te amo ainda, Nana Caymmi na FM, procure entender a minha dor infinda. Outro café, outro licor, sou amigo de Fulano, guardanapo de linho, Belmondo e Carmen Maura de mãos dadas logo à esquerda. Cinco, seis cigarros. Conta paga, gorjeta excessiva, volte sempre, quem me dera. Na saída, os olhos ávidos de Shelley Duvall ao lado de Woody Allen. E o bafo espesso da Oscar Freire sem brisa na noite de fevereiro. Kim Novak passa num Monza cinza, desce no L'Arnaque. Ainda sobrava muito do dinheiro de Rafic. Primeiro passo da Operação Dulce: encher o bucho. Eu poderia pensar que não tinha a menor vergonha na cara, mas sem pensar nada, só uma náusea persistente, ia subindo, depois descendo a Augusta, coração sereno como uma bomba-relógio. Não estava certo, pensei, mas tudo estava certo, lua cheia atrás da torre da Paulista. Cio no ar, presa na esquina. Foi quase em frente ao Long champs que ela barrou meu caminho. Da maneira clássica, pedindo fogo. Era ruiva, cabelos frisados até os ombros, colant justo azul-turquesa. Não usava botas, mas sombra verde nas pálpebras. Quase um ano sem trepar, enumerei: do mundo nada se leva, a vida é para ser vivida & etc. James Dean envelhecido e Kim Bassinger paraibana, frente a frente numa ilha da América do $ul. Os pássaros sobrevoaram nossas cabeças gritando here and now! here and now! Joguei o jogo de jogar o jogo, estilo Dalton Trevisan: - A fim duma transinha? − Pode ser, qual que é? − Ninharia, baratinho. − Quanto, gatinha? − Quinhentos o instante, a hora mil. − E a chupetinha gostosa? − Seiscentos valeu? − Valeu, mas.
− No hotel da Peixoto tem que pagar o quarto. − Quem sabe em casa, maior astral. E mais barato. − Mora só, tesudão? − Fora Deus. − Limpeza, em cima? − Do lado, antes da Praça Roosevelt. − Oquei, sabe que você parece o garoto do Bom Bril? − Bom Bril eu vou te mostrar. − Duvi-dê-o-dó. − Como é seu nome? − Viviane na rua. Na real é Dora. − Rainha do frevo e do maracatu? − Rainha até pode ser, moço. Mas o eu eu não dou não. 31 O elevador continuava quebrado, ninguém nos corredores. Embaixo da porta, só a conta de luz, que nem olhei. Depois da faxina de Jacyr, o apartamento cheirava a pinho-sol, veja campestre. Ele era bom nessas coisas. Em outras também, eu supunha. Larguei o gravador em cima da mesa. Sobre o disco de Márcia, um bilhete de Jacyr: "É bárbarô, vossê é amigo dela, me conçegue um de prezente bofe". E o poema, o poema ainda estava lá, manchado de café. A única mancha do apartamento, parecia proposital. Tive um impulso de guardá-lo imediatamente, junto com todas as outras lembranças de Pedro, que recolhera e escondera de mim mesmo. Dora − Viviane esperava, não tenho a noite toda, gatão. Ela me empurrou sobre o sofá, por um segundo desejei que fosse embora. Seria complicado expulsá-la, mais complicado do que apenas recostar nas almofadas, abrir as pernas enquanto ela sentava no chão. Puxou o zíper dos meus jeans, não parecia se importar com o cheiro de cachorro molhado. Devia conhecer piores, anos de calçada. A gritaria da rua entrava pela janela aberta, junto com a luz mortuária do Happy Days, Elba Ramalho em toca-
fitas de carro e Jacyr no Quênia's Bar, bebendo cerveja com o rastafari, orgulho da raça nagô, vinte e cinco centímetros. Dora desceu minhas calças até os tornozelos, com os pés descalcei os sapatos. Por cima da cueca, ela passou a mão no meu pau, enfiou-a por dentro do tecido, fechei os olhos, podia ver quem quisesse em seu lugar, eu era louco por Diane Keaton, por Deborah Bloch, sempre as ruivas, afundei mais nas almofadas. Vamos dançar lambada, bichinho, ela disse, e baixou também minha cueca, o sotaque estragava tudo, tentei me concentrar outra vez, a mão molhada de suor avaliava o peso dos testículos, depois apertou a base do meu pau, lambeu a glande como quem prova um sorvete ruivo, um sorvete de maracujá, talvez Patrícia Pillar, não Woolf, ele fremiu de encontro ao céu da sua boca. Ela subiu a mão por baixo da minha camisa, beliscou um dos mamilos, as unhas ciclâmen de Silvinha entre os pêlos de Rafic, filho da puta, gemi, e Dora começou a lambê-lo suavemente, da base até a glande, afastando o, prepúcio. Cruzei as mãos na nuca para não tocar em seu cabelo tingido, suas pálpebras verdes, Nora Barnacle, tira minhas calças, pedi, e ela tirou, como uma escrava, Lou Andreas Salomé, tira minha cueca, as meias também, Frida Kahlo, e ela tirou. Abri mais as coxas, ela ajoelhada no meio, dava voltas com a língua, pequenas pancadas, depois enterrava-o no fundo da garganta, uma das mãos no mamilo, a outra segurando os testículos, mais fundo, pedi, luz apagada, Marilyn Monroe descendo the river of no return. Ele ficava cada vez mais duro, mais empenado, apenas os sons da rua lá longe, gritaria, baixaria, empurrei com força o corpo para a frente, ela recuou assustada, depois entendeu, aceitou o ritmo. Eu empurrava, ela recuava, eu recuava, ela avançava, inteiro na boca, areia movediça, pantanal. Tirava às vezes para respirar, eu pedia não pára, volta aqui, volta já, e ela voltava, f ode gostoso a tua cangaceira, ela gemeu. Branco canalha, rainha do frevo, ô Dora, sulista escroto, gaúcho metido, Dada Corisco, fodendo o agreste. E lá no fundo da garganta, quase
gozando e rindo, olhos fechados para ver longe dali, sem que nada no corpo dela, além da boca, tocasse meu corpo além do pau, desta Vez deliberadamente, com todos os detalhes, enquanto enchia sua boca de esperma, continuei a lembrar de Pedro. 32 Descemos juntos no Paraíso. Viramos os últimos bares, eu e Pedro, bebendo cerveja com Steinheger, depois conhaque à medida que a noite esfriava. Falávamos como se nos conhecêssemos há anos. Há vidas quem sabe. Quando todos os bares fecharam e o dia começava a nascer nos lados da aclimação, convidei-o para vir até o apartamento onde eu morava há menos de um mês, desde que Lídia se fora. Não havia quase nada lá. Um colchão, roupas espalhadas, discos, livros, uma garrafa de vodca ou uísque pela metade. Sentados no chão, ficamos bebendo, fumando, ouvindo uma velha fita de Bola de Nieve que, não sei porque, ele trazia no bolso. Cada vez mais clara, a luz da manhã varava as folhas de jornal que eu colara nas vidraças. Feito uma cortina de crimes, intrigas e miséria. Tínhamos quase a mesma idade, nenhum dinheiro, mulher ou filho. Ríamos sem parar das nossas vidas e das alheias. Bola de Nieve cantava yo era como una barca solitária en el mar y surgiste en mi vida. Ficávamos cada vez mais bêbados. Tentei levantar para fazer café, mos Pedro tornou a encher os copos. E me puxou para junto dele, contando que morava longe, que não queria voltar para casa naquela noite, que brigara com o irmão, a cunhada, Os sobrinhos. A voz de Pedro era rouca e lenta. Mau rouca e mais lenta por causa da bebida, dos cigarros, das palavras muitas, da manhã nascendo.
Comecei a cochilar enquanto ele perguntava se podia ficar ali, se podia ficar comigo. Claro que sim, era tão simples. Quase dormi, não lembro. Quando acordei, ele me beijava. O beijo de Pedro não era desses de amigo bêbado, encharcado de álcool e solidariedade masculina, carência etílica ou desespero cúmplice. A língua de Pedro dentro da minha boca era a língua de um homem sentindo desejo por outro homem. Ele era bonito. Todo claro, quase dourado. Tentei afastá-lo, repetindo que nunca tinha feito aquilo. Eu gostava de mulher, eu tinha medo. Todos os medos de todos os riscos e desregramentos. Ele beijava minha boca, minha faces, meus olhos, meus cabelos, minhas mãos, meu pescoço, meu peito, minha barriga. Eu parecia uma donzela assustada. Eram ásperas demais as barbas amanhecidas roçando uma na outra, os músculos duros dos braços, das pernas, os cabelos raspados na nuca, os pêlos no peito. O cheiro, os toques, todo o resto: inteiramente diverso do amor de uma mulher, que era o que eu conhecia. Pouco e mal, e quase sem prazer, mas era assim que tinham me ensinado que devia ser. Assim eu conhecia o amor das mulheres. No meu ouvido, Pedro repetia que não podíamos fugir daquilo, que estávamos predestinados, que fora um encontro mágico, que precisava de mim para não morrer de solidão e abandono e tristeza. Eu deixava que repetisse todas essas coisas de fotonovela, de melodrama, de latino América, que continuasse a me beijar. Dormimos juntos vestidos, abraçados. Quando acordei, pelo apartamento não havia outro vestígio dele além dos filtros brancos dos cigarros que fumava, no cinzeiro cheio. Eu não sabia se voltaria a encontrá-lo, eu não sabia se queria que voltasse. Eu estava aterrorizado pela idéia de gostar de outro homem. Ele voltou, dias depois. Quando Pedro voltou, estava anoitecendo. E foi como se todas as luzes da casa se
acendessem ao mesmo tempo. E nós jantamos juntos, fomos ao cinema, ao teatro, ouvimos música, sentamos nos bares, acendemos os cigarros e enchemos os copos um do outro. Durante semanas fizemos todas essas coisas que as pessoas fazem quando querem ficar juntas, vivendo uma a vida da outra. Depois voltávamos para casa e ele sempre tornava a me beijar, insistindo que fôssemos para a cama. Tú no sospechas cuando me estás mirando, ele cantava com Bola de Nieve. Durante meses, os dois em pé, os paus duros apertados um contra o outro na porta de saída. De madrugada, eu conseguia mandá-lo embora para a Luz, Tiradentes, Ponte Pequena, nunca soube onde. Eu deitava sozinho, sem lavar as mãos ou o rosto, para guardar seu cheiro. E me masturbava noite após noite, até ficar esfolado, pensando no corpo e na cara de Pedro, em todas as formas de penetrar e ser penetrado por ele. Eu não cedia, eu tinha medo. Certa noite, talvez tivéssemos bebido demais, Ou não bebido nada, talvez estivéssemos, eu e Pedro, exaustos daquele jogo que não era jogo, ele deitou na minha cama, me puxou para o seu lado. Eu rolei por cima, pelo lado, por baixo dele, morto de riso. Ele tirou minha roupa, lambeu todo meu corpo, me virou de bruços e me possuiu como um homem possui outro homem. Eu senti primeiro dor, depois medo, depois prazer. Como sente um homem penetrado pela primeira vez por outro homem. Mas nojo não, nem desprezo ou vergonha. Só alegria, eu senti com Pedro. Uma alegria que era o avesso daquela que tinham me treinado para sentir. Na manhã seguinte, ficamos o dia todo na cama, ouvindo Bola de Nieve, pedindo pizzas e cigarros e cervejas por telefone. Quando anoiteceu, e começava a chover, eu lambi todo o seu corpo, virei-o de bruços e o penetrei também. Como jamais possuíra nenhuma mulher real, nem mesmo Lídia, nenhum ser de fantasia, na palma da minha mão.
Tinha sardas miúdas nos ombros, manchas de ouro. Gosto de sal, cheiro de terra molhada pela primeira rajada de chuva, um triângulo de pêlos nas costas, logo abaixo da cintura. Mordi sua nuca, ele gemeu. Passamos dias assim, Pedro e eu, um dentro do outro. O cheiro, os líquidos, os ruídos das vísceras. O que era de quem, dentro e fora, nós não sabíamos mais. As secreções, as funduras. Os dias se interrompiam quando ele ia embora. Recomeçavam apenas no mesmo segundo em que tornava a chegar. Não sei quanto tempo durou. Só comecei a contar os dias a partir daquele dia em que ele não veio mais. Desde esse dia, perdi meu nome. Perdi o jeito de ser que tivera antes de Pedro, não encontrei outro. Eu queria que voltasse, não conseguia viver outra vez uma vida assim sem Pedro. Nos meses seguintes, não havia nenhum sinal dele pelas ruas, os hospitais, paradas de ônibus, estações de metrô, uma por uma, tarde da noite, amanhecendo nas padarias. Por vezes, na rua, alguém de costas parecia com ele. Parei de trabalhar. Parei de ser e de fazer qualquer outra coisa além de esperar que ele voltasse. Mas Pedro não voltou, eu não voltei. As luzes da casa nunca mais tornaram a acender com sua chegada.
IV QUINTA-FEIRA POLTRONA VERDE 33 Dulce Veiga, eu tinha que encontrar Dulce Veiga. Olhei o relógio, nem oito da manhã. Há pelo menos dez anos eu não acordava àquela hora insana. Talvez vinte, quem sabe trinta. Sem esperar, lembrei. Quando íamos para a fronteira, no começo do verão, minha mãe passava dois dias fazendo pão, fritando pastéis, matando e assando frangos. Pressentindo ausências, o cachorro uivava baixinho, metido embaixo das camas. Depois o pai tirava da garagem o velho Chevrolet parecido com um morcego, e eu ficava olhando a luz esbranquiçada das manhãs no Passo da Guanxuma. A viagem durava um dia inteiro, até o rio Uruguai. Pouco depois do meio-dia, o pai encontrava alguma sombra à beira da estrada, perto de um açude, a mãe estendia uma toalha xadrez na grama e abria os guardanapos brancos com os frangos, os pastéis, os pães. Antegônias, ela dizia, talvez aqui existam antegônias. Como se fosse viajar outra vez, de manhã cedo, apoiei o pé direito no chão e apertei os olhos com força, cheios de areia. Agora, a mãe viria com a caneca de café quase sem açúcar, um pedaço de pão doce feito em casa, apura, guri, só falta tu. Agora, agora. Não aconteceu nada. Nada além de um terror lento, enquanto lembrava de Rafic, do dinheiro e do que, não sabia exatamente como, eu tinha prometido a ele: encontrar Dulce Veiga. E ela podia estar morta, morando em Cristiana, Salt Lake City, Alcântara ou Jaguari, internada num hospício, longe
de tudo. Eu não queria pensar naquilo, eu não queria pensar numa porção de coisas, em todas as coisas. Eu precisava tanto saber de Pedro. Peguei a carta de Lídia em cima da mesa, abri uma gaveta e guardei-a junto com as outras lembranças dele. Há quase um ano, continuavam lá. Pouca coisa, quase nada. A fita de Bola de Nieve, uma camiseta com a cara de Sal Mineo, uns poemas de Ginsberg e aquele cartão-postal todo em tons de sépia, com a figura de um homem encolhido na beira do rio. Não era preciso virá-lo para lembrar de todas as frases escritas nas costas, logo abaixo da inscrição Pont Neuf sur la Seine: Mélancolie. Fechei a gaveta, eu não podia lembrar. Era preciso encontrar Dulce Veiga, manter aquele emprego, continuar a viver. Mesmo sem encontrá-la, mesmo que Pedro jamais voltasse. A vida não é apagável, pensei. Nem volta atrás. Ainda não construíram a máquina do tempo. Ninguém virá em meu socorro. Faz tanto tempo que invento meus próprios dias. Preciso começar por algum ponto. Fiquei repetindo em voz alta essas coisas inúteis, óbvias, lamentativas. Eu queria minha mãe, eu queria aprender a acordar cedo, outra vez, partir para a fronteira da Argentina e não voltar nunca mais. Mas lavei o rosto, escovei os dentes, ensaboei o pau pela centésima vez para eliminar os últimos vestígios de Dora, rainha do frevo e do sexo oral. Passei café, sentei, coloquei papel na máquina de escrever. Era o melhor que eu podia fazer. Apertei o botão do gravador arrebentado. Mais rouca do que eu lembrava, um tanto ofegante, como se tivesse acabado de subir correndo escadas, a voz de Márcia encheu o apartamento. − "Evidente que Márcia Felácio é só um nome artístico, mais para compor com o nome do grupo, as Vaginas Dentatas. A nossa intenção é passar para esse macho tradicional, em decadência, sem um mínimo de autoconhecimento, primeiro uma sugestão de prazer, e logo em seguida outra de terror total. Nós queremos soar assustadoras como uma ameaça de castração, de impotência, de mutilação. Mas o meu nome verdadeiro mesmo é
Márcia Francisca da Veiga Prado, Márcia F., para os amigos." Além de cigarros, cafés e paradas para voltar a fita, interrompi mais algumas vezes para ouvir o disco. Afinal, Jacyr tinha adorado. E Filemon era bem capaz de localizar nele qualquer coisa como os-ecos-rimbaudianos-de-uma-geração-que-em-meio-à-ruína-de-todas-as-ideologias-filtrou-suas-desilusões-através-de-gritos-agudos-e-acordes-distorcidos-na-falta-de-harmonia-característica-da-agonia-deste-fim-de-milênio. Carente de Cristo, naturalmente. Não que Armagedon fosse péssimo. Podia mesmo ser chamado de inquietante, intrigante, instigante ou qualquer outro desses adjetivos jornalísticos começados por in. 0 problema é que me dava vontade de ouvir Mozart. Comecei a procurar o allegro daquele Concerto n°- 23, que sempre me provocava impulsos de abrir janelas, tomar banho, fazer a barba e descer correndo as escadarias, como se tivesse vinte anos e uma limusine sempre à minha espera, no jardim lá embaixo. De repente, inspirado talvez pelo espírito de Wolfgang Amadeus, lembrei do telefone de Alberto Veiga. Podia ser que ele soubesse de mais alguma coisa. Peguei o cartão, liguei. Apenas seis números, provavelmente Higienópolis. Devia morar bem, afinal, sustentara durante anos a pós-graduação roqueira de Márcia pelo underground junkie do primeiro mundo. Atendeu uma voz de homem, grossa de sono, mal-humorada. − Eu poderia falar com Alberto Veiga? − Quem gostaria? − Ele não me conhece. − Se é por causa da peça, cara, pode desistir. O concurso acabou. Eu mesmo vou fazer o papel do Arandir. Interrompi: − Não sou ator, sou só jornalista. O humor melhorou na hora: − Às suas ordens.
