Onde andará Dulce Veiga (Parte 3)

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III
QUARTA-FEIRA A FERA MUÇULMANA
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Estou parado no centro da igreja em ruínas. Oblíqua, a luz penetra os vitrais quebrados, cai em fatias coloridas sobre os bancos em pedaços. Desde a janela até o piso, acompanho com os olhos uma réstia iluminada, metade verde filtrado por um caco de vitral, metade cor do sol. E exatamente no ponto onde incide essa faixa de luz, sobre o piso de mosaicos frios, rasteja uma cobra − metade verde, metade cor de sol. Penso em voltar atrás mas, sem me mover, continuo a olhar o piso adiante, em volta de mim. Todo ele está coberto de cobras. Como um tapete movediço, elas trançam-se em meus pés, enroscam-se nos bancos quebrados, escalam os altares vazios. Quando escapam das fatias de luz tingidas pelo que resta dos vitrais, na sombra, posso ver que suas escamas são pardo-claro, quase castanhas. Alguma coisa em mim não tem medo, embora continue a sentir nojo desses corpos que pressinto tão gelados quanto os mosaicos sob meus pés. Procuro as imagens dos santos, mas eles não estão nos altares vazios, cheios apenas de cobras entre tocos de velas derretidas. Feito pessoas, da minha altura, mas imóveis como estátuas, os santos espalham-se pelo interior da igreja, entre o pó, as cobras, as fatias de luz. Deve ser Semana Santa, penso. Quaresma, pois todos estão cobertos por tecidos roxos transparentes. Gazes, rendas, tules. Vagamente, entre as transparências, decifro certos relevos conhecidos, algumas formas, e vou adivinhando aos poucos, guiado pelas memórias da infância. Aquele, com o menino no colo, deve ser Santo Antônio; o outro, de mãos amarradas, três flechas cravadas no tronco nu, São
Sebastião; aquela de crucifixo nos braços, entre rosas brancas, Santa Teresa de Lisieux; mais ao fundo adivinho as grandes asas de São Miguel Arcanjo, empunhando a espada onde se enrola uma cobra viva. Caminho devagar entre as estátuas, até esta imagem de costas, que não consigo reconhecer. Flores, harpa ou cordeiro − não há nada entre seus braços caídos. Num lugar que não vejo, um cravo começa a tocar Haendel. Toco na cabeça da imagem, para afastar os véus roxos do luto pelo assassinato de Jesus de Nazaré, os panos deslizam pelo corpo imóvel. Ela volta para mim o rosto descoberto de uma mulher loura. Do interior do crânio, pelas órbitas vazias dos olhos, pelos orifícios das narinas e orelhas, pela boca aberta e desdentada, escorregam cobras lentas, pardas, vivas. Acompanho o movimento das cobras por seus ombros, entre os panos, seus seios nus. Mais abaixo, posso ver os pêlos de seu sexo entreaberto e, dentro dele, duas fileiras de dentes agudos, serrilhados. Rapidamente, desço os olhos até o chão. Com o pé esquerdo descalço, ela esmaga a cabeça de uma serpente de cor diferente das outras. Não chego a descobrir essa cor, não chego a reconhecer essa mulher antes de acordar gritando. Mas sem necessidade de lembrar seu nome, sei perfeitamente quem ela é. 20 Aquele som real, furando a manhã. Grosseiro demais para um cravo, vulgar demais para Haendel. Pulei do sofá, bati o tornozelo em alguma coisa dura. Buceta!, gritei. E fiquei dando voltas e pulos num pé só pelo meio da desordem, evitando pisar em algo que já não estava ali. Sabia que sonhara, mas não conseguia lembrar nada mais que uma sensação crescente de pavor e dos acordes do cravo. A campainha tocou outra vez. Ninguém me visitava àquela hora, ninguém me visitava sem telefonar, ninguém me visitava. Gritei já vou, enfiei