− Diga a ele que é o cara que escreveu sobre Dulce Veiga. A voz afastou-se do telefone. Para alguém ao lado, murmurou alguma coisa que não entendi. E tão rápido que não tive tempo sequer de abaixar o volume do Mozart, outra voz de homem atendeu. Parecia também morto de sono. Talvez dormissem juntos, pensei, Arandir e Alberto Veiga. Comecei a me identificar. − Não precisa dizer mais nada. Eu sei perfeitamente quem você é. − Obrigado pelas flores. − Quem agradece sou eu. É o mínimo que poderia fazer por alguém com lembranças tão belas da minha inesquecível Dulce Veiga. − Obrigado − eu disse. − Será que poderíamos conversar pessoalmente? − Quando você quiser. O tempo de tomar um banho, passar no jornal, entregar a entrevista de Márcia, de preferência antes que Castilhos chegasse, pensei. Já estaria sabendo das manobras de Rafic e com alguma poética ironia em língua inglesa engatilhada. − Pode ser hoje à tarde? − Naturalmente, você manda. Apareça no ensaio. Assim você aproveita e vê algumas cenas do nosso trabalho. Precisa também conhecer o Marco Antônio, a maior revelação dos últimos anos. Vai sacudir os palcos brasileiros. Quem sabe você se inspira e faz uma entrevista com ele. Pode ser, suspirei. − O meu trabalho mais ambicioso, mais revolucionário. Mais do que nunca preciso do apoio da imprensa. Você sabe, um artista não é ninguém sem os meios de comunicação para divulgar seu trabalho. − Acabei de fazer uma entrevista com sua filha. Captei certa tensão na pausa longa do outro lado. − Ah, claro. A Marcinha herdou o talento da mãe.
− Do pai também − não resisti. Alberto Veiga começou a discorrer sobre a sua arrojada & contestadora concepção de qualquer coisa de Nelson Rodrigues, pensei em Darlene Glória, irmã Helena, gemendo Herculano, aqui quem te fala é uma morta, peguei o endereço, desliguei. Não acreditava que ele pudesse esclarecer qualquer coisa sobre o paradeiro de Dulce Veiga. E se também ele, que fora o marido dela e o diretor do show que não acontecera, não soubesse nada, então − então eu estava fodido. Viraria homus nas mãos de Rafic. Mãe, chamei. Aumentei o volume de Mozart, mas já tinha começado aquele adágio tristíssimo. Enquanto tomava banho, não consegui imaginar nenhuma limusine à minha espera. No máximo, um ônibus com algum assento milagrosamente vazio. 34 Passei no arquivo, antes de ir para a redação, peguei a pasta de fotos de Dulce Veiga. Queria confirmar se aquele homem na mesa da boate, de mãos dadas com ela, era mesmo Rafic. A foto não estava mais lá. As outras, sim, como eu tinha deixado. Estranho, pensei. E fui para a redação. Em cima da minha mesa havia montes de telegramas. Nenhum oferecia férias com tudo pago & acompanhante em Punta dei Este, Madagascar, Camboriú ou Salvador que fosse. Eram todos de antigos fãs de Dulce Veiga − muitos mais do que eu poderia imaginar − elogiando a crônica, pedindo mais notícias sobre ela. Rafic devia estar esfregando as mãos com todo aquele sucesso, já devidamente comunicado por Castilhos. Amaldiçoei a hora em que tinha me envolvido nesta história maluca. Então percebi as rosas na mesa de Teresinha O'Connor. Meio obscenas de tão escancaradas, pareciam falsas, inacreditavelmente abertas no ar mefítico daquele jornal. Com a ponta dos dedos, toquei nas pétalas. E
estremeci, como se houvesse tocado num espinho. − Xangô aceitou a oferenda − disse uma voz. Era Pai Tomás. Pelos botões abertos da camisa, vi uma guia de contas verdes e amarelas sobre o peito negro. − O que você disse? Ele pareceu não ouvir. − Você j á almoçou? − perguntou. − Ainda não, só passei aqui para deixar um negócio para Castilhos. − Pode deixar que eu entrego − ele pegou das minhas mãos o gravador, o envelope com a entrevista e um bilhete confuso, pedindo que mandassem um fotógrafo na casa de Márcia, explicando o que acontecera com Rafic. − Quando você for almoçar, coma carneiro e agradeça. Xangô gosta. Quis perguntar por que carneiro e não frango à passarinho, pintado na brasa, virado à paulista. Mas ele já ia longe, o envelope nas mãos. Do outro lado da redação, arrumando tudo no meio do caos de Castilhos, curvou-se e disse algo que soava como: − Okêarô! Fiquei olhando o calendário de Teresinha, parado no dia anterior. Virei uma página, espiei o dia de hoje. Dizia: "Tudo se origina de mim, e a mim retorna". No elevador, cruzei com Castilhos. Embora fumasse, cheirava a sabonete. Alma de Flores, reconheci. Não conseguia encará-lo. − A matéria está em cima da sua mesa. Tem um bilhete junto. − Rafic já me contou tudo. Mas tudo o quê? Ele bateu um cigarro no ar. A cinza entrou nos meus olhos. Enquanto eu piscava, meio puto, Castilhos recitou: − "... then on the shore Of the wide world I stand alone, and think
Till Love and Fame to nothingness do sink." − Shelley − arrisquei. E entrei no elevador: − Percy Shelley. Antes que a porta de ferro fechasse, ouvi-o dizer: − Errado. É John Keats, meu jovem: When I have fears. Talvez fosse tears, não entendi direito. 35 Era um casarão caindo aos pedaços, numa travessa do Bexiga, quase embaixo do viaduto. Espiei pelas grades da bilheteria, não havia ninguém por trás da placa escrita "Não me peça para dar a única coisa que tenho para vender". Os únicos sinais de vida recente naquele buraco escuro eram uma revista de tevê com Lilian Lara na capa, um maço de cigarros e um cinzeiro cheio. A porta estava apenas encostada. A sala de espera, cheia de retratos em preto-e-branco de Cacilda Becker, Glauce Rocha, Sérgio Cardoso, Margarida Rey, Jardel Filho, também estava vazia. Tudo cheirava a mofo, mas talvez pelas fotografias, pelas douraduras espatifadas no veludo bordo das poltronas e cortinas, ainda havia restos de nobreza pelo ar. Isso era sempre o mais melancólico. Em tudo, aquela memória de outros tempos mais dignos, escondida ali no teatro, nos canteiros da Avenida São Luís, nas vidraças da Estação da Luz, na redação do Diário da Cidade, nos casarões sobreviventes da Avenida Paulista, por toda parte. Tempos, pensei, tempos melhores. E dei de cara com minha própria imagem refletida entre as rachaduras de um espelho. Meu cabelo começara a cair. Automático como sempre fazia nos últimos anos, desviei depressa os olhos. Eu também conhecera melhores tempos. Esfreguei as palmas das mãos, afastei as cortinas. Só o palco estava iluminado. Devagar, para não chamar atenção, sentei numa poltrona do fundo. Enquanto meus olhos acostumavam-se ao escuro,
como sombras chinesas, distingui meia dúzia de silhuetas de cabeças na primeira fila. Sobre um praticável no centro do palco, dois homens se encaravam. Um deles, muito jovem e musculoso, tinha um jornal nas mãos. O outro, bem mais velho, sacudia os cabelos grisalhos desgrenhados e um revólver. O mais velho gritava: − "Ciúmes de minha filha, não. Ciúmes de você. Tenho! Sempre. Desde o teu namoro que eu não digo o teu nome. Jurei a mim mesmo que só diria teu nome a teu cadáver. Quero que você morra sabendo. O meu ódio é amor. Porque beijaste um homem na boca? Mas eu direi o teu nome. Direi teu nome a teu cadáver". O homem grisalho apontou o revólver para o musculoso. Fechei os olhos, não explodiu nada. Quando tornei a abri-los, ele gritava para uma das sombras chinesas: − Bate no chão. Dá um grito, meu amor. Faz algum tipo de barulho na hora que eu atirar. A sombra gemeu: − É que é tão emocionante. Eu até esqueci. − Ótimo, mas faz um barulho qualquer. Senão eu perco o clima − o homem voltou-se para o outro, que continuava parado: − Vou repetir a deixa. Eu falo, atiro, aí você cai. Atenção: "Mas eu direi o teu nome. Direi teu nome a teu cadáver". Apontou o revólver. Uma voz gritou na fila das sombras chinesas. O rapaz musculoso caiu de joelhos, cobrindo o peito com o jornal. Era o Diário da Cidade, eu vi. O homem apontou o revólver outra vez. A voz tornou a gritar. O rapaz caiu estendido no chão, levantando uma nuvem de poeira e rasgando o jornal. O homem grisalho berrou: − "Arandir! Deixou cair o revólver, curvou-se até acomodar o corpo do outro nos próprios joelhos. Afagou os cabelos dele durante um tempo que pareceu enorme, depois tornou a gritar:
− "Arandir! Arandir!” Achei que fossem parar por aí. Eu conhecia bem o final de O beijo no asfalto, o sogro louco de ciúmes, revelando seu amor maldito. Agora a luz cairia em resistência bem lenta sobre o cadáver de Arandir, até as trevas. Aplausos frenéticos, se houvesse público, depois de certa hesitação chocada. Mas eles não pararam. O homem grisalho continuou ajoelhado, imóvel, na mesma posição, os dois braços estendidos como se abraçassem Arandir. Só que em vez de continuar morto, Arandir levantou-se e caminhou para outro praticável mais atrás, um pouco mais alto. Lá, inteiramente nu, estava deitado outro rapaz ainda mais musculoso que ele, o rosto voltado para o fundo do palco. Em pé ao lado dele, Arandir estendeu a mão dramaticamente. − Me dá um beijo − implorou o cara nu, com certo sotaque que não consegui identificar. − Por tudo que é mais sagrado, me dá um beijo. Na boca. Achei que Arandir fosse simplesmente abaixar-se e beijá-lo, mas não. Lentissimamente, gestos provocantes como num striptease, ele tirou primeiro os sapatos, depois tirou também as meias, a camisa, os jeans. Quando pensei que fosse ficar só de cuecas, arrancou-as também e jogou o monte de roupas emboladas no praticável do homem grisalho. Tão nu como o outro deitado no chão, mas não era tão musculoso nem tão peludo, Arandir ajoelhou-se ao lado dele e circundou-o com o braço. Ficou passando a mão pelas coxas, pela barriga, pelos peitos salientes do outro. Sem se mover, ainda estatizado como se abraçasse Arandir, o homem grisalho gritou: − Belisca os peitinhos devagar, até ficarem bem duros. Arandir obedeceu. Só parou para subir a mão até o pescoço do, eu supunha, atropelado. Então segurou o rosto dele, voltou-o para a luz. Num baque, reconheci: o homem nu deitado era o argentino que morava no meu prédio. − De língua − ele gemeu. − Pelo amor de Deus, me beija. Arandir
curvou-se. Beijou-o demoradamente na boca. Achei que iam começar a trepar ali mesmo, mas as sombras chinesas aplaudiram. Bra-vô! gritou alguém. No praticável mais baixo, o homem grisalho soluçava, a cara enfiada na cueca de Arandir. Levantei para sair. Talvez eu fosse mesmo meio careta, mas aquilo tudo estava parecendo patológico demais para um sujeito que. A cadeira estalou, o homem grisalho largou a cueca, olhou para o meu lugar e gritou: − Quem está aí? Esta cena é secreta, não quero nenhum espião do Antunes por aqui. − Sou o cara do jornal − falei. Essa estava se transformando na minha senha favorita para amansar dramáticos temperamentos da família Veiga. Ele desceu do palco, veio caminhando para mim. Naturalmente, era o próprio Alberto Veiga. A mil: − Você chegou na hora exata. Este é o grande momento da peça, a cena que Nelson Rodrigues não se atreveu a escrever. Reparou no texto do atropelado? A pontuação sincopada, perseguindo o ritmo da respiração coloquial, tudo coisa minha. − Apontou para o palco, onde os dois pelados continuavam abraçados. − Uma Pietá gay, é isso que eu quero. Uma Pietá gay desesperadamente erótica, ao fundo. Como um arquétipo de Eros e Thanatos. Estática, eterna. E o pobre Aprígio ali, jogado no meio do palco, no meio da vida, do crime que cometeu, cheirando a juventude impossível de Arandir. Essa a mensagem final: o amor é pura miragem. Aos que não renunciaram encontrá-lo, como Aprígio, resta o consolo de cheirar os restos da juventude morta por ele mesmo. Muito ousado, comentei. − É nesse momento que me remeto a determinados trechos daquele patético diário dos últimos dias de Roland Barthes. Quando ele renuncia ao amor dos rapazes e opta definitivamente pelo amor dos michês. − Ele berrou: − "Só me reatarão os michês!" − E sem pausa: − lá leu Barthes, claro.
− O prazer do texto − eu disse. − O prazer é todo meu − Alberto sacudiu minha mão. As cabeças na primeira fila estavam todas voltadas para nós. Ele bateu palmas: − Todo mundo dispensado. Vão tomar café na esquina, bater o texto. Só ficam o Marco Antônio e o Arturo. Marco Antônio e Arturo, eu supunha, eram Arandir e o argentino-michê-do-meu-prédio, isto é, o atropelado. As sombras chinesas começaram a se mexer. Na verdade, mais pareciam peruanas do que chinesas. Selminha devia ser a garota magra de óculos, saia de batique e bolsa indiana. − Não quero tomar seu tempo. Alberto Veiga me puxava para o palco: − Mas meu tempo é todo seu. Você conseguiu decodificar o simulacro da imagérie na cena final? A cena de amor entre Arandir e Arturo na verdade acontece apenas na mente erotizada do pobre Aprígio. Não é real, mas mítica. Como o fantasma que perseguirá eternamente os heterossexuais apavorados: a possibilidade de um amor entre machos. O amor que Aprígio sente é impossível, e o amor que acontece entre os outros dois, arquétipo da morte, mera fantasia. Mas o amor verdadeiro, se é que existe, entre homens ou mulheres, onde fica? Numa gaveta fechada, tive vontade de dizer. Nas costas de um cartão-postal, sob uma ponte no Sena: mélancolie. − Tem mais, tem muito mais. Quando o Marco Antônio vai tirando a roupa, no meio de uma nuvem de gelo seco, entra uma daquelas músicas bem características de striptease de boate gay. Dona Summer, algo assim. Pura ilusão, desejo. Desejo louco, perverso, desejo alucinado. Desejo que não se atreve a violar as barreiras do estabelecido. Desejo que não se sacia nunca, a não ser na fantasia solitária ou na própria morte. Essa a essência de Nelson Rodrigues, da sociedade contemporânea, do Brasil e do teatro que eu quero fazer. − Realmente muito ousado − repeti. − Nunca pensei.