uma das calças jogadas no chão, abri a porta. Era Jacyr, não Jacyra. De bermudas e tênis brancos muito limpos, camiseta vermelha com a cara de Prince, nem uma gota de maquiagem na cara miúda de mico-leão, tinha-se transformado novamente no mulatinho espichado, filho de Jandira e Moacyr-aquele-cafajeste. Ele me empurrou, entrou sem pedir licença: − Quase meio-dia, faz horas que estou chamando. Não vou ficar o dia inteiro à disposição do bofe. Tarde demais, enquanto tentava encaixá-lo no fim daquela manhã, lembrei da faxina combinada com Jodie Foster no corredor. Jodie se fora, ficara uma espécie de Grace Jones mais baixa e clara, travestida de moleque. Os braços e as pernas eram iguais, longuíssimos. Tentei organizar na memória os restos do dia anterior, e o que precisava fazer hoje, a entrevista com Márcia, preciso de uma agenda, e logo tornei a esquecer. Por trás dos pedaços das frases que escrevera no jornal, de lembranças como os cabelos eriçados de Filemon ou do copo de uísque de Pepito Moraes sobre o piano e de todas aquelas coisas, havia outras imagens. Numa das mãos, Perseu segurava pelos cabelos de cobra a cabeça decepada de Medusa, erguendo na outra uma espada onde se enrolava uma cobra. Como consegue deslizar assim pelo fio afiado sem partir-se em duas, pensei e, num corte rápido, como se o diretor mudasse o enquadramento e tudo aquilo fosse um fotograma, Perseu, Medusa e a cobra estavam num altar, sob um foco de luz apagado em resistência. Entre essas imagens e o apartamento que parecia ter sobrevivido a um terremoto, Jacyr mexia-se sem parar, recolhendo livros, roupas, latas, olhando para mim com estranheza. − Que-que foi, nunca me viu? − Você mudou − eu disse. Como se ajeitasse um xale invisível, ele sacudiu os ombros:
− Foi o arco-íris depois da chuva. Sempre acontece isso. A mãe diz que é Oxumaré, que eu trago comigo. Seis meses homem, seis meses mulher. Fico bem louca quando baixa, depois passa − de repente benzeu-se e saudou, erguendo a mão para o céu: − Aro-boboi! minha mãe. − A serpente − falei. Não sabia por quê. Ágil, bailarina, Jacyr rodopiou. Sacudiu um lençol sujo no ar: − Parece que bebe, cara. Garanto que encheu a cara ontem. Fumou, cheirou? Até pensei que estava trepando. − Olhou para o sofá vazio com desprezo e malícia. − Mas todo mundo sabe que você não é disso. Passei a mão na cabeça, como se assentasse pensamentos despenteados. E peguei um cigarro em cima da mesa. Jacyr arrancou-o das minhas mãos. − Não, senhor. Faz um mal horroroso fumar sem comer nada antes. Tinha os mesmos cuidados da mãe, só que desaforados. Começou a me empurrar para o banheiro. A voz macia, as palmas das mãos nas minhas costas nuas. Era bom ter alguém vivo dentro daquele apartamento. − Toma um banho enquanto eu faço um café. Fechei a porta do banheiro minúsculo. Por trás dela e do ridículo adesivo de um pingüim enxugando-se numa toalha amarela, que provavelmente Lídia colocara ali, continuava ouvindo Jacyr a zumbir e a crepitar pela sala, inseto de asas febris. Abri o chuveiro, mas a água fria não conseguia resgatar aqueles restos e reflexos de imagens perdidas, viradas pelo avesso. Entre os pêlos negros do peito, contei à toa dois fios inteiramente brancos. Amanhã serão três, pensei. Depois dez, cem. Mil, em direção a quê? A um daqueles senhores cinqüentões em que talvez me tornaria em breve, tufos de pêlos grisalhos escapando pelo colarinho aberto, uma corrente de ouro entre eles. Digno, só um pouco patético. Essa era a melhor maneira de ficar deprimido pelo resto do dia. Então tive vontade de cantar, que estava tudo, tudo certo, repeti esfregando a