− Você que ligou hoje de manhã? − perguntou Arandir. − Foi − eu estava meio tonto com as teorias de Alberto Veiga, aqueles cavalões cheirando a suor nus na minha frente. − Conheço você − disse o argentino. Entre os pêlos crespos, mais escuros à medida que desciam pelo umbigo, os bicos rosados dos peitos continuavam duros. − Desculpa − continuou Arandir. − Achei que era por causa do concurso. Alberto Veiga interferiu: − Verdade, fiz um concurso para escolher o Arandir. Queria uma cara completamente nova. Um verdadeiro macho, uma lasanha. Teve mais de cinqüenta candidatos, o Arturo aqui tirou o segundo lugar. Físico perfeito, pena o sotaque. Mas foi quando pensei na possibilidade de aproveitar um talento como o dele que me veio a idéia da Pietá gay. O talento de Arturo, qualquer um podia ver, era realmente enorme. Ele perguntou: − Você não mora no meu prédio? − No andar de cima. Alberto girava em torno de nós três. Eu, os dois machos nus. − Mundo pequeno, as coisas são sempre meio mágicas. Então vocês já se conhecem? Não no sentido bíblico, imagino. − Nós nunca nos falamos − eu disse. − Você é muy cerrado − disse o argentino. − Você gosta de Carlos Gardel. − E você, de Nara Leon. Bastava, pensei, talvez bastasse, sim. Apenas um gesto ou palavra ambíguos, cúmplices, matreiros, para que Alberto Veiga suspendesse imediatamente os ensaios e fôssemos os quatro − eu, Arandir, Arturo e Alberto, eram As demais para a minha cabeça − para o apartamento dele. Sem
controlar, imaginei algumas coisas muito taradas. Mas eu era um sujeito sério, eu não era homossexual, eu disse que precisava falar sobre Dulce Veiga. Em particular, acentuei. Arandir pegou a roupa embolada no chão, desceu para a platéia. Arturo desapareceu atrás das cortinas, cantarolando se cruzé por los caminos como um pária que el destinos e empenó em deshacer. Tinha um rabo tão esplêndido que, por um momento, eu também duvidei que Arandir nunca o tivesse visto antes daquele beijo. 36 Quando Dulce Veiga desapareceu, ela e Alberto estavam separados há quase dois anos, praticamente desde o nascimento de Márcia. Tinham sido casados durante dez anos, aos quais ele se referia como "os mais felizes da minha vida". Não revelava os motivos da separação, mas parecia evidente que, enquanto Alberto desfraldava cada vez mais sua homossexualidade, Dulce começara a beber, a tomar drogas, a ter amantes bizarros. Depois de uma fase de queixas e acusações − "esse espaço de rancor inevitável", ele dizia, "quando o amor acabou e ainda não teve tempo de transformar-se em alguma outra coisa, boa também" −, o show era uma forma de selar publicamente a amizade entre os dois. E iniciar, quem sabe, uma outra espécie de casamento. Menos passional, mais artístico. A última vez que Alberto viu Dulce Veiga foi na madrugada antes da estréia. Ele abriu a porta do apartamento para que ela entrasse, com Márcia no colo, e não quis entrar com ela, beber alguma coisa, era sempre conhaque, conversar. Até hoje, ele se arrependia de não ter feito isso. Naquela noite, poucas horas antes de desaparecer, Dulce talvez precisasse apenas desabafar com alguém. Mas ele estava exausto, nas últimas semanas ensaiavam todos os dias até duas, três da manhã. Ficava cada vez mais difícil trabalhar com ela, chegava sempre atrasada, não conseguia decorar as letras novas, sentia-se perseguida. Às vezes chorava muito, sem motivo aparente, repetindo que
queria outra, outra coisa. Todos eram pacientes e carinhosos com ela: tinham certeza que o show seria um grande sucesso, mesmo porque, apesar de insegura, Dulce cantava melhor do que nunca. Naquela madrugada, no corredor do edifício da Avenida São João, Alberto beijou-a na testa e virou as costas para ir embora. Antes de entrar no elevador, ainda olhou para trás e achou-a muito magra, muito pálida, muito triste. Encostada na porta, Dulce Veiga segurava a menina adormecida num dos braços, um pouco curva, tinha um cigarro aceso na outra mão. Nos últimos tempos, fumava sem parar. Alberto até pensou em voltar, em tomar aquele conhaque com ela, afinal, ouvir Billie Holiday ou Bessie Smith, Me and my gin, que ela ouvia o tempo todo. Mas o elevador chegou, ele foi embora. Essa era a última imagem que restara dela. Parada na porta do apartamento, a filha no colo, um cigarro entre os dedos, Dulce parecia ter medo de entrar em casa. E encontrar − o quê? Na noite seguinte, o teatro lotado, ele telefonou primeiro para o apartamento dela, e ninguém atendeu. Ligou depois para Lilian Lara, com quem às vezes Dulce deixava Márcia, quando não a levava para o ensaio. "Essa menina adora música", dizia. Márcia estava no apartamento de Lilian, Dulce não. Ela deixara a menina, Lilian contou, dizendo que ia ao cabeleireiro fazer as unhas, limpeza de pele, alguma coisa assim, de mulher. E parecia bem, parecia animada com o show, com a filha, com ávida até. Então Alberto foi até o apartamento dela, ele tinha uma chave, e não havia ninguém lá. Preso com um alfinete naquela poltrona de veludo verde que ela gostava tanto, escrito às pressas, havia um bilhete endereçado a ele. Dulce dizia que estava cansada de tudo, que não suportava mais, não queria fazer sofrer as pessoas que a amavam, desaparecia para sempre, era inútil procurá-la. Pedia ainda que Alberto cuidasse bem de Márcia, que fizesse o possível para mandá-la estudar na Inglaterra, como tinham combinado. Era um bilhete curto, mal escrito, desesperado. Só de pensar nele, Alberto dizia, e parecia
verdadeiro, "só de pensar nele tenho vontade de chorar". Até hoje, ainda o guardava. Numa caixa, com outras coisas sem importância. Um vidro de perfume, uma luva, um brinco, uma caixa de pó-de-arroz, como lembranças de alguém que já morreu. Se eu quisesse, poderia vê-lo, o bilhete, poderia ver tudo. Bastava que fosse até o seu apartamento, aproveitaria para convidar Marco Antônio e Arturo, mostrar algumas fotos, alguns vídeos, falar mais de seu próprio trabalho. Ao qual, ele dizia, "dediquei toda minha alma ferida depois que Dulce escolheu as sombras". Mas, ele garantia, não havia nenhuma pista naquele bilhete. Nem no apartamento, no dia em que ela desaparecera, em qualquer outro lugar ou com qualquer outra pessoa. Se eu quisesse, poderia também falar com Lilian Lara, que fora a amiga mais próxima dela. Alberto tinha certeza de que não adiantaria nada. Ele mesmo, e muita gente mais − "ela era muito, muito, muito amada", ele afirmava − havia feito o possível para encontrá-la, nos últimos vinte anos. Tudo inútil. Ninguém sabia onde andava Dulce Veiga. 37 O céu tão claro lá fora. Nem uma nuvem no céu de fevereiro. Parado na frente do teatro, dentro do calor mais leve de quase cinco da tarde, escutei uma espécie de silêncio. Que talvez estivesse dentro de mim − um pouco escurecido pelo mofo do teatro, um pouco tonto depois de ouvir Alberto Veiga, um pouco esvaziado, como a tarde. Encostei na parede, acendi um cigarro, fiquei olhando os viadutos. Na calçada oposta, em câmera lenta, o corpo todo coberto por sacos de farinha, uma mendiga arrastava um saco cheio de jornais velhos. Parecia a imagem da Morte numa gravura medieval, faltava apenas a foice. Mas Saul, eu perguntara, quem é Saul. E Alberto, como Márcia, não lembrava de ninguém com esse nome. Precisava continuar os ensaios, chamou Marco Antônio e Arturo, mandou que tirassem a roupa, que repetissem a
Pietá gay, desta vez com fúria, como se estivessem morrendo de tesão um pelo outro, dizendo que Pepito era um bêbado frustrado, decadente, que misturava nomes, tempos, histórias, e eu quis acreditar. O sol batia direto na minha cara branca. Era bom o sol, depois daquelas horas enfiado no teatro escuro, em lembranças escuras. Talvez eu devesse procurar Pepito outra vez, talvez devesse ir ao Rio de Janeiro, falar com Lilian Lara. Talvez uma porção de coisas dinâmicas & emocionantes & etc, se eu continuasse mesmo a bancar o Phillip Marlowe. Por enquanto, minha vontade era dar por encerrada toda esta história. E continuar ali, encostado na parede, sem fazer absolutamente nada. Apaguei o cigarro. Entrei no bar ao lado, pedi uma água. 0 sol baixo batia na imagem de São Francisco de Assis, o passarinho no ombro, dentro de um nicho no alto da parede, cercado de rosas murchas. − Pouco movimento − eu disse. O português de olhos claros suspirou, debruçado no balcão: − É o maldito verão, ô pá. Nessa temporada todo mundo vai pras praias. − Isso é pra quem pode − eu disse, e lembrei de Rafic, barracas no Guarujá. Ele sorriu, coçou os braços peludos. Tinha olhos doces, e não poder sair da cidade nos irmanava na desventura, embora de lados opostos do balcão. Preciso conhecer Portugal, pensei. E outra vez, fechando os olhos, revi aquele mar de águas verdes, cheias de algas flutuantes. Eu boiava na superfície até depois da arrebentação, até algum ponto de onde, olhando a praia, visse apenas um coqueiro e talvez uma loura metida num duas peças antiquado, gritando em alemão rascante: Its es nicht aufregend, dieses Leben? Há quantos anos eu esquecera o significado dessa palavra que, na infância, tinha gosto de sol na cara e pés descalços? Férias, repeti, holidays, vacacíones, urlaube. − O senhor faz teatro? − perguntava o português. Devia estar me
achando com pinta de veado. − Faço − menti. E fiquei louco para começar a contar minha gloriosa descida pelas escadarias, gritando cidadãos de Tebas! e mandando os soldados arrancarem Antígona de perto do corpo de Hemon, irmão querido. − Estamos ensaiando uma peça aí em frente. Nem naquele tempo de censura, perseguições, proibições & tortura, Alberto garantia, Dulce se envolvera com comunistas. Gostava de ficar em casa decorando letras de Dalva de Oliveira, Edith Piaf, Patachou, Marlene Dietrich, sem a menor idéia do que acontecia além das paredes do apartamento. Alguém estava mentindo. Mas era eu quem teria que prestar contas daquelas mentiras a Rafic. Quem sabe numa festa bem artística, bebendo Jack Daniel's com Melinha Marchiotti. − Deve de ser uma vida porreta − dizia o português. − Médio − eu gemi. Na calçada em frente ao bar, a mendiga parou na esquina, como se escolhesse uma direção para ir. Podia seguir em frente, pensei, passar por baixo do viaduto e afundar nas ruas do Bexiga, onde sempre haveria muitos restos de comida na porta das cantinas. Mas podia também dobrar à direita, em direção ao centro da cidade, devia haver muito papel nas esquinas da Ipiranga. Ou virar à esquerda, pegar um daqueles caminhos que iam dar na Liberdade, sushis no meio do lixo. Peguei a garrafa d'água, fiquei parado na porta do bar, olhando a mendiga indecisa. Eu me sentiria maravilhoso se tivesse coragem de chamá-la para oferecer um misto-quente, um guaraná. Ela atravessou a rua, mas em vez de passar por baixo do viaduto, deu a volta e subiu por cima dele, onde só cruzavam carros. − Muitas festas, muitas mulheres, muita bebida − repetia o português. No alto do viaduto, a mendiga depositou o saco de papel no chão. Depois, com as duas mãos livres, num gesto elegante demais para ela, tirou o capuz. Tinha cabelos louros, lisos, repartidos ao meio, cortados na altura do
queixo. Estendeu o braço direito para o alto, o indicador esticado apontando o céu, e voltou o rosto para mim. Mesmo imundo, o nariz corroído pela sarna, o rosto ainda guardava restos da antiga beleza. Eu gritei: − Dulce, espere por mim, Dulce Veiga. Saí correndo com a garrafa nas mãos. O português gritou alguma coisa que não entendi. Até conseguir atravessar a rua e dar a volta pela ilha de cimento embaixo do viaduto, para subir ao encontro dela, fiquei um momento sem conseguir vê-la. Ah, eu a levaria para casa, daria um banho nela, faria com que me contasse todos os detalhes obscuros daquela história maluca, depois iríamos juntos à estréia do show de Márcia. Happy end: ao fundo, Dulce Veiga cantaria a versão original de Nada além, sob uma chuva de rosas e aplausos. Em primeiro plano, Márcia e eu de mãos dadas, olhos nos olhos. Créditos subindo sobre a imagem congelada. Ainda não era aqui, ainda não era assim. Quando cheguei ao alto do viaduto, ela atravessara para o outro lado. Como se fugisse de mim, sem saber que eu era seu salvador, seu cantor, seu criador. Entre os carros que passavam, fiquei esperando o primeiro espaço livre para atravessar. Em etapas, entrevista no meio dos carros, ela começou a tirar os jornais do saco e a jogá-los para o alto. As folhas amassadas esvoaçavam por um momento, depois caíam entre as rodas dos carros, sobre sua capa encardida, do outro lado da rua. Então, enquanto eu esperava, subiu na amurada baixa do viaduto e ficou montada nela, balançando-se de um lado para outro, como se estivesse num cavalo ou numa gangorra. Como uma amazona, uma criança. Uma louca, olhava para mim, rindo um riso sem dentes. Gritei cuidado, você vai-se machucar, Dulce Veiga, qualquer coisa assim, mas sabia que não conseguiria ouvir no meio do barulho dos carros que não paravam de passar. Antes que eu pudesse fazer qualquer gesto, ela pulou do viaduto.
Ninguém gritou, os carros não pararam. Fiquei pensando se seria mais rápido dar a volta por onde tinha vindo, e atravessar a rua, ou cruzar ali mesmo, entre os automóveis. Nesse momento algum sinal fechou em certa esquina, o viaduto ficou vazio. Atravessei correndo, debrucei na amurada, olhei para baixo, para a calçada de cimento onde ela deveria ter-se espatifado, vinte metros abaixo. Não havia ninguém na rua. Nenhum sinal de sangue ou de gente. Viva ou morta, real ou imaginária. O vento continuava a soprar os jornais. Enrolada nas minhas pernas, uma página do Diário da Cidade mostrava o rosto de Dulce Veiga. Sorrindo, longe de tudo, cheia de luz. Nesse momento, talvez por me sentir perdido e tudo parecer tão doido, lembrei do mistério, lembrei do jogo de búzios. 38 Do outro lado da mesa coberta por uma toalha imaculada, Jandira primeiro acendeu uma barra de incenso, passou-a pelo espaço entre nós. Depois fechou os olhos, orou: − Benditas e louvadas sejam todas as forças universais, todas as forças cósmicas. Benditos e louvados sejam todos os oduns da paz, da felicidade e da prosperidade. A benção Ifá, a benção Lodumaré. Uma moto passou roncando lá fora. Nem isso conseguiu quebrar o fascínio com que eu olhava os objetos entre nós, do lado de fora do círculo formado pelas guias coloridas. Pedaços de cristais, crucifixos, uma vela acesa, um copo cheio d'água e pedras de sal marinho, uma boneca vestida de amarelo, um cartão com a imagem de um homem forte com um machado nas mãos, vestido de vermelho e branco. Tudo ordenado, sem um grão de poeira. Por trás daquilo, não parecia a Jandira que eu conhecia. Solene, sacudia os búzios entre as mãos fechadas, recitando algo que soava como: − Aroboboi Oxumaré aroboboi, Obá nixé kaô kábisile, ogunhê patacorê Ogum,
jace jace, ora iê iê fiderô mã, iê iê oh minha Oxum, epa rei e kide rei Iansã, Oiá misolorum, eu eu Osanha asa, odê kokô ma iô, okê aro Olodomin ofá, lelu lemanjá odô iá. A bênção Obá, a bênção Ená, a bênção Inã, bençoá Jesu. Kobalaroê Exu kobá, a bênção todos oa vodus. No ar entre nós, ela jogou os búzios no meio do círculo das guias. Ficou olhando sem dizer nada, com aquela cara sabida de quem via o que eu não era capaz de ver. Aproveitei para olhar em volta. Era um apartamento do tamanho do meu, eu não conseguia imaginar como ela e Jacyr cabiam ali dentro. Mas como a mesa, todo ele era ordenado e limpo, pobre mas decente. O chão brilhava, encerado. Suspensas na janela, as avencas e samambaias enchiam de verde o precipício escuro do pátio interno. Com um guarda-roupa, eles tinham improvisado uma divisão no meio da sala. Nas costas voltadas para nós havia uma colagem que misturava orixás e santos da igreja católica com Buda, madre Teresa de Calcutá, Chico Xavier, o papa e artistas de cinema e tevê. Fiquei tentando descobrir se o cara de peitos nus, eu precisava de óculos, seria Arnold Schwarzenneger ou Sam Shepard, mas estava achando que Shepard seria intelectual demais para o gosto de Jacyr, quando Jandira disse: −Axeturá. Olhei para a mesa. Alguns búzios espalhavam-se em pequenos montes mas, no centro do círculo, quatro ou cinco deles formavam uma fila mais ou menos reta. Os olhos de Jandira estavam completamente vesgos. − Meu filho, os caminhos estão muito mais abertos do que você imagina. Só que eles parecem tortos. Mas é por esses caminhos que parecem tortos que você tem que caminhar, e as coisas vêm ao seu encontro. Você só tem que escutar os caminhos e seguir por eles. Mas será que eu, comecei a perguntar. Acho que queria saber se seria, afinal, capaz de ouvir os tais caminhos, se eram tão tortos assim, talvez silenciosos também.