cabeça, mas não lembrava nenhuma canção, eu não sabia cantar, navegando naquele pequeno milagre que começara a acontecer há dois dias. Um emprego: acordar, tomar banho, fazer a barba, beber café - e ter para onde ir. Jacyr tinha escancarado a janela que dava para a Augusta, em frente à funerária do outro lado da rua. Happy Days era um nome engraçado para uma funerária, ou apropriado? Sem filtros nem disfarces, na luz de quase meio-dia, o apartamento parecia ainda menor, mais sujo, atravancado. Ele, e eu também, como certas plantas, certos bichos, sobrevivíamos melhor nas sombras. Bem longe do sol das manhãs. Enrolado na toalha, sentei na ponta da mesa. Jacyr colocou na minha frente uma xícara de asa quebrada, cheia de café. Botou as mãos na cintura: − Você podia fazer um pouco de musculação. Uns peitos seriam ótimos. Por que não começa a malhar e põe uns peitos nesse corpo? Fico louca quando vejo um homem bem peitudo. Provei o café. Doce demais. − Acho peito de homem muito mais bonito que peito de mulher. Ainda mais cabeludo, bem cabeludo. Sabe aquele tipo de peito que o cabelo emenda com a barba? Daí o cara faz a barba e fica assim, meio uma gola role. Não posso nem ver que me dá vontade de cair chupando. Acendi um cigarro, Jacyr tirou das minhas mãos. Acendi outro. − Aquele negrão, sabe aquele negrão de cabelo rastafari que fica sempre ali no Quênia's Bar? Aquele que vende fumo, diz que tem vinte e cinco centímetros, já pensou? Isso não é uma jeba, é uma jibóia. Tentei prestar atenção em alguma outra coisa. Não havia nada além da desordem e da voz de Jacyr, ocupando todo o espaço dentro do cérebro, impedindo de pensar. Safada, sacana. − Até vinte agüento numa boa, até o cabo. Vinte e cinco não sei, tenho até medo. Pode rasgar a gente por dentro, sei lá. Qualquer dia experimento, você não quer que eu compre fumo dele? É só me dar a grana,
eu já provei e é do bom. Lembrei da carta de Lídia, há dois dias jogada sobre a mesa. Afastei os livros, jornais, cinzeiros cheios, o rosto de Márcia na capa do disco, peguei o envelope. Abri com lentidão deliberada, como se fosse algo tão importante que, só pelo clima, Jacyr fosse obrigado a calar-se. Mas ele não olhava para mim, fumando e dando passos de dança: − Tem cara que quer me comer em pé, no banheiro do Quênia's. Hotel não dá, sou de menor. Quando não tem outro jeito, até dou. Mas não entra direito, prefiro de quatro. Aí sim, entra tudo. Não era uma carta, era um poema de Cecília Meireles, Lídia costumava fazer isso. Em vez de cartas, aquelas cartas falando das delícias das paredes caiadas de branco, das portas e janelas azul-marinho & etc, poemas. Jacyr continuava falando em peitos, pêlos, paus e porras, as buzinas entravam pela janela aberta, num passo rápido Jacyr ligou o rádio que tocava Laurie Anderson, strange angels sing Just for me, uma coisa assim, a carta aberta, à beira do vaso de violetas quase mortas, li Este é o menino de sal, o menino de sal que pesa no meu coração, e ao mesmo tempo, inesperadamente, depois de mais de vinte e quatro horas sem pensar nisso, e só agora percebia que, durante todo esse tempo, não fizera outra coisa senão permanecer consciente do estar inconsciente dele no meu pensamento, no trânsito do espaço em branco entre esses versos e aqueles outros, que diziam olhai o fundo dos meus olhos, por este prisma de lágrimas, olhai, olhai, e avistareis, com um arrepio subindo desde a cintura até os cabelos molhados da nuca, os olhos embaçados pela luz do dia, água do banho ou de lágrimas, quem sabe, de repente um vazio que nem todas as obscenidades que Jacyr continuava dizendo poderiam preencher, tornar engraçado ou mais leve, dentro daquela saudade que não ia embora por mais que o tempo passasse e dentro dele, mesmo sem lembrar, apenas agindo, todos os dias eu acordava e tomava banho, escovava os dentes e fazia todas essas coisas rotineiras, igual a alguém que aos trancos, mecanicamente,