Jandira tornou a jogar. Baixei a cabeça, espiei entre as sobrancelhas. Desta vez, caíram todos no canto à minha direita. Menos dois, sozinhos no canto oposto. Ela perguntou: − Você conhece a história de Logunedé ? Disse que não, e senti vontade de fumar. Os olhos fixos atrás de mim, em alguma coisa ou alguém que não estava lá, Jandira contou: − Logunedé é um príncipe, quase menino. Filho de Oxum, rainha das águas, e de Oxóssi, o rei das matas. Durante seis meses, Logunedé se transforma numa princesa encantada. E fica dormindo, deitado no fundo de um barco no meio do rio. Então ele se transforma também numa estrela. Deixa a princesa dormindo lá, no fundo do barco, sozinha, e sai vagando pelo meio da mata. Como uma estrela, procurando seu pai Ilê. Mas o pai não era Oxóssi, pensei em perguntar. Ela tirou os olhos daquela incômoda coisa invisível atrás de mim, fixou-os no meu rosto. Tão vesgos que deviam focalizar, no máximo, aquele ponto onde as sobrancelhas se uniam, no começo do meu nariz. 0 território livre, preferido por nove entre dez cravos e espinhas. − Larga a princesa dormindo, meu filho. Vira estrela e vai pro meio da mata, Ilê te espera. A Pítia de Delfos perde, pensei. Com a desvantagem que não havia nenhum Apoio por perto. A não ser Schwarzenneger, ou seria mesmo Sam Shepard? Eu precisava de óculos, além de largar a princesa, e talvez Jacyr, além das faxinas, pudesse levantar uma boa grana decodificando oráculos na saída. Sem falar que mata, onde estávamos, só as árvores castigadas da Praça da República, do Trianon ou Ibirapuera, e me senti meio verme pensando nessas coisas. Celta, druídica, xamânica, Jandira tornou a reunir os búzios e jogá-los entre nós. Desta vez, olhei depressa e contei, metade estava voltada para
baixo, metade para cima. Ela disse: − Ejionilê. Hein, perguntei. − Quando três fios brancos crescerem no seu peito, meu filho, Oxaguiã anuncia e traz a paz. Faltava só um, então. Até a manhã do dia anterior, embora preferisse esquecer, eu lembrava, havia pelo menos dois. Visíveis porque pêlo é o tipo de coisa que não pára nunca de crescer no corpo de um cara. Minha preocupação não eram esses dois, ou os três que ela anunciava, e sim os dez, os cem pêlos brancos futuros, incontroláveis. E além deles, aquela criatura de grisalho peito cabeludo em que pouco a pouco eu ia me transformando, enquanto a vida rolava e nada, nada acontecia. Nem sequer correntes de ouro para exibir entre o matagal grisalho. Ela disse: − O Tempo é um orixá tão poderoso que não existe cavalo capaz de suportar o peso dele. Por isso não encarna, só ronda. Enigmas, era tudo que eu encontrava pela frente. Enigmas insolúveis, esfinges impenetráveis, insanidades. Dulce Veiga caindo do viaduto, uma Pietá gay, a reencarnação de Virginia Woolf, coisas assim. Um telefone começou a tocar ao longe, devia ser o meu mesmo, seria Pedro? Comecei a ficar aflito com aquele hermetismo afro-brasileiro. Resolvi ser mais objetivo, embora inoportuno com o tempo dos orixás, que talvez fosse como o tempo de Lacan. − Preciso encontrar alguém. Uma pessoa desaparecida há muitos anos. Jandira ajeitou o turbante, esse não era prateado nem dourado como outros que eu vira, mas verde e amarelo. Um verde e amarelo que me fazia pensar nas matas onde eu deveria andar vagando, transformado em estrela, à procura de Ilê. Ela sacudiu os búzios, jogou-os no espaço entre as guias. Um deles pulou fora, na minha direção. De medo que caísse no meu colo, cheguei
a afastar a cadeira. Não queria que me tocasse, aquele búzio na ponta da mesa. − Não se preocupe, você vai encontrar essa pessoa. Ela é amiga de Ossanha, Oxum cuida bem dela. E muita coisa mais, coisa que você nem imagina, meu filho, você vai encontrar. Um dia a estrela volta, entra no corpo da princesa e a princesa acorda. Ouve o que a tua mãe diz, e segue a estrela sem medo. ... e se a estrela desaparecesse de repente no horizonte, se já tivesse morrido enquanto a luz dela ainda chegava aqui, se não fosse uma estrela, mas um pulsar, quasar, buraco negro, se fosse Nêmesis, o planeta peregrino e assassino, além de Plutão, se fosse inatingível como Vega, Canopus, Aldebarã, se... − Onde anda Jacyr? − perguntei, dispersivo. − Pela vida, o santo cuida dele. Hã-hã, eu disse. Não queria pensar no Quênia's Bar, uma perna apoiada na privada, a outra bem aberta, e vinte e cinco centímetros até o cabo. Perguntei sem graça: − Quanto foi? Jandira parecia constrangida: − O que você puder, meu filho. Nunca cobro nada pelo que aprendi de graça. Mas preciso fazer um ebó, o santo pede. Você tem algum dinheiro? Galinha preta na esquina da Caio Prado, pomba branca esvoaçando na Praça Roosevelt, pipocas à beira do Minhocão. − Aqui não. Só pegar, aí do lado. − Depois você me dá, já sei o que fazer. Enfiei uma nota embaixo da saia de renda amarela da boneca, onde apontavam outras notas, alguns cheques. Levantei para sair. Nenhum grande amor, nenhuma carta, herança ou festa. Confusion, no connection, pensei. Parecia frase de filme, e quando pensei em filme, pensei também que tomar banho, ligar para um velho amigo, ainda
restavam alguns, e ir ao cinema talvez fosse a melhor maneira de encerrar aquele dia sem sentido. Procurando bem, talvez encontrasse alguma reprise de Fellini na cidade. Jandira colocou as mãos nos meus ombros. Cheirava a canela, manjericão, arruda. Já não estava vesga quando olhou bem dentro dos meus olhos: − Antes de dormir, meu filho, coloca um copo d'água com açúcar na cabeceira. Para chamar as fadas, de madrugada elas sentem sede e vêm beber do lado da sua cabeça. E amanhã se veste todo de branco e não come carne para guardar teu pai Oxalá, que te proteja. 39 No corredor, esbarrei com uma mulher toda de preto. Era Teresinha O'Connor. − Você por aqui? − Eu moro aqui, do lado. Deu três beijos no meu rosto. − Me disseram que ela é ótima, não sei mais o que fazer. Hoje ele me tratou tão mal, como se eu fosse nem sei quê. − Boa sorte − desejei. E não entendi nada. 40 Liguei o rádio. Além dos pensamentos, queria outros ruídos no cérebro. Mais profanos, menos confusos. Em falsete, uma voz animadíssima gritou flaaaaash-baaaaack!, e até que não seria de todo mau tomar banho ouvindo help I need somebody help I need someone, embora eu não cantasse, acho que ainda sabia a letra inteira de cor. Inesperadamente, como saída do fundo do tempo, aquele tempo em que eu a conhecera, Dulce Veiga começou a cantar Nada além. Apaguei o rádio. Voltou aquele silêncio que eu detectara na saída do teatro. E eu, dentro dele. Eu, só eu, só.
Os velhos amigos então, lembrei, tomar banho, telefonar, ir ao cinema, depois jantar. De todo aquele tempo de silêncio e pena, não restava muita gente. Talvez Nelson, enumerei, amaldiçoando a mulher e as três filhas, não faço nada além de alimentar aquelas fêmeas; talvez Maria do Carmo, cada vez mais convertida a membro típico do Lamuriento Exército das Vítimas do Feminismo: um filho, nenhum marido ou amante, carnes e sonhos despencando pelas academias de aeróbica e redações de revistas femininas; talvez Fernando, olhos de fogo frio, batalhando pó até os dentes rangerem, depois uma puta − ou travesti, seria capaz? − na primeira esquina, pagar e brochar. Fora esses, havia também a Lépida Legião Daqueles que Tinham Dado Certo, todos acasalados, aparece sábado, vou fazer uma jantinha, você tem que ver os vídeos que a gente trouxe de Tóquio, os computadores de Nova York, os vinhos de Paris. Não, eu não queria ver nenhum deles. Eu não queria nada, eu não queria ninguém. Como Dulce Veiga, o que eu queria era encontrar - outra coisa. À amargura explícita ou atenuada por fondues, sessões à slides e Armagnac’s importados, preferia ficar só. Era mais limpo. No máximo um velho Bergman, cheio de traumas. Então a campainha tocou, e tudo começou a acontecer muito depressa. Pálida e descabelada, o capacete nas mãos, era Patrícia. Foi entrando sem esperar convite. − Desculpa aparecer assim. Pedi seu endereço no jornal, uma moça me deu. Telefonei a tarde toda, ninguém atendia, achei que estava quebrado. Você precisa me ajudar. − Que aconteceu, Virgínia? − É a Márcia, entende? Eu não entendia nada. − Ela desapareceu. Inevitável repetir a pergunta feita dezenas de vezes nos últimos dias:
− Como assim, desapareceu? − Desde duas da tarde. Não foi no ensaio, deixou esperando um pessoal que queria gravar um negócio para a tevê. Um monte de coisas, um monte de gente. Não ligou, não disse nada. Reparei numa coisa peluda, pouco abaixo do pescoço dela. Era Vita, a gata, metida dentro da jaqueta, só a cabeça de fora. Patrícia usava aqueles mesmos óculos pesados do dia anterior, as hastes remendadas com esparadrapo. Tinha andado chorando, e repetia: − Como a mãe dela, igual à mãe dela. Bem no dia da estréia do show. Sem querer parecer cínico, lembrei: − Quando eu era mais moço os artistas costumavam fazer esse tipo de coisa, chamava-se golpe publicitário. Os cantores eram assaltados, as atrizes arrebentavam a alça do sutiã nos bailes de carnaval, coisas assim. Hoje acho que se chamaria jogada de mídia. Vita miou educadamente, reconhecendo o ambiente. Patrícia bateu com força o capacete em cima da mesa. Mas não havia mais nada sobre ou fora dela que já não estivesse meio quebrado naquele apartamento. Ela estava séria: − Não fala assim, é verdade. Márcia anda muito louca, cheirando demais, faz uns três dias que não dorme. Só fuma e cheira. De repente toda essa história sobre o desaparecimento da mãe. De repente ela resolveu fazer a mesma coisa, sei lá. Electra, Alceste, Ifigênia: qual seria esse complexo? − Você já avisou a polícia? − De jeito nenhum. Tem droga na roda, sujeira. − Falou com mais alguém? − Umas pessoas, uns amigos. Ninguém sabe nada. − E por que você me procurou? Muito alta e magra, instável como se pudesse cair a qualquer
momento, ela andava de um lado para outro, apertando Vita dentro da jaqueta. − Você parece um cara legal. E jornalista deve saber o que a gente faz numa hora dessas. − Avisa a polícia, eu acho. − Não! − ela gritou. Sublinhando o grito, Vita tornou a miar. − A polícia não. Drogas pesadas, Esquadrão da Morte, queima de arquivos, Cartel de Medellin. Márcia flutuando no rio Pinheiros, a espuma branca da poluição entre seus cabelos, quase tão branca quanto eles, um sapo pousado sobre a borboleta tatuada entre seus seios. No velório, uma coroa de flores em forma de guitarra elétrica, as Vaginas Dentatas cantando o backing vocal de meus heróis morreram de overdose. Procurei um espaço vazio na mesa, bati na madeira. E comecei a ficar preocupado. − Não sei o que eu poderia fazer. Só me ocorre esse tipo de coisa: polícia, hospital, necrotério. Patrícia sentou no sofá embaixo da janela, puxou o zíper da jaqueta, Vita saltou para fora. O rabo eriçado, começou a investigar o apartamento. Patrícia cruzou as pernas, enfiou o rosto nas mãos. A aflição era real, mas eu não queria acreditar naquela história. Estratégia, repeti, estratagema. De repente lembrei de Jayne Mansfield nos bailes do Copacabana Palace, eu era muito antigo. Ou não havia mais estrelas como antigamente. Patrícia levantou a cabeça: − Me dá um cigarro. − Você não fuma. − Como é que você sabe? − Eu sou um sujeito muito observador. Ela pegou na minha mão, seus dedos frios. Vita fuçava papéis em cima da mesa.
− Por isso mesmo procurei você. Por favor, me ajuda. Na entrevista de ontem, Márcia não falou nada estranho? Tirei minha mão. Acendi o seu cigarro, acendi outro para mim. Por trás dela, anoitecia. − Falou uma porção de coisas. Todas estranhas, mas nada - nada além, pensei, nada além de uma linda ilusão. Tive vontade de ligar o rádio outra vez. Mas Dulce Veiga já devia ter parado de cantar. Patrícia levantou-se, arrancou Vita de cima da mesa, voltou a sentar. Olhou o relógio, um desses digitais de mergulhador submarino. Enorme, cheio de botões. − Quase sete horas. Ela já devia estar no Hiroshima. Precisamos conferir a luz, o som, uma porção de coisas. Você acha mesmo que ela quer repetir a mesma história de Dulce Veiga? Ismênia. Clitemnestra, Jocasta; meu repertório grego não era tão vasto assim. Ajoelhei na frente de suas pernas de Cyd Charisse, dentro dos jeans rasgados e das botas, tipo Maria Schneider. Mas não me impressionava muito aquele texto dito de olhos desorbitados & voz trêmula como Meryl Streep. E por que, afinal, ela não pegava o telefone e não ligava para o tal Hiroshima, para Alberto Veiga, para mil lugares? Ficamos fumando em silêncio. Por um momento tão longo que, se não houvesse aquele campo elétrico em torno do corpo dela, talvez eu pudesse descansar a cabeça em seus joelhos e, enquanto ela afagava meus cabelos, contar ou ouvir alguma picante história de Bloomsbury. Como se adivinhasse meus pensamentos, Vita jogou-se no chão e esfregou as costas nas minhas pernas. Talvez pudéssemos também procurar Jandira, que diria algo tipo "a pequena chama do Apocalipse apagou-se antes do incêndio começado", ou contaria a lenda de algum orixá que, quando o palco está armado, transforma-se em raio laser e sai voando entre os edifícios. Quase no escuro, Patrícia começou a chorar. O neon da funerária
acendeu lá fora, Vita olhou para cima, seus olhos brilharam feito dois faróis. A luz verde de neon brilhava sobre os cabelos despenteados de Patrícia, e não parecia Virginia Woolf assim, mas um adolescente andrógino, perdido e apaixonado. E eu gostava dela, merda, sempre acabava gostando das malditas pessoas e todas as suas loucuras. Talvez por isso, por gostar dela e querer ajudá-la, compreendi de repente aquilo que qualquer outro menos idiota teria compreendido desde o primeiro momento. Patrícia estava apaixonada por Márcia. Apaixonada como uma louca. No mesmo momento em que percebi isso, talvez porque parecêssemos os dois irreais e frágeis naquela luz, naquela situação, no mesmo momento tive certeza absoluta de que ela escondia algo. Estendi a mão, toquei de leve seu queixo pontudo. − Patrícia, escuta. Ela fungou. Armei minha mais profunda voz de Homem Maduro & Compreensivo, Embora Fatigado das Loucuras da Juventude: − Se você confia mesmo em mim, é melhor contar logo tudo. Se não nós vamos ficar aqui parados, olhando a cara um do outro até amanhã de manhã. E não vai acontecer nada. O máximo que eu posso fazer é pedir uma pizza, umas cervejas e botar um som. − Certo − ela disse. − Certo o quê? − Eu confio em você. − Então conta tudo. Ela jogou a ponta do cigarro pela janela. Pela primeira vez desde que tinha entrado, olhou nos meus olhos. Tirou os óculos embaçados, apoiou o braço nas costas de Vita e esfregou os olhos. Ficaram ainda mais vermelhos, mais assustados. − Acho que sei onde ela está. Por um segundo louco, uma das mãos no queixo de Patrícia, outra no
dorso de Vita, em alta velocidade, pensei assim − Dulce, ela sabe onde anda Dulce Veiga, e me contaria tudo, eu avisaria Rafic, Castilhos, todo mundo, faríamos uma grande matéria de primeira página, eu levaria Dulce a todos os programas de tevê tipo "esta é a sua vida", Rafic ganharia rios de dinheiro, potes de prestígio, se elegeria deputado, senador, qualquer coisa, talvez me conseguisse um cargo qualquer no exterior, talvez em Tirana, na Albânia, onde durante o inverno, no frio dos Bálcãs, eu voltaria enfim a escrever poemas, bons poemas desta vez, talvez epopéias, como um rapsodo, e talvez um dia recebesse uma carta de Pedro, marcando encontro em Ibiza, Alexandria ou Volterra, e. − Onde? − Não posso contar, eu prometi. Se contar, Márcia me manda embora. Ela soluçou alto, depois gemeu: − E eu não posso viver sem ela, entende? Sacudi devagar seu queixo, estava molhado de lágrimas. Ela enfiou as unhas roídas no pêlo da gata. O miado de Vita, desta vez, era quase um uivo. Seu pêlo estava todo eriçado. − Ela fica nervosa com a lua cheia. − Conta logo tudo o que você sabe. Ou então vá embora e me deixe em paz. Em voz baixa, como se tivesse medo que alguém mais, além de mim, pudesse ouvi-la, Patrícia disse: − Uma casa, uma casa muito velha no Bom Retiro. Acho que é uma pensão, um cortiço. Desde que moramos juntas, desde que ícaro morreu e eu vim para São Paulo, Márcia vai lá quase todos os dias. Leva sempre comida, remédios, às vezes roupas. Roupas de mulher. Uma vez eu a segui. − Quem mora lá? − eu estava gritando. − Quem mora lá, Patrícia? − Eu não sei, eu não vi, eu não entrei. Fiquei só na rua, espiando. Márcia descobriu, não sei como. Ela me fez prometer que não faria isso nunca