continua a viver mesmo depois de ter perdido uma perna ou um braço que, embora ausentes, ainda doem − sem poder evitar, inesperadamente, sem querer evitar, outra vez lembrei de Pedro. − E aquele rapaz que vinha sempre aqui? Hein, eu disse, quem. − Aquele rapaz bonito, aquele meio dourado. Aquele dos olhos claros, nunca mais apareceu. Subitamente eu falei que era muito tarde, que estava atrasado, que tinha um dia de cão pela frente, e levantei, e afastei Jacyr um tanto brusco demais. Ele esbarrou na mesa, virou um resto de café sobre as violetas quase mortas, sobre a carta de Lídia, sobre o poema de Cecília, e como se meus olhos embaçados, não sabia de quê, dessem um zoom de aproximação no papel, antes de me afastar li os versos agora manchados falando naquele menino em que tanto desejei pregar asas de Amor e de Anjo. Eu poderia ficar ali parado, olhando a mancha de café espalhar-se lenta sobre o poema, lembrando tudo que não queria lembrar e assim, parado para sempre no meio do apartamento, enquanto vidas alheias acontecem além das janelas, fora e longe de mim, sentisse apenas mágoa, saudade e esse tipo de espanto amargo em que ninguém dá jeito, eu poderia. Mas repeti que era tarde, que eu tinha um dia de cão, que não tinha tempo e me desculpe, você sabe, esta cidade, esta vida, esta manhã. Enfiei as calças, a camisa, rebusquei dinheiro, estava perdido se não conseguisse um vale no jornal, Castilhos quebraria o galho, paguei Jacyr e me fui. Sem admitir nenhuma pergunta indiscreta, nenhuma cumplicidade barata, nenhum consolo viscoso. Fechava a porta quando olhei para dentro e vi Jacyr debruçado sobre a mesa. Sorridente feito criança que acaba de ganhar um presente, sacudia no ar a capa do disco de Márcia, gritando: − Você não me contou que tinha isso, bofe. Ela é mulher, mas é uma deusa. Posso ouvir?
Em frente à porta das velhinhas, saindo para a rua, ouvi o rock and roll estremecendo as paredes do prédio na voz de Márcia Felácio e as Vaginas Dentatas: O passado é uma cilada, não há presente nem nada, o futuro está demente: estamos todos contaminados. 21 Debruçado no balcão do Quênia's Bar em frente a um copo de cerveja, o negro cantarolava baixinho o que imaginei que fosse um reggae. O cabelo duro comprido até pouco abaixo dos ombros, cuidadosamente dividido em faixas, como canteiros num terreno arado, depois caindo em tranças finas, entremeadas por contas brancas e vermelhas. Devia ser ele. Quando percebeu que eu o observava, virou de frente para a rua, o rosto erguido numa atitude de desafio. Eu baixei os olhos. Ele então abriu as pernas dentro das calças brancas muito justas. Não usava cuecas, pelo menos não se notava nenhuma muna por baixo das calças. Só podia ser ele. Jogou as tranças para trás, as contas brilharam ao sol. Pisquei, tornei a baixar os olhos. Ele projetou o sexo, acariciou-o com a mão cheia de pulseiras. Era mesmo ele. Virei depressa para o outro lado da rua, afundei dentro do orelhão. Depois de três toques, do outro lado ouvi a ficha cair e entrar aquela gravação com Nara Leão. Ia desistir sem deixar recado, mas alguém desligou a secretária e uma voz conhecida, irritada, sonolenta, resmungou um alô. − Patrícia? Estou ligando para marcar a entrevista. − Marcar o quê? − A entrevista. Com Márcia, para o Diário da Cidade, tem que ser ainda hoje. − Impossível, só se for.
O escapamento de uma moto apagou a voz dela. − Fala mais alto, não estou ouvindo. Patrícia berrou: − Às seis, com o sol na cúspide da sete. − Muito tarde, pinto aí às quatro. − Com o sol na oito, de jeito nenhum. Talvez ao meio-dia, ela sugeriu, com o sol na dez, mas o meio-dia já tinha passado. Quem sabe então às oito, com o sol na seis, mas essa era hora do ensaio delas. E várias outras dessas combinações, todas incompreensíveis para mim. O olhar do negro queimava minhas costas. Comecei a transpirar, eu tinha que me ver livre daquilo. Avisei: − A ficha vai cair. − Pode ser amanhã, então. Porque a lua em Gêmeos, você sabe. Antes que a ligação caísse, consegui berrar: − Às quatro sem falta, hoje. Me dá o endereço. Patrícia pareceu paralisada com minha firmeza. Sem reagir, deu o endereço. Memorizei a rua, o número − era uma casa. Eu era bom nessas coisas, às vezes guardava um número durante anos. Mas nem pelo nome da rua nem pelo prefixo do telefone consegui localizar o bairro. Talvez Morumbi, delírios artísticos de meninas ricas mortas de tédio. Britadeiras vibravam no prédio em construção em frente ao Quênia's Bar, ao lado da funerária. Nordestinos quase nus, carrinhos de mão, pedras, suspensos nos andaimes, formigas fervilhantes numa longa fila, do Cariri à Estação da Luz, lembravam Metrópolis. A cidade ia explodir um dia, e eu não tinha nada com isso. Ou tinha? Bati o telefone. Com a ponta de um prego, alguém riscara no esmalte vermelho: Ti xupo todo goztozo. O negro agora estava encostado na porta do bar, copo na mão, olhando a rua. De cima, como um rei. Do fundo do bar vinha uma música de percussão primitiva, tambores na selva, repetindo qualquer coisa como Bob
Marley pra sempre estará no coração da raça negra. Dava vontade de dançar, mas ninguém tinha tempo para isso. Somente ele, o negro forte das tranças, balançava sinuoso o corpo dentro das calças brancas muito justas e de uma camisa florida amarrada na cintura. Um ônibus passou, me enfiei entre os office-boys amontoados na porta de saída. Equilibrado na porta, entre o bafo quente de carne úmida que vinha de dentro e o bafo quente do asfalto seco de fora, batido de sol, olhei para trás. Uma das mãos acariciando lenta sua lança de guerreiro, dentes, contas e pele reluzindo na luz do começo da tarde, o negro erguia no ar o copo de cerveja dourada. Feito um brinde, para mim. 22 As pás dos ventiladores giravam silenciosas. Nenhum ruído de telefone ou máquina de escrever. Em preto-e-branco a redação era um fotograma projetado no espaço. Ao fundo, de costas para a janela filtrando uma luz sempre baça pelos vidros sujos, Castilhos flutuava entre nuvens de cigarros. À esquerda, vestida de cinza, voltada para a parede, inteiramente imóvel, Teresinha O'Connor contemplava mais uma página do calendário Seicho-No-Ie que devia ter acabado de virar. Procurei Filemon, não havia ninguém mais na sala além das duas estátuas. Que não eram de sal, mas de papier maché do suco de inúmeros jornais. Tambores na selva, lembrei, ligar um rádio para que a música afro fizesse aquela natureza-morta estremecer. Ou entrar desejando boa tarde! em voz alta, tão alta que fossem obrigados a mover-se, mesmo para me olhar com desagrado, sem dizer coisa alguma. Mas parado na porta − se a câmera mudasse seu enquadramento e substituísse meus olhos pelos olhos de Castilhos ou de alguém postado atrás dele, por sobre seus ombros curvos −, eu também fazia parte daquela cena. Qualquer movimento, o filme andaria.