mais. Que não contaria para ninguém. Que era um segredo, ela disse, um segredo horrível. Levantei de um salto. Quase ao mesmo tempo, toda arrepiada, Vita pulou do colo de Patrícia, atravessou o apartamento e ficou dando voltas em frente à porta, arranhando a madeira como se quisesse sair imediatamente para a rua. Patrícia também levantou. − Você acha − ela gaguejou −, você acha que. − Só pode ser − eu disse, meu coração disparado. − Só pode ser ela. Nem eu nem Patrícia precisávamos pronunciar aquele nome. E quando saímos, mesmo não dito, tive a impressão que ele permanecia vibrando, sozinho no apartamento, pulsante como uma coisa viva dentro da luz verde da funerária. 41 Os pneus guincharam na curva da igreja, perto da Estação Tiradentes. Vita miou esganiçado. Sem respeitar o sinal, Patrícia dobrou no meio dos ônibus, alguns garanhões gritaram num bar, e precisei me agarrar na cintura dela para não cair. Durante muito tempo, ela rodou por ruazinhas apertadas, sujas, cheias de casas de comércio, depois parou em frente a um velho portão enferrujado. − É aqui − ela disse. − Foi nesta casa que Márcia entrou, naquele dia. Pulei da moto, olhei para dentro. Ervas daninhas brotavam entre as gretas do caminho de cimento manchado de umidade que levava até os degraus roídos pelo tempo. Entreaberta, a porta de pintura verde-escuro − verde fundo, pensei, verde-musgo como a poltrona de Dulce Veiga − deixava ver um sofá de plástico laranja, com um quadro de Iemanjá por trás. Atravessei o caminho, subi os degraus, fiquei parado de frente para Iemanjá. Os braços estendidos à frente do corpo, as mãos abertas para mim, ela pisava descalça sobre águas que pareciam lodosas sob a capa de sujeira que cobria o
quadro. De dentro da casa, por um corredor estreito, vinha um cheiro de cebola frita, repolho cozido. Não havia ninguém à vista. Tive vontade de entrar por aquele corredor, mas lembrei de Patrícia. A cara de Vita escapando pela gola aberta do blusão de couro, ela continuava parada ao lado da moto. − Você não vem? Ela batia o capacete nos joelhos, indecisa: − Vai você, eu não tenho coragem. Está bem, falei. Estava disposto a resolver sozinho mesmo aquele mistério quando, de repente, ouvi um miado estridente e uma chispa peluda passou correndo entre minhas pernas. − Vita − Patrícia gritou. − Vita Sackville-West, volte já aqui. Correu atrás dela, esbarrou em mim, quase caímos em cima do forro furado do sofá laranja, de onde saíam uns tufos de palha. Patrícia entrou pelo corredor no encalço de Vita. No corredor de números pintados em tinta branca nas portas fechadas, ficou mais forte o cheiro de fritura, comida azeda, roupa suja, miséria. Do alto do teto de madeira pendia uma lâmpada pendurada num fio, mas a luz amarelada era insuficiente para clarear o corredor inteiro. Não conseguíamos ver a gata. Patrícia apertou meu braço. Por trás de uma das portas uma criança começou a chorar. Quase no fim do corredor, muito quieta, Vita estava sentada em frente a uma porta. A de número oito, eu vi, quando Patrícia ajoelhou-se para pegá-la nos braços. De dentro do quarto, vinha o som de música, a voz de alguém cantando uma música familiar, embora misturada ao choro da criança, às descargas abertas dos automóveis na rua, à respiração ofegante de Patrícia, às batidas do meu próprio coração. Colei o ouvido na porta, tentando ouvir melhor. E quando reconheci a música, quase sem poder me controlar, pensei em dar a volta, atravessar aquele corredor, dar as costas à imagem de Iemanjá,
tomar um táxi, ir até em casa, jogar algumas coisas dentro da mochila e partir para qualquer lugar, bem longe dali. No meio da fuga que eu não me atrevia, era tarde demais, reconheci a voz e a música. Era Dulce Veiga. Por trás da porta fechada daquele cortiço sórdido, era a voz de Dulce Veiga cantando Nada além. No colo de Patrícia, os olhos de Vita faiscaram na penumbra, violeta como os de Liz Taylor. Imóveis, as duas olhavam para mim. Por todos os filmes que eu vira, e eram milhares, por todos os livros que eu lera, por tudo que tinham me ensinado sobre como um homem deve comportar-se nessas situações e essas coisas todas − por muitas coisas mais, enfim, eu não podia simplesmente dar as costas e sair correndo, deixando as duas ali paradas, sozinhas, fêmeas, indefesas. Meu Deus, pensei. Eu não pensava em Deus fazia tempo. Levei a mão ao trinco. Um trinco antigo, de metal. Parecia morno, viscoso. Talvez fosse a palma suada da minha mão. Contei mentalmente até três. Abaixei o trinco e, sem ruído, abri a porta. De costas para nós, no centro do quarto, estava uma poltrona de veludo verde. Caída no alto da poltrona, inclinada para fora de uma daquelas abas na altura de quem está sentado, havia uma cabeça loura de mulher. Seus cabelos eram lisos, despenteados, repartidos ao meio, cortados na altura do queixo. Não podíamos ver o rosto dela, apenas a cabeça, parte dos ombros e um braço. Jogado sobre o veludo verde da poltrona, naquela luz amarelada, a pele do braço estendido tinha uma tonalidade doentia, quase amarela também. Na palma da mão voltada para cima, as unhas vermelhas estavam cravadas no monte de Vênus. E na altura do cotovelo, acima das unhas vermelhas, do pulso seco, latejava uma veia. Era essa veia que Márcia massageava, ajoelhada aos pés daquela mulher, segurando uma seringa no ar. Como se falasse com um bebê, repetia coisas que eu não conseguia ouvir, provavelmente coisas doces. Carinhosas,
sedativas, hipnóticas. A mulher retorcia-se na poltrona, abrindo e fechando a mão até que a veia saltasse mais, estufada. Longe, no corredor, a criança gritou mais alto. Márcia não desviou os olhos. Curvou-se devagar sobre o braço da mulher e, concentrada, toda vestida de preto, como uma enfermeira às avessas, uma enfermeira da treva, enfiou a agulha naquela veia. A mulher parou de debater-se. Márcia pressionou a seringa, injetando o líquido. Os cabelos louros tombaram sobre o veludo verde. Eu quis entrar, naquele momento, interromper aquela cena medonha. Patrícia segurou a ponta da minha camisa. Parado na porta, olhei em volta. As paredes estavam quase inteiramente cobertas por capas de revistas e reportagens com fotos de Dulce Veiga de vinte, trinta anos atrás. Além da poltrona verde, havia no quarto também uma cama de ferro antiga, com lençóis encardidos, embolados, e um guarda-roupa de porta aberta, mostrando vestidos fora de moda, echarpes em frangalhos, sapatos, chapéus. Ao lado da janela fechada, sobre a penteadeira, entre algumas maçãs, potes de creme e vidros de perfume, um toca-discos portátil girava no prato um velho 78 rotações. Arranhada e falha, a voz de Dulce Veiga cantava seu último sucesso. Márcia puxou a seringa. Uma gota de sangue espirrou no ar. Com algodão, ela começou a desinfetar o braço da mulher. O algodão ficou vermelho de sangue. Márcia apanhou outro chumaço, comprimiu-o contra a veia. Mais ativo que a fritura ou a sujeira, flutuava no ar um outro cheiro, adocicado, como o de amêndoas esmagadas. Os cabelos louros da mulher balançaram, suspensos sobre o braço nu. Márcia suspirou, ergueu os olhos. Foi então que Patrícia largou minha camisa, Vita pulou miando para dentro do quarto, Márcia deixou cair a seringa e olhou para nós, apavorada. Antes que ela pudesse gritar ou fazer qualquer gesto, entrei no quarto. Pisando nos cacos da seringa, dei a volta na poltrona para ver de frente o rosto daquela mulher.
42 A segunda vez que vi Dulce Veiga, e foi a última, ela não estava sozinha. além do bebê, que só vinte anos mais tarde eu saberia que era Márcia, havia também um homem naquele apartamento de cortinam sempre fechadas na avenida São João. Foi tudo tão rápido, tão confuso, que mal condigo organizar as lembranças na memória, sem saber o que veio antes, durante ou depois. Eu havia voltado para apanhar algumas fotos, letras de música, talvez para conversar um pouco mais com ela, não lembro ao certo. Por alguma razão, o editor da revista não estava satisfeito, era meu primeiro perfil, e não estava bom. Toquei a campainha, um homem abriu a porta, um homem alto, olhos claros, usando uma camiseta de mangas cavadas muito suada. Os cabelos colados no rosto pelo suor, ele caminhava de um lado para outro jogando roupas e livros, principalmente livros, muitos livros, dentro de uma mala aberta no meio da sala. Lembro que ele abriu apenas uma fresta da porta, me olhou assustado por cima da corrente do trinco, como se tivesse medo de que fosse outra pessoa. E só quando eu disse quem era e o que queria foi que puxou a corrente, abriu a porta e me deixou entrar. Então eu a vi, pela última vez vi Dulce Veiga, mas não seu rosto. Dividindo a sala em duas, havia um arco de concreto, sem cortinas. Parado no espaço onde aquele homem jogava roupas e livros, percebi na outra sala a poltrona de Dulce Veiga voltada de costas para nós. De onde estava, via apenas seus cabelos louros caídos, despenteados, parte do ombro direito e um braço nu estendido sobre o braço de veludo verde. Da mão dela, pendia uma seringa vazia, na pele do braço brilhava um fio de sangue. Querida, o homem disse, como se não se importasse com aquilo, é o rapaz da revista, mas ela não respondia, você precisa cuidar da sua carreira, ele disse, ainda mais agora que eu tenho que ir, mas ela não se movia, diga onde está que eu entrego a ele, mas ela continuava sem responder, imóvel na poltrona verde. Enquanto o homem falava, sem parar de jogar coisas dentro da mala, olhando para lá, para onde Dulce Veiga estava, eu via também o berço da menina, coberto por um pano indiano, suspenso como tenda, a mesinha de tampo de mármore, e em cima dela, entre maços de cigarro e alguns papéis, várias ampolas, gaze, algodão, um frasco de álcool. O
homem continuava a falar. Dulce não se movia. Delicado então, mas firme, ele começou a me empurrar em direção à porta, dizendo que voltasse depois, outro dia, que tinha pressa, precisava viajar, que Dulce não estava bem, que não havia tempo, nem um minuto, ele precisava viajar, fugir, urgente. Quando abriu a porta para que eu saísse, o bebê começou a chorar. Por trás dos ombros dele, ele era muito alto, ele era muito forte, eu vi Dulce tentando levantar-se da poltrona, sem conseguir, e antes que eu saísse para o corredor ela o chamou com uma voz que parecia vir de longe. Muito mais longe que a extremidade da porta onde estávamos, do outro lado do mundo. De outro mundo, ela o chamou. Saul, ela disse, ela pediu sem forças, Saul, olhe a menina. O homem me deixou parado na porta, caminhou até o berço, embalou-o suavemente, enquanto a menina parava de chorar, e quando finalmente parou, ele acariciou devagar os cabelos de Dulce, depois tirou a seringa das mãos dela, com cuidado, como se fosse uma arma carregada e pudesse disparar. Para não feri-la, colocou-a sobre a mesa de mármore. O homem voltou até mim, repetindo que eu precisava ir, que ele também precisava ir, antes que os homens chegassem, e foi se aproximando, ele estava muito suado, ele tremia, eu podia sentir o cheiro de suor limpo dele e ver bem de perto seus olhos, que não eram exatamente verdes, mas de um castanho muito claro, deviam ficar verdes quando o sol batesse de frente neles, mas não havia sol ali dentro, as cortinas sempre fechadas. Eram olhos de medo, olhos de horror os olhos do homem muito perto de mim, brilhando no escuro. Ele segurou meus ombros, falou que eu tomasse cuidado, que eu era muito jovem, que não contasse a ninguém que ele estava ali, que eu publicasse a entrevista e dissesse para todos lerem que Dulce Veiga era uma grande cantora, a melhor de todas, do mundo inteiro. Com seus olhos de urgência e pânico, o homem passava a mão no meu rosto, repetindo essas coisas com uma sombra de tristeza, ou desespero, ou despedida na voz, e foi chegando muito perto, cada vez mais perto do meu rosto, e de repente curvou-se, me apertou contra ele, me beijou na boca. A menina tornou a chorar no berço, Saul, Dulce chamou-o outra vez, Saul, a menina. Ele me empurrou para o corredor, bateu a porta. Apertei o botão do elevador, devo ter passado a mão na boca, sentindo o gosto suado de sal da boca daquele homem, devo ter
passado muitas vezes a mão na boca, não como se sentisse nojo, apenas tocando, investigando o que fora levado ou ficara nela, sem compreender nada daquilo, eu era muito jovem, eu não Sabia de nada. Não lembro se foi quando o elevador chegou lá embaixo ou se quando abriu a porta no andar onde eu estava, não sei mais o momento exato em que do elevador antigo, porta de grades, saíram quatro ou cinco homens apressados, vestidos de terno, um deles tinha uma arma na mão, e me jogaram contra a parede. 0 apartamento da cantora, perguntaram, o guerrilheiro, onde mora Dulce Veiga, o terrorista, onde é a casa daquela puta, daquele comunista, e sem saber direito o que significava aquilo, era tudo rápido demais, eu não tive culpa, eu falei o número,sem querer, acho que era setenta, eu disse: é lá que eles moram. Os homens saíram correndo, eu fui embora. Não lembro quase mais nada, depois. Dentro do elevador, ou na saída do prédio, ouvi os homens dando socos e pontapés na porta do apartamento. Na rua, as pessoas falavam em voz baixa, passavam apressadas, olhando para o chão, fingindo não ver o carro do DOPS estacionado sobre a calçada, com homens armados em volta. Lá embaixo, na avenida São João, bem em frente àquele prédio onde, há vinte anos, antes de sumir no mundo, morou um dia Dulce Veiga. 43 Apesar do vestido de seda azul, dos sapatos de saltos altos e finos, das unhas pintadas de vermelho vivo, do colar de pérolas e dos cabelos louros exatamente iguais aos que Dulce Veiga costumava usar − aquela figura sentada na poltrona verde não era ela. Entre pontos pretos de barba, por trás da camada de maquiagem realçando as maçãs do rosto e alinha orgulhosa, quase dura do maxilar, para tornar a face falsa ainda mais semelhante à dela, sem muita dificuldade reconheci aquela pele morena e os olhos de pânico de vinte anos atrás. As pupilas dilatadas estavam fixas em mim. Em voz baixa, chamei seu nome: − Saul. Mas embora ele olhasse direto para mim, compreendi que não me via.
Nem a mim, nem a nada ou ninguém fora dele mesmo. Habitava outro mundo, talvez aquele mesmo de onde Dulce Veiga certa vez o chamara, enquanto preparava a fuga, para cuidar da menina, aquela mesma que cuidava dele agora. Sorria crispado, um fio de baba escorrendo do canto da boca, as pernas abertas, os dois braços de veias machucadas largados sobre o veludo verde. Como se navegasse no espaço, como se pilotasse uma nave espacial. Perdido em galáxias, a cabeça jogada para trás, as pálpebras azuis semicerradas, longe de nós e de tudo, sozinho no volante de sua loucura. Márcia caminhou até a penteadeira, desligou o som. No silêncio incômodo, parecia perfeitamente calma. Ou exausta demais para espantar-se: − Você o conhece? − Poderia mentir que não, como você mentiu − falei, e ela baixou os olhos. − Mas eu o vi uma vez. Há muitos anos, no apartamento de sua mãe. Patrícia recolhia os cacos manchados de sangue da seringa. Como se quisesse acarinhá-lo, Vita roçava lentamente o dorso contra as pernas do homem travestido de Dulce Veiga. A criança tinha parado de chorar. Pela porta aberta do quarto entrava o bafo azedo do corredor. − Eles eram muito − Márcia começou a dizer. Depois hesitou, passou a mão pela cabeça, eriçando os cabelos descoloridos. E repetiu, mais firme: − Eles eram muito amigos, Saul e mamãe. Ele não tem mais ninguém no mundo, só eu. − E por que exatamente você? − Isso é negócio meu. − Você podia ser presa por tráfico de drogas, sabia? Imediatamente me arrependi de ter falado. Como por encanto, de repente a calma ou o cansaço de Márcia desapareceram. Uma faísca percorreu seu corpo, e ela voltou à antiga forma possessa. As mãos na cintura, gritou: − Então me denuncia. Deve ter uma delegacia perto daqui, vai lá e me denuncia agora como traficante. Como ladra, como assassina. Como o que
você quiser, me denuncia agora. Me denuncia já. Como talvez, pensei amargo, como talvez, sem querer, vinte anos atrás denunciei Saul, e você nem sabe disso. Era horrível pensar aquilo. E eu não tinha culpa, queria me jogar aos pés de Saul, gritar feito um louco, mais louco que ele, rolando no chão, rangendo os dentes, que eu era muito jovem, que eu não sabia o que fizera. Vita miou espantada, olhando para nós. Patrícia colocou a mão no ombro de Márcia, explicou em voz baixa: − Fui eu que chamei ele. Não sabia o que fazer, você tinha desaparecido, o pessoal da banda está apavorado. Márcia afastou o ombro com tanta violência que os cacos da seringa na mão de Patrícia tornaram a cair no chão: − Você é uma idiota, tinha que contar coisas da minha vida ao primeiro desconhecido. Eu avisei que se fizesse isso você podia arrumar as malas e dar o fora. − O nosso show, a estréia − Patrícia gemeu. Perto de Márcia, ficava lamurienta e pedinte como uma menina mendiga. − Achei que era importante para você, só queria ajudar. − Há anos que você sempre quer me ajudar, e acaba atrapalhando tudo. Não foi você quem contou para Alberto que eu estava louca em Nova York? Me faz um favor: não tenta nunca mais me ajudar. Eu quero quebrar a cara sozinha, meu amor. Como quebrei, depois que ícaro morreu. De repente, sem ninguém esperar, Márcia jogou-se na cama e começou a chorar, o rosto enfiado nos lençóis encardidos. Em frente àquele morto-vivo travestido de outra morta-viva, como atores que não tivessem decorado o texto nem as marcas de um filme ou peça, talvez livro, de qualidade duvidosa, Patrícia e eu nos entreolhamos. Ela espiou o relógio de mergulhador submarino: − Já devíamos estar no Hiroshima.
Mas nós estamos lá, pensei. No meio do cogumelo atômico, no segundo da explosão, cegos e mudos com a luz horrível. Preso no espelho da penteadeira, havia um retrato da verdadeira Dulce Veiga. O tule negro de um véu cobria quase completamente seu rosto. Menos a boca de lábios finos, que ria para nós. Vita pulara sobre a cama e ronronava entre os cabelos de Márcia. − Talvez seja melhor vocês irem para o teatro − eu disse. − Depois a gente conversa. Então uma mulher apareceu na porta. Era gorda e lenta, muito morena, cabelos lisos de índia, buço cerrado. Parecia uma boliviana, uma ianomâmi. Embalava nos braços uma criança ranhenta, provavelmente aquela mesma que chorava. Espiou para dentro: − O que foi, dona Márcia? Ouvi uns gritos, o seu Saul está passando mal de novo? − Na poltrona, Saul soltou um gemido. A mulher riu, aproximou-se dele e falou para nós: − Ele é gozado, não gosta que a gente chame ele de seu Saul. Fica uma onça, só falta morder. Gosta que a gente diga Dulce Veiga, não sei por quê. − Não foi nada − Márcia fungou. − A estréia, o show − Patrícia disse. Saul tornou a grunhir. Até ele aquietar-se, a mulher ficou repetindo ritmado como numa canção: − Dulce, Dulce Veiga. Tudo bem, Dulce Veiga, tudo azul. A senhora está tão bonita hoje, dona Dulce. Márcia levantou: − Vamos embora. Eu tenho que cantar. And this how must go on, pensei. De que adiantaria não ter revelado o número do apartamento, a polícia naquele tempo sempre sabia de tudo. Márcia caminhava para a porta. Segurei seu braço. − Você tem que explicar uma porção de coisas. − Não tenho que explicar nada, porra. Não se meta na minha vida.
− Mas eu preciso saber. De repente, ela relaxou. − Está bem − disse, e puxou o braço, tão mansa que custei a acreditar. Tinha olheiras roxas sob os olhos muito verdes, dois vincos fundos ao lado da boca. A pele parecia gasta, seca. Quis abraçá-la, repetir que não tinha culpa, mas ela me empurrou sem raiva: − Depois, depois do show. Me procura no Hiroshima, a gente conversa. No meu ouvido, Patrícia perguntou baixinho: − Quem é esse homem? Não respondi, eu não podia. De certa forma, também não sabia. Márcia deu um beijo na testa de Saul, recomendou à mulher: − Se ele passar mal, dona Iracema, a senhora me liga. Qualquer hora, a senhora sabe onde me encontrar. A mulher com cara de índia estava parada ao lado da poltrona verde. Embalava a criança num dos braços, enquanto passava a outra mão na testa lívida de Saul. Você está linda, Dulce Veiga, dizia, em toda a minha vida nunca vi a senhora tão bonita como hoje. Feito um rastro prateado de lesma, da boca de Saul a baba continuava escorrendo sobre a seda azul do vestido. 44 Fiquei quase uma hora embaixo do chuveiro. Quando finalmente saí, me sentindo tão sujo quanto antes, lembrei que costumavam rodar o segundo caderno do jornal do dia seguinte por volta das dez horas. Eu poderia passar lá antes do show, levar a entrevista publicada para Márcia. Ou, sempre sonhara com isso, entrar na gráfica aos gritos de "Parem as máquinas! Parem as máquinas!". Mas não haveria nada de novo para imprimir. Anão ser talvez uma foto de Saul travestido de Dulce Veiga. E eu aos pés dele, cabeça enfiada em seus joelhos, numa Pietá bissexual: "Vinte anos depois, repórter chora o resultado de sua denúncia". Denúncia, não: deduragem ou traição faziam mais o
gênero Diário da Cidade. Dei um soco na cabeça, sossega, você não teve culpa, estava tudo armado. Ao sair, peguei algum dinheiro, coloquei dentro de um envelope e, como se quisesse comprar a simpatia dos orixás, enfiei por baixo da porta de Jandira. Desci as escadas perseguido por uma falange de Exus em fúria. A lua cheia subia por trás dos viadutos da Bela Vista. Enorme, redonda, amarela. Fui descendo a Rua Augusta, olhando vitrines, revistas, pessoas, chutando latas vazias, pedrinhas, somando mentalmente os números das placas dos automóveis. Se quisesse, eu poderia enlouquecer, sabia tantas histórias terríveis. Fácil seria também entrar no primeiro bar, beber até dormir, para acordar com a cabeça machucada por lembranças vagas de algum pesadelo. Quando vi o jornal, melhorei. Por cima da foto a cores de Márcia, Castilhos colocara um título de página inteira − Márcia E: tudo além. Atrás da blusa desabotoada, podia-se ver as cores de uma das asas da borboleta entre os seios dela. Era bonito, desafiador. O texto também parecia bom, apesar dos erros de revisão. Então meus ombros soltaram-se devagar, e me senti bondoso, me senti decente outra vez. Resolvi comprar rosas para Márcia. Rosas brancas, rosas da paz. E demorei tanto tempo para ir até o Largo do Arouche que, quando cheguei ao Hiroshima, já era quase meia-noite. Havia muita gente em frente ao cogumelo atômico de neon lilás. Passei a mão na boca seca. De certa forma, aquele beijo ainda ardia. Como se um pedaço da minha boca, durante todos aqueles anos tivesse ficado perdido, grudado na boca de Saul.
V SEXTA-FEIRA O LABIRINTO DE MERCÚRIO 45 O Armagedon propriamente dito, não havia dúvida, era ali mesmo. Na batalha final, amontoavam-se punks, darks, skin-heads, góticos, junkies, yuppies. Uma legião de replicantes, clones fabricados em série, todos de preto ou roxo, correntes, crucifixos, vendas nos olhos, tatuagens, cabeças raspadas, descoloridas, arrepiadas como cristas geométricas, assimétricas, tingidas de verde, vermelho, violeta. Todo vestido de branco, as rosas brancas nas mãos, eu era o mais estranho entre eles. Um caçador de andróides, disfarçado de anjo. Decidido, fui abrindo caminho até o bar. Dois ou três uísques derrubariam em poucos minutos aquela estranheza. Sobre as cabeças dos mutantes, os telões de vídeo reproduziam a imagem de Márcia e, enquanto tentava chamar a atenção do japonês do bar, ouvi a voz dela. Rouca, enfurecida, gemidos lancinantes da guitarra ao fundo: − Caiu, caiu a Grande Babilônia! Tornou-se recesso de demônios, prisão de todo espírito impuro e de toda ave impura e repelente, porque do vinho acre de sua luxúria beberam todas as nações, com ela prostituíram-se os reis do mundo e com seu luxo desenfreado enriqueceram os traficantes da terra! Ao fundo, em coro, intercalando as palavras, as Vaginas Dentatas gritavam ritmadas yeah, yeah, ela caiu. caiu a Grande Babilônia! Engoli o uísque de um trago só. Tinha gosto de chá de boldo, álcool retificado, sem açúcar. Márcia parecia em ótima forma embora, para falar a verdade, eu fosse mais do tempo que Maria Bethânia sacudia pulseiras no ar, recitando Fernando Pessoa: "Mora comigo na minha casa o rapaz que eu amo". Seria mesmo dele? Eu não
lembrava, podia ser Bivar, Fauzi Arap, Luiz Carlos Lacerda, mas podia também ser dele, não fora muito discreto, o tio, todos aqueles marinheiros peludos da Ode marítima, lembrei, um certo rapazinho lá em Londres, quando eu morrer, Dauy, aquele uísque era mortal, tudo isso me fazia pensar em Pedro, eu estava ficando bêbado mais rápido do que pretendia, depositei as rosas no balcão, os replícantes olharam como se fosse um buquê de vermes, meu Deus como o tempo passa, e quando a gente vê, de repente, um dia, o binômio de Newton final e realmente tornou-se mais belo que a Vênus de Milo. Pedi outro uísque, fiquei acompanhando a performance de Márcia. Era sensacional. A maquiagem branca acentuava o clima de decomposição urbana, as olheiras tinham sido acentuadas com sombra negra. Ela terminou o discurso apocalíptico com o punho cerrado erguido no ar − onde andará Angela Davis, pensei −, as tachas da pulseira de couro cintilaram sob a luz dos spots. Depois pegou a guitarra e, sem pausa, atacou um daqueles rocks que falavam em césio, peste bubônica, mercúrio, devastação nuclear, lixo atômico, ciclamato & ozônio. Buracos, claro. A platéia aplaudiu e dançava freneticamente: Márcia Felácio e as Vaginas Dentatas eram um sucesso. E pensei: esteja onde estiver, viva ou morta, aquilo devia fazer bem à alma de Dulce Veiga. Isso me deixou melancólico, eu não costumava pensar em almas, deste ou do outro mundo. Estava começando a me sentir muito só, e velho, e deslocado, e careta, precisando de pelo menos vinte horas de sono, quando alguém tocou meu ombro. Seria Patrícia, imaginei. Não, era Filemon. Uma lata de cerveja nas mãos, perfeitamente adaptado ao ambiente. Parecia feliz em me ver. − Nunca pensei encontrar você por aqui. − Muito menos eu. − Castilhos pediu uma crítica. Mas disse que só publica se eu falar bem. Perfeito: por trás dos panos, Rafic já começava a agir. Para a volta
triunfante da mãe, claro, seria estratégico primeiro atapetar bem o caminho da filha. Eu quase podia prever o dilacerante encontro das duas em algum programa de tevê ou capa de revista. Rafic entre as duas, a estrela em ascensão, a supernova, ao lado da estrela apagada. − Como se chamam as estrelas apagadas? − Hein? − Nada. Vai ser difícil você gostar. Este é um lugar do demônio. Filemon sacudiu a cabeça, também parecia um pouco bêbado. O brinco em forma de cruz balançou. − Ao contrário. Eu conheço bem a Márcia, ela é muito religiosa. Tudo isso é para glorificar o nome de Jesus. Na clínica, a gente só lia a Bíblia. Ah, pensei. E lembrei da dedicatória na capa do disco, qualquer coisa sobre caminhos de luz, atalhos de treva. Mais um enigma, suspirei exausto, bem-aventurados os doidos de pedra. Em cima do balcão, no meio das rosas, a mão de Filemon tentava tocar na minha. Encolhi os dedos, ele percebeu. Tentei disfarçar: − Filemon, Filemon. Que nome estranho você tem. − Coisas do meu pai, ele é terapeuta junguiano. − Deve ser ótimo ter um pai terapeuta. Você pode pirar de graça a qualquer hora do dia ou da noite - e tive vontade de pedir a ele uma receita de lexotan, a herança de Lídia fora dilapidada. − Escuta − ele disse, bem perto do meu ouvido, a boca vermelha no rosto pálido quase encostada na minha pele. Tive uma vontade quase incontrolável de beijá-lo outra vez. Era meio compulsivo, aquilo. Ou magnético, sei lá. Fluidos, odores imperceptíveis, vibrações. Que coisa era aquela que, independente da razão, atraía ou repelia as pessoas? − A gente precisa conversar. Eu fiquei pensando naquilo que aconteceu. Tirei o corpo: − Agora não, preciso ver o show.
− É lá embaixo, eu te mostro. Ele me puxou para o porão onde ficava o palco. Olhando sua nuca raspada, por entre anjos do apocalipse, monges loucos, sereias radioativas, reis destronados, profetas contaminados, bestas feridas, saltimbancos apáticos, pensei: ele quer saber por que o beijei. Naquele crespúsculo, depois da chuva, antes de Dulce Veiga desaparecer no Edifício Itália. Estranho impulso, eu poderia explicar. Nome de filme, Valter Hugo Khoury, perfume, folhetim erótico e vulgar. Estranho, estranho impulso já que, excluindo Pedro, eu não era homossexual. Mas poderia contar também − se tivesse coragem, se houvesse tempo, se valesse a pena − a história de Saul. A história do outro beijo, o beijo que Saul me dera. Como eu dera em Filemon, súbito, sem explicação. Uma espécie de maldição, passada de boca em boca. Naquele tempo, Saul devia ter a mesma idade que eu agora, e Filemon um ou dois anos mais do que eu tinha, então. Daqui a vinte anos, depois de loucas peripécias, um dia quem sabe Filemon me encontraria travestido de Márcia F., congelado no tempo, na frustração, batendo carreiras de pó. Era grotesco, mas eu não conseguia rir. Como uma estranha maldição, repeti mentalmente, no ritmo da música, passada de boca em boca. O segundo uísque não estava batendo bem. Parecia que eu tinha bebido cinco, fumado três baseados, cheirado sete carreiras. A descida para o porão pela escada de ferro em caracol, sem ar-condicionado, no meio dos gritos de yeah, yeah, caiu a Grande Babilônia que intercalavam todas as músicas, parecia literalmente uma descida aos infernos. Tropecei de repente, e esbarrei em Jacyr. Estava vestido de homem, calças pretas de couro, muito justas. Deu um gritinho, apontando Filemon: − Muito bem acompanhado, hein, bofe? Um colega de jornal, tentei explicar. Minha roupa branca encharcada de suor, as rosas brancas manchadas pela tinta preta do jornal. Filemon enfiava-se pelo meio dos andróides, pós e prés − o único durante era eu −,
tentando aproximar-se do palco. Fui atrás dele. Jacyr gritou, por trás dele vi o crioulo rastafari: − Estou torrando a grana que você me pagou − ajeitou o xale invisível nos ombros, apontou para o palco. − Em homenagem à deusa. Ela é mulher, mas merece. Quando consegui chegar perto do palco o show tinha terminado. O público pedia bis, as luzes apagaram, batiam palmas gritando por-que-parou-parou-por-quê, Filemon me estendeu sua lata de cerveja, meu uísque tinha acabado, bebi mais, as luzes do palco tornaram a acender. Filemon chegou mais perto, eu gosto tanto de você, ele disse no escuro, eu fiz que não ouvi, Márcia entrou outra vez e, no meio dos gritos e aplausos, quando pensei que fosse chamar também as Vaginas Dentatas para atacar Nada além ou algum rock contaminado, ela pegou o violão, sentou num banquinho, puxou o microfone e disse: − Minha mãe, Dulce Veiga, era uma grande cantora. Há vinte anos ninguém sabe onde ela anda. Ela deixou alguns poemas, entre eles este, que eu musiquei. Onde quer que ela esteja, dedico a ela esta canção. Chama-se Poltrona verde. Sentada no banquinho, pernas cruzadas, joelhos redondos sob a minissaia de couro, parecia Nara Leão, em ritmo de bossa nova, muito perto do microfone, apenas um spot sobre ela, Márcia cantou baixinho: − "Aqui sentada, abandonada, contemplo o mundo imundo, o tudo e o nada. assim perdida, alucinada sobre o veludo verde desta poltrona, apaixonada por tudo e nada, navego em sedas,
me perco em mares, eu tão distante do mar da vida, farta de amores, cheia de bares. Aqui sentada, incendiada, contemplo o mundo tão vagabundo, o nada e o tudo. Veias feridas, aqui parada, quase afogada na lama verde, veludo mudo, poltrona vida, única amiga da longa estrada, que me aceitou e me deixou: aqui sentada, iluminada. Contemplo o mundo, o mal, o bem, o tudo, o nada e o mais além". Deixa eu cuidar de você, Filemon sussurrou no meu ouvido. Não respondi. Pelo menos metade da legião de replicantes subia as escadas vaiando, perplexos com a traição heavy-metal. Muito segura, Márcia caminhou sorrindo até a beira do palco, estendeu a mão para mim e chamou: − Vem cá, vamos conversar. 46 Ameaçadoras, as Vaginas Dentatas cercaram Márcia aos gritos. No meio delas, muito pálida, enxerguei Patrícia. A japonesa brandia no ar o baixo elétrico, feito uma espada samurai: − Traição, traição. Você devia ter chamado o grupo todo no palco. Só você quer aparecer, sua naja? Como se não ouvisse, Márcia entrou no camarim, me puxou para
dentro, bateu a porta, passou a chave, tirou a blusa e enrolou-se numa toalha antes que, outra vez, eu tivesse tempo de rever a borboleta entre seus seios. Começaram abater na porta. Por entre gritos e batidas, uma voz de mulher começou a cantar ao longe. Parecia Madonna. Estendi as rosas meio despetaladas, manchadas de preto, e o jornal com a entrevista dela. No camarim apertado, pouco maior que um elevador, ficavam ainda mais ridículos. Ela olhou rapidamente, sorriu quase sem mover os lábios: − Tudo além, muito bem. Tudo além de quê? Bebeu no gargalo de uma garrafa d'água. Depois acendeu um cigarro, sentou em frente ao espelho e ficou olhando para mim. Os olhos muito verdes no meio da tinta preta lembravam um pouco os de Vita. Sentei em frente a ela: − Por que você mentiu que não conhecia Saul? Ela virou o resto da água na própria cabeça: − Você o viu, não viu? Naquele estado, é melhor mesmo que ninguém saiba que está vivo. De que adianta, cara? − Seu pai também mentiu que não o conhecia. − Meu pai − ela baixou os olhos procurando um cinzeiro. Não havia nenhum. Bateu a cinza no chão e com uma espécie de ironia, ou desprezo, repetiu: − Meu pai prefere pensar que Saul nunca existiu. Você compreende, ele é um homem muito vaidoso. Deve ser difícil admitir que mamãe teve outros homens. Muitos outros. Alguém deu um pontapé na porta. Márcia equilibrou a ponta do cigarro na beira da mesa, entre outras manchas de queimado. Apanhou uma toalha, começou a passá-la pelo rosto. Misturada ao suor e à tinta preta que circundava os olhos, levada pela água, a maquiagem branca escorria aos poucos, deixando entrever a pele entre as riscas, como a máscara de um clown. − E como você soube dele? − Foi quando voltei de Londres. Uns amigos de minha mãe cuidavam
dele. − Que amigos? − Amigos, ora. Gente que você não conhece. Ninguém o suportava mais. Eu gostei dele, eu entendi a loucura dele. Afinal, já fui louca também. E continua, pensei, porque então, como se se ausentasse, como se deixasse o corpo ali sentado, molhado de suor, água, tinta, enquanto uma parte dela partia para outro lugar, entortou de leve a cabeça, depois levou uma das mãos até o pescoço e começou a acariciá-lo com as pontas dos dedos. Sem graça, eu parecia querer trazê-la de volta para aquele camarim escroto, falei: − Gostei do bis, é sua melhor música. Longe, ela continuava a acariciar o pescoço. Às vezes apertava suavemente, parecia apalpar alguma coisa. Redonda, pequena, imperceptível. − Mamãe deixou alguns poemas, deixou uns diários também. Nunca foram encontrados. Estou colocando música no que restou, talvez um dia faça um disco inteiro só com essas canções. Sua voz ficou tão baixa que quase não ouvi quando disse: − Mas não sei se vai dar tempo. − Claro que sim, por que não? − Você não está entendendo. Eu menti outras coisas, também. Como se falasse à criança antiga, no apartamento da São João, perguntei: − E o que foi que você mentiu, Márcia? Não respondeu. Entre seus dedos frios, de unhas curtas, pintadas de preto, apanhou meus dedos e, curvando mais a cabeça, levou-os até seu pescoço, fazendo-me tocar no mesmo ponto onde tocara antes. Estendi os dedos sobre sua pele. Por baixo dela, por trás das riscas de tinta, gotas de suor e água, como sementes miúdas, deslizando ao menor toque, havia pequenos caroços. Senti minha mão tremer, mas não a retirei. Circundei-os, apalpei-os levemente. Ela fechou os olhos. Eram grânulos ovalados, fugidios.
Exatamente iguais aos que haviam surgido, há alguns meses, no meu próprio pescoço. Não só no pescoço, nas virilhas, nas axilas. − Em outros lugares também − ela disse. − Estão espalhados pelo corpo todo. Tenho medo de procurar um médico, fazer o teste. − Subitamente abriu os olhos, quase colados nos meus, e perguntou: − Você é homossexual? Lembrei de Pedro. Retirei os dedos. − Não sei. Márcia endireitou a cabeça: − Eu também não sei direito, às vezes eu, Patrícia, você sabe. Mas é estranho não saber. Acho que ninguém sabe. Deve ser mais confortável fingir que sim ou que não, você delimita. Mas acho que aqueles que acham que são homossexuais compreendem melhor essas coisas. Eu vi você com Filemon, ele gosta de você. Sem se mover, ela remexeu na bolsa pendurada na cadeira. Apanhou um pacotinho de papel vegetal, virou o conteúdo em cima da mesa. Entre as manchas de queimado de inúmeros cigarros, com uma gilete, começou a esmigalhar os grãos brancos. E disse: − Ícaro morreu de aids. E eu acho que estou doente também. Do lado de fora tornaram a bater, gritaram mais alto. Encostei na porta, como se quisesse protegê-la das pessoas que batiam. Através da madeira, podia sentir as vibrações, feito socos nas minhas costas. − Vão derrubar a porta. − Podem derrubar. Sei muito bem como lidar com essa gente. − Você quer que eu abra? Curvada sobre a mesa, com aponta fina de uma espátula em forma de espada, ela desenhava alguma coisa com as fileiras de pó branco. No cabo da espátula, de perfil, havia a cabeça dourada de uma águia. Igual às águias de Rafic, pensei vagamente. O anel, o isqueiro, a carteira. Devia ser apenas
coincidência. − Se você quiser, para abrir uma porta, basta virar a chave. Ou você ainda quer saber mais alguma coisa? − A poltrona. Aquela poltrona de veludo verde de Saul, é a mesma de Dulce Veiga? Ela terminou de desenhar, afastou a cabeça para ver melhor. De onde eu estava, não era possível ver nada. Apenas seus cabelos descoloridos, molhados. Com a ponta da espátula, retocou alguma coisa, depois voltou para mim os olhos espantados, inocentes: − Poltrona, que poltrona? É só uma poltrona velha, caindo aos pedaços. Não sei de quem era. Que importância pode ter isso? Nenhuma, pensei. Ou quis pensar, precisava sair logo dali. Definitivamente, eu era um fracasso como detetive. Abri a porta. A voz de Madonna pulou para dentro do camarim Material girl. Junto com ela, as três Vaginas Dentatas, mais um bando de gente, todos falando ao mesmo tempo. Patrícia fingiu não me ver, alguém abriu uma garrafa de champanha com estrondo. Soberana no meio de todos, Márcia sorria imóvel, estendendo a nota enrolada para suas súditas. Antes de atravessar o palco para alcançar a pista cheia de gente e sair para a rua, evitando encontrar Filemon, parado na porta, consegui decifrar o desenho que Márcia fizera com o pó, no tampo da mesa. As linhas finas, alongadas, irregulares e trêmulas como as de um ideograma chinês ou japonês, traçado a pincel e nanquim, tinha mais ou menos esta forma:
47 Torii. Alguém certa vez me dissera que se chamavam assim os arcos vermelhos da Liberdade, na Rua Galvão Bueno. Embaixo deles, longe da agitação do Hiroshima, toquei em meu próprio pescoço, como tocara antes em meus lábios. Continuavam lá, os gânglios. Esquivos, arredondados, exatamente iguais aos de Márcia. Lembrei então daquela noite em que encontrara um cartão-postal sob a porta, algumas semanas depois que Pedro desapareceu. Todo dourado, como ele, devia ser outono em Paris, mas o cartão não tinha selos, não vinha de lá. À beira de um rio, sob uma árvore, havia um homem sentado sozinho, a cabeça baixa. Nas costas, logo abaixo da inscrição Pont Neuf Aur la Seine: Mélancolie, com sua letra torta, meio infantil, Pedro escrevera: "Não tente me encontrar. Me esqueça, me perdoe. Acho que estou contaminado, e não quero matar você com meu amor". Mas já matou, pensei naquele dia. E outra vez agora, embaixo dos arcos vermelhos da Liberdade, como pensara em todos os dias depois daquele dia em que ele desaparecera, e nos meses seguintes, sem me atrever a procurar um médico ou fazer o teste que poderia confirmar as suspeitas, apalpando meu corpo inteiro em busca dos sinais amaldiçoados, suores noturnos, manchas na pele, voltei a pensar − mas já matou. No entanto, eu continuava vivo. A meus pés, embaixo e em volta do viaduto, a cidade brilhava sob a lua cheia. Senti vontade de estender a cabeça em direção a ela e começar a uivar. 48 De cima, de longe. No terraço de um edifício, na beira de um viaduto, a bordo de um avião, nada é claro, eu olho para baixo, para o centro de algo
que parece um labirinto, uma elipse. Círculos concêntricos movediços, devoradores. Alguém me empurra pelas costas, eu tento inutilmente segurar em alguma coisa. Na amurada do edifício, na porta aberta do avião. É mais seguro permanecer aqui. De cima, de longe. Voltam a me empurrar, com mais força. Eu caio girando no espaço. Acordei antes de tocar a terra. Girando como meu corpo durante a queda, as palavras continuavam na minha cabeça. De cima, de longe. Mais de meio-dia, as palavras não iam embora. Preciso viajar, pensei, preciso ver todas essas gentes, todas essas coisas assim. De cima, de longe. Lembrei do oferecimento de Rafic, "passagens, no balcão do aeroporto, a hora que você quiser", e decidi ir ao Rio falar com Lilian Lara. Quase certo de que seria inútil mas, afinal, ela fora a última pessoa a ver Dulce Veiga. 49 Uma mulata de guarda-pó azul e touca branca abriu a porta. − O senhor é enfermeiro? − Não, sou o jornalista que ligou. − De São Paulo? − É. − A gente nota pela cor. Eu não disse nada. Ela mandou que esperasse na sala, dona Lilian já vinha, desapareceu no interior do apartamento. Era uma cobertura no Posto Seis, de frente para o mar. Havia dois ambientes com sofás, muitos quadros, nem tão ruins quanto os de Rafic, e uma infinidade de objetos de decoração tipo veados de cobre, cães dálmatas de louça, elefantes de mármore, coisas assim. Pelas vidraças abertas para o mar entrava o bafo do verão, uma luz tão clara e tropical que, olhando as folhas das palmeiras lá embaixo, recortadas sobre o verde das águas, a curva de Copacabana perdendo-se na ponta do Leme, voltei a ter a mesma sensação de sempre ao chegar no Rio de Janeiro.
Ao fundo, numa trilha sonora que só eu ouvia, eternamente Gal Costa cantava Aquarela do Brasil. "O meu Brasil brasileiro", cantei na cabeça: "terra de samba e pandeiro." Olhei minhas próprias mãos, voltou também a outra sensação que eu sempre tinha no Rio. Naquela luz excessiva, minha pele parecia branca demais, as unhas sujas, encardidas, a pele machucada em volta delas, dedos amarelados de cigarro e outras manchas, veias e ossos e pêlos nítidos demais. Cruzei os braços, fechei as mãos, apertei-as contra a camisa úmida de suor. Num canto da mesa de centro havia um objeto estranho, como uma caixa rasa. Era um jogo. Americano, japonês, não havia nenhuma indicação. Um labirinto em forma de hexágono, sobre um fundo preto, com uma gota prateada de mercúrio do lado de fora do labirinto, tudo coberto por acrílico transparente. Virei-o nas mãos, a gota de mercúrio bateu contra uma das paredes e partiu-se em três. Tornei a virá-lo, mais devagar. Uma das gotas partidas entrou no labirinto. Com movimentos cada vez mais suaves, consegui que ela começasse a deslizar pelos corredores, em direção ao centro. Das duas gotas que ficaram de fora, uma partiu-se em mais duas, outra entrou também pelo labirinto, escorregou de encontro àquela que já estava lá dentro e fundiu-se nela. − Gostou do jogo, meu bem? − perguntou uma voz de mulher, uma voz conhecida. Lilian Lara era uma mulher alta e magra, um lenço florido na cabeça, as pontas passadas em volta do queixo, depois amarradas na nuca. O lenço cobria as orelhas, parte das faces e da testa. Como se não bastasse, ela usava enormes óculos escuros, até a base do nariz arrebitado como o de uma menina. Estranho querer ficar incógnita dentro da própria casa, pensei. Depois lembrei de uma nota de Teresinha O'Connor sobre a operação
plástica. Levantei, o labirinto nas mãos. Sem perceber, eu estava ajoelhado ao lado da mesa. − Fascinante − eu disse. E mexi a caixa, uma das gotas fora do labirinto partiu-se em pelo menos dez outras. Ficaram brilhando sobre o fundo preto. Metálicas, quase invisíveis de tão mínimas. − Mas não é nada fácil, meu bem. Você tem que colocar a gota inteira bem no centro, sem deixar que ela se parta. Eu nunca consegui, não tenho paciência nem jeito para essas coisas. As mãos dela tremiam levemente, muito mais velhas que o rosto. Ou, pelo menos, que os centímetros visíveis de rosto entre o lenço e os óculos. Entediada, Lilian jogou-se no sofá, ajeitou a canga colorida sobre as pernas, apanhou um cigarro de uma caixa de prata e ficou esperando que eu o acendesse. Quando agradeceu, reconheci sua voz - era a mesma voz de Leda, que eu ouvia na televisão das velhinhas, no corredor do meu prédio. − Naturalmente você quer saber o final de Muralhas de sangue − ela soprava a fumaça pelas narinas hirtas, praticamente sem mover a boca pintada de vermelho, e inevitavelmente lembrei de Nelson Rodrigues, a grã-fina-de-narinas-de-cadáver: − O Brasil inteiro só quer saber disso, meu bem. Já está gravado, mas eu não posso contar. Sinto muito, está no contrato. Não posso sequer revelar se Leda volta para Rogério ou foge mesmo com Mário Sérgio. Estou autorizada a contar apenas que Eleonora entrega a carta que a absolve, e não admito fotos. − Não foi sobre a novela que vim falar com a senhora. − Ah, não? − ela estava surpresa. − Mas me chama de você, por favor. − É sobre uma pessoa que você conheceu. − Fala, meu bem. − Dulce Veiga − eu disse. As narinas de Lilian tremeram um pouco. Então, sem falar muitos nomes nem dar muitos detalhes, tentei explicar toda aquela história que nem
eu entendia mais. Enquanto falava, a mulata colocouno centro damesauma jarra com um líquido amarelo e cubos de gelo. Lilian serviu, brindou, provei: vodca com suco de laranja, muito doce. Recomecei a falar. Quando disse o nome de Saul, ela tornou a encher o próprio copo e com a maior naturalidade, como se todo mundo soubesse disso, lamentou: − Foi quem mais sofreu, coitado. Afinal, ele é o pai de Márcia. Quase pulei do sofá: − Quer dizer então que Alberto. − Imagina, meu bem. Eu acompanhei tudo isso bem de perto, ficamos grávidas na mesma época. Claro que Alberto e Márcia, aquela mau-caráter, se encarregaram de espalhar outra história. Devem morrer de vergonha. Alberto, de ser um corno. E Márcia, uma bastarda. O que aconteceu foi tristíssimo, meu bem. Dulce deixou Alberto para viver com Saul, que estava metido em mil complicações políticas. Você sabe, naquele tempo a barra era pesada. Não é como hoje, comunista virou trouxa. Saul foi preso, torturado, e quando saiu da prisão, meio louco, Dulce tinha desaparecido e Alberto mandara Márcia para bem longe. Aí ele foi parar num hospício, durante anos. Os olhos inocentes de Márcia, lembrei, o discurso teatral de Alberto Veiga: tudo mentira. Fiquei tão furioso que tive um impulso de levantar e ir embora, voltar para São Paulo, bater direto na casa, na cara de Márcia. Quase nem ouvia as coisas que Lilian Lara dizia, uma gente completamente louca, uma gente sem classe, uma gentalha, meu bem, não me admiro que a pobre Dulce tenha resolvido desaparecer para sempre, e ela tinha talento, era uma verdadeira artista, como eu. Cada vez mais exaltada, Lilian levantou, pegou uma caixa dentro de um armário. − Quando Dulce desapareceu − disse − nós estávamos fazendo um filme juntas. Eu peguei uns fragmentos, mandei montar este vídeo. É a última imagem dela.
Lilian colocou o filme no videocassete. Depois fechou as cortinas, pegou uma garrafa de vodca e virou dentro da jarra, os cubos de gelo meio dissolvidos na água amarelada do suco de laranja. Sentou do meu lado, tornou a encher o copo, o controle remoto entre as mãos velhas. O lenço um pouco torto, dava para ver a raiz grisalha dos cabelos e uma cicatriz vertical, ao lado da orelha. A canga escorregou, ela não se preocupou em arrumar. Ainda tinha belas pernas, rijas, queimadas de sol. O filme, em branco e preto, não tinha som. Dulce Veiga estava sentada numa poltrona, em frente a um homem de costas. Movia a boca, não se ouvia nada do que dizia. Ela sacudia um sininho no ar. Uma porta se abria e entrava Lilian Lara, quase irreconhecível, vinte anos atrás. Lilian trazia uma bandeja nas mãos, usava um uniforme semelhante ao da mulata que abrira a porta para mim. Colocava a bandeja na mesa, entre Dulce e o homem, curvava a cabeça e saía. Dulce servia dois cálices de licor. Estendia um para o homem e levava o outro até os lábios, com um sorriso vago. A imagem congelava num close daquele rosto. Belo, impenetrável, os olhos verdes semicerrados pelo sorriso um tanto cínico, um tanto cruel, o cálice cheio de licor quase tocando os lábios finos. Legal, eu disse. Lilian estava ocupada em encher outro copo. Encheu também o meu, mas não bebi. − Ela envenena ele. Dulce foi uma idiota em largar o filme. Ela era muito fechada, nunca se sabia direito o que estava pensando. E me deixou com aquela criança nos braços, ainda bem que Alberto levou logo. Mas aquele filme, ah que grande filme. E era um superpapel, o principal. Ganhamos um balaio de Sacis. Vertigem diabólica não é um belo título, meu bem? Ela não olhava para o vídeo. Começou a enumerar os prêmios, a fita continuava a correr. Depois de alguns segundos sem nada gravado, entrou outra imagem. A princípio, parecia exatamente igual à anterior. Mas quando a
mulher sacudiu o sininho no ar e a câmera aproximou-se mais, percebi que, desta vez, ela não era mais Dulce Veiga, mas a própria Lilian Lara. E a empregada, uma moça completamente desconhecida. Subitamente Lilian endireitou-se no sofá, apertou um botão no controle remoto e a imagem desapareceu. − Espere − eu disse. − É só isso. − Eu queria ver a continuação, a troca das atrizes. − Ah, você viu? Pois é, quando Dulce sumiu, o filme tinha que continuar de qualquer maneira. O diretor me ofereceu o papel dela. Eu não queria aceitar, não sei. Mas eu estava apenas começando, era uma grande chance. Uma chance de ouro, meu bem. Eu ia insistir para ver de novo, quando uma moça alta entrou na sala. Usava biquíni, devia vir da praia. Com as cortinas fechadas, não vi direito o rosto dela. Lilian levantou-se, andou até a j anela e puxou as cortinas. A luz clara, um pouco mais suave na tarde que caía, pulou novamente para dentro da sala. Sobre a mesa, a gota do mercúrio brilhou na caixa do labirinto. − Querida, já pedi mil vezes para você usar o elevador dos fundos quando voltar da praia. Não quero essa areia nojenta cheia de vermes nos meus tapetes persas. − Não enche − disse a moça. Lilian apresentou: − Esta é minha filha. Chegou hoje de São Paulo, ela vive na ponte aérea. Tem uns segredos por lá, que não me conta. Eu olhei para a filha de Lilian Lara: era Patrícia. − Prazer − ela disse, estendendo a mão como se nunca tivesse me visto na vida. − Prazer − repeti. Aquilo era tão absurdo que, por segundos, duvidei que fosse mesmo Patrícia. Mas não havia dúvidas. Embora sem a fantasia heavy e os óculos, os cabelos empastados de sal e areia, era ela mesma. A ave
pernalta, Virginia Woolf de biquíni, queimada do sol de fevereiro. Patrícia sumiu dentro do apartamento. Lilian voltou a sentar, tirou os óculos escuros. Entre as bolsas arroxeadas, seus olhos estavam vermelhos, injetados de sangue. − Temos uma relação tão difícil − queixou-se. − Ela é muito rebelde, parece que me odeia. Às vezes penso que Dulce é que estava certa, quando sumiu e largou a filha no mundo. Só Deus sabe o que eu tenho sofrido com esta menina. De dentro vinha um barulho de gritos, portas batendo. Lilian levantou, foi ver do que se tratava. Além da espuma branca das ondas na praia, as águas do mar agora eram de um azul mais denso, quase negro. Sopradas pela brisa, as folhas das palmeiras moviam-se devagar. "Onde amarro a minha rede", cantarolei em silêncio, "Onde a lua vem brilhar." Brilhar ou brincar, eu não lembrava. Lindo e trigueiro, trigueiro era bonito: o meu Brasil. Sozinho na sala, sem que eu mesmo esperasse, de repente peguei o labirinto e enfiei no bolso. Quando Lilian voltou, perguntando se eu não queria beber mais, ficar para jantar, quem sabe, meu bem, mando buscar um caviarzinho, eu já estava em pé, pronto para sair. Ela tornou a encher o copo. Desta vez, direto da garrafa. 50 Na portaria do edifício, a vodca bateu. Enquanto respirava fundo a brisa do mar, cheguei a me apoiar na parede até que passasse a vertigem. Que não era diabólica, mas açucarada, enjoativa. Há mais de ano eu não vinha ao Rio, desde aquela vez que encontrara Pedro no metrô. Afastei Pedro da memória, e me espreguicei pensando em, quem sabe, subir até São Conrado para ver Vicente, ou descer até Laranjeiras, para visitar Jacqueline. Comecei a andar, procurando táxi ou ônibus. Havia sal e sexo soltos
no ar azulado do entardecer, tantos corpos aproveitáveis. Se eu não olhasse os mendigos e o lixo espalhados na rua, desviando os olhos por cima de todas as cabeças, no caminho do mar, do horizonte onde as ilhas mergulhavam na bruma, seria fácil imaginar que estava no Havaí. Seja aqui, abençoei, mas baixei os olhos mais do que devia. Do outro lado da rua, vestida outra vez com o uniforme de Vagina Dentata, Patrícia tomava água de coco, uma perna apoiada num banco de cimento. Inadequada como uma colagem punk sobre uma paisagem dos mares do sul. Atravessei em direção a ela. − O que é que você está fazendo aqui? − Eu é que pergunto: o que é que você está fazendo aqui? Seus cabelos estavam pesados de sal, repartidos ao meio e presos na nuca. Absurdo, nunca a vira tão parecida com Virginia Woolf. Ela ergueu o coco para as janelas do apartamento de Lilian. − Vim pegar energia. Tive uma briga horrível com Márcia ontem. − Jogou longe o coco, e imitou Lilian, repuxando o rosto com as próprias mãos: − Aquela bastarda, filha de um louco e de uma maluca... Ela odeia Márcia, não sabe que moro com ela. Acha que fico num hotel, que estudo literatura. Não se importa comigo. − Ninguém se importa com ninguém, meu bem. − Mas ela é minha mãe, você não contou nada a ela, não é? − Nada, não falei nada − ia dizer mais alguma coisa quando começou uma correria. Um carro de polícia parou, a sirene ligada muito alto, outro carro arrancou em alta velocidade, pneus guinchando no asfalto, algumas pessoas correram, crianças gritaram. No ar azulado do entardecer, ouviu-se o barulho de um tiro. − Corre − Patrícia gritou, e saiu correndo também. De longe, no meio das pessoas que corriam em todas as direções, tornou a gritar: − Se eu morrer, diga a Márcia que nunca uma mulher foi tão amada quanto ela.
Eu corri. Seqüestro, gritavam, assalto, pegaram os traficantes. Um vendedor fechou o trailer, cocos verdes rolaram pela calçada, pisei num, quase caí, continuei correndo, as palmas das mãos esfoladas, ouvi mais tiros, uma mulher passou chorando. Quando percebi, estava dentro da praça que dava para o Arpoa-dor. Tinha perdido Patrícia, e também a vontade de ir a São Conrado, Laranjeiras, Botafogo ou qualquer outro lugar naquela Beirute. Tudo que queria era voltar imediatamente para São Paulo. Lá pelo menos, pensei. E não sabia o que vinha depois. A praça estava mais calma. Meio tonto com a vodca e a correria, fui andando em direção às grades verdes que separavam a praça do mar. E sobre as pedras do Arpoador, toda vestida de branco, os cabelos louros e o vestido esvoaçando na brisa da tardezinha, recortada contra a noite que vinha chegando do outro lado do mar, estava parada Dulce Veiga. Segurei nas grades, feito um prisioneiro. Ela ergueu o braço direito no ar, a mão estava meio fechada. Quando o braço ficou completamente esticado, ela abriu a mão e soltou um pombo branco. As asas do pombo refletiram por um segundo os raios do sol, filtrados pelos edifícios do outro lado da rua. Depois sumiu no azul, entre as gaivotas. Batidos pelo vento, os cabelos de Dulce Veiga cobriram seu rosto. Ela sacudiu a cabeça, até que o rosto ficasse limpo outra vez. Entre as grades, embora ela estivesse distante, além da rua do outro lado da praça, sobre as pedras ainda quentes de sol, pude ouvir perfeitamente quando gritou algo que soava como: − Epa, epa, epa babá! Eu poderia subir nas grades, atravessá-las de um salto. Mas a polícia rondava a praça, as ruas em volta, seria muito suspeito. A última coisa que eu gostaria era acabar no distrito. Olhei para trás, procurando a entrada ou saída da praça. Outra vez me perdi entre os canteiros, cachorros e babás, e quando finalmente consegui encontrá-la, a entrada, a saída, para dar a volta pelo caminho ao lado, que levava até a praia, Dulce Veiga não estava mais lá.
Alguns surfistas deslizavam na água, o sol coado pelos edifícios da Vieira Souto. Talvez agora, pensei, do outro lado das pedras, do outro lado do Forte, ela caminhasse descalça pela areia, cantando alguma coisa como Copacabana, princesinha do mar, pelas manhãs tu és a vida a cantar, acompanhada somente pelo rumor das ondas quebrando na praia. Muito brancos, seus pés afundam na areia mais úmida daquele ponto exato onde as ondas se desfazem. O vento esvoaça os panos brancos, gotas de mar e sal respingam seu rosto, tudo cheira a maresia. Ela não sente, não vê nem ouve nada além da própria canção que canta, endereçada a algo que já não existe nem está mais ali. Como um réquiem. Ouvi mais tiros ao longe. Eu sabia que era inútil procurá-la. Então caminhei até a praia, tirei os tênis, as meias, dobrei a barra das calças, entrei no mar e lavei sete vezes o rosto, na sétima onda, com a água salgada e fria da Guanabara. 51 De longe, na fila de espera do Santos Dumont, vi Patrícia apanhar seu cartão, desaparecer na sala de embarque. Respirei aliviado, só faltava ela ter morrido no tiroteio. Pelo menos metade do Rio de Janeiro parecia ter resolvido passar o fim de semana em São Paulo. Depois do que eu vira, achava uma grande idéia. E até chamarem meu número, encostado na coluna, fiquei tentando colocar a gota de mercúrio dentro do labirinto. Continuei a tentar no avião, mas as sacudidelas faziam a gota esbarrar contra as paredes da caixa e partir-se em infinidades de novas gotas. Tentei no táxi, impossível. Colocar a gota inteira dentro do labirinto, sem que se dividisse em muitas outras, exigia concentração absoluta e quase total imobilidade. Esperei até chegar em casa, de repente tinha-se tornado questão de vida ou morte conseguir aquilo. De vida ou morte era exagero, mas
de sanidade ou loucura, não. Chegar ao centro, sem partir-se em mil fragmentos pelo caminho. Completo, total. Sem deixar pedaço algum para trás. Havia jeitos, manhas. Mesmo que a gota se dividisse antes de entrar no labirinto, era possível fazer uma parte dela esperar, lá dentro, por suas partes perdidas, que chegavam aos poucos, e se integravam nela. Então primeiro uni-las numa só, depois fazê-la escorregar, única, com toda a suavidade, mas precisa, por entre as paredes do labirinto, até o exato centro geométrico. Não sei quanto tempo durou. Meus olhos, meus ombros doíam. Então, de repente, ela estava lá. No centro, eu conseguira. Parada lá, íntegra, a gota de mercúrio tinha uma forma estranha. Assim como um P maiúsculo datilografado em cima de um L também maiúsculo, deste jeito: E. Eu já vira aquele sinal, pensei, e levei algum tempo para lembrar do rabo de Vita Sackville-West pousado sobre o mapa-astral feito por Patrícia. Havia um símbolo assim, lá. Não era Netuno, que eu lembrava. Netuno era o garfo, os traços vermelhos. Talvez Urano, pensei, quem sabe Plutão, tive quase certeza. Plutão, o Hades, senhor dos infernos, uma moeda sob a língua do morto para pagar Caronte na travessia do rio Estige, ao encontro de Perséfone. Me benzi, eu estava ficando esquisito. Embora imundo, suado, os cabelos grossos de maresia, eu continuava vestido de branco. Deixei o labirinto bem no centro da mesa, exatamente sobre o G de Armagedon, o disco de Márcia. Passava das onze quando finalmente saí de casa. 52 Chovia forte quando cheguei à Liberdade. A água e o vapor embaçavam o neon lilás do cogumelo atômico na frente do Hiroshima. Pela janela entreaberta do táxi, ouvi o som pesado das Vaginas Dentatas que saía lá de dentro, aquele refrão da Grande Babilônia. Eu estava indeciso entre descer naquela chuva toda para enfrentar outra cena de drogas e rock and roll, sem
sexo, a voltar para casa, desistir de tudo, procurar o último lexotan, o disco de Chet Baker cantando My Funny Valentine. Então Márcia saiu correndo para a calçada, Patrícia vinha atrás dela. Encolhido no banco do fusca, fiquei ouvindo: − Você tem que voltar, não seja louca. O show já está no fim. Márcia ainda estava vestida com a roupa do show. A chuva começava a lavar a maquiagem branca de seu rosto. − Não posso, Iracema disse que ele está muito mal. Quebrando tudo, chamando feito louco por mim. − Só mais meia hora. Eu levo você até lá. Márcia começou a procurar um táxi. Estava completamente descontrolada: − Você não entende? Não dá tempo, eu tenho que pegar a herô. Um táxi parou, jogando água em cima das duas. Patrícia gritava: − Mas o que é que eu faço? A cantora é você. E nós precisamos conversar, resolver a nossa vida. Márcia entrou no táxi. Pela janela, ainda disse: − Deixa elas terminarem o show sozinhas. Diz que eu passei mal, inventa qualquer coisa. Depois a gente conversa. Patrícia tentou beijá-la, ela fechou a janela. O táxi arrancou e partiu. No meio da rua, Patrícia ainda gritou o nome dela, depois baixou a cabeça, chutou o pára-lama de um carro e tornou a entrar no Hiroshima. Eu então toquei o ombro do motorista, e disse finalmente aquela frase com que sonhava há pelo menos trinta anos: − Siga aquele carro. Ele me olhou como se eu estivesse completamente louco. Precisei repetir três vezes, vezes demais para um clichê. Ele começou a se mover, era nordestino. A cena da perseguição dos automóveis, filmada de helicóptero. Pneus gritando nas curvas, batidas e música frenética, uma grua subindo
devagar. Mas nas ruas vazias não havia perigo, e o fusca arrebentado onde eu estava não tinha sequer rádio. Acendi um cigarro, o paraíba mandou eu apagar. O táxi de Márcia pegou a Avenida Liberdade, deu algumas voltas e caiu no início da Paulista quase deserta. No meio da noite, o topo da torre invisível entre as nuvens baixas, só se via os raios furando a neblina. Na frente do MASP, por um momento, para que aquilo que eu estava pensando não fosse verdade, desejei que o táxi de Márcia de repente descesse a Augusta, rumo à cidade, e eu talvez desistisse de tudo para ficar na frente do Quênia's Bar, beber uma cerveja com Jacyr e o rastafari, ou seguisse em frente sempre pela Dr. Arnaldo, até o Sumaré, parasse numa transversal suspeita, alguma casa desconhecida, ou então continuasse até a Lapa, atravessasse a Marginal para subir a Freguesia do Ó, onde ela apanharia a droga na própria casa, quem sabe escondida atrás do pôster de Janis Joplin, de Jim Morrison. Mas como eu desconfiava, ele desceu pelo túnel da Bela Cintra, e entre os grafites coloridos − Alex Vallaurivive, li de repente −, quando ainda poderia seguir reto, pegou o caminho da esquerda, começou a descer a Rebouças. Aumentou a velocidade. Quando atravessou a ponte do rio Pinheiros e chegou ao Morumbi, eu tinha uma certeza tão absoluta que comecei a tremer como se tivesse febre. O táxi de Márcia parou exatamente em frente ao número 58 da Avenida das Magnólias. Mesmo com aquela chuva, cada vez mais forte, só um cego não veria o neon rosa do número 58 brilhando no escuro, sob a cascata de samambaias verdejantes despencando pelo muro de concreto em que alguém grafitara Turcão Bundão. O pau enorme continuava esporrando dólares. Márcia desceu. Era a casa de Rafic. Meia-noite, vi no relógio do carro. E mandei o motorista tocar direto para o Bom Retiro.

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