Entrei. Tão sorrateiro que Teresinha levou um leve susto quando li em voz alta a frase no calendário: − "Seja o personagem principal em qualquer circunstância". Ela sorriu melancólica, parecia ter chorado. − Pobre de mim, sou apenas uma coadjuvante. − E acrescentou, apontando minha mesa: − A estrela hoje é você, querido. Acabaram de chegar. Em cima da minha mesa, entre pilhas de laudas e jornais, havia uma dúzia de rosas brancas e vermelhas. Dessas compradas em floricultura, misturadas a galhos de samambaias e outras florezinhas miúdas, brancas, que pareciam estrelas. Preso no laço de fita azul, um cartão. Durante toda a minha vida, eu não lembrava de ter conhecido alguém capaz de me enviar rosas. Peguei o cartão, Teresinha espiava. Não era um cartão comum, de loja. Em papel de linho sépia, no canto direito tinha as iniciais A. V. gravadas em relevo dourado. Li em voz alta, para que Teresinha não pensasse − eu não sabia o que ela poderia pensar, e fosse o que fosse, não tinha a menor importância: − "Obrigado pela emoção. Só mesmo uma sensibilidade especial como a sua poderia lembrar com tanta ternura da inesquecível Dulce Veiga. Venha me ver, talvez eu tenha mais informações". Inesquecível, ternura, sensibilidade, emoção: eu não gostava nem um pouco dessas palavras. Embaixo, antes da assinatura barroca de Alberto Veiga, havia um número de telefone. Fiquei pensando numa Parker 51, tampa de ouro, nunca mais vira uma. E levei algum tempo para lembrar daquela foto de canastrão de filme mexicano: o marido de Dulce e, pelo que eu sabia, pai de Márcia. − Parabéns, você merece − disse Teresinha. − Eu também fiquei emocionada. Lindo texto, muito espiritual. − Obrigado − falei. E só então lembrei de abrir o Diário da Cidade daquela quarta-feira.
Na primeira página do segundo caderno, os blocos de texto emolduravam a fotografia de Dulce Veiga em quatro colunas, jogando para trás os cabelos louros que vazavam as palavras. A qualidade de impressão do jornal era medonha, capaz de fazer louras escandinavas parecerem deusas africanas de insólitos cabelos lisos. Mas por algum milagre, naquele dia, naquela foto, fora preservada a aura serena em torno do rosto dela. Dulce olhava para algum ponto acima da cabeça de quem a olhasse de frente, com tanta firmeza que dava vontade de olhar também, e quase sorria. Seu rosto claro, de maçãs salientes, não tinha nenhuma contração ou ruga. Como se seu estado natural fosse constantemente esse, quase sorrindo, olhando para outro lugar que não era aqui. Onde as coisas fossem diferentes, boas de serem vividas. Mas embora tudo naquela foto desse a impressão devida e alegria, o buquê de rosas sobre ela de repente a transformava numa lápide roída pelo tempo. Teresinha sussurrou: − Onde andará Dulce Veiga? Talvez morta, pensei pela primeira vez. Castilhos chamou do fundo da redação. Sem dizer nada, estendeu meia dúzia de telegramas. Rasguei os papéis, atrapalhado com os grampos. E a morte, voltei a pensar, telegramas sempre carregavam um augúrio de morte, venha urgente pt papai passa mal pt, talvez não num cemitério, mas anônima, sem lápide nem rosas, numa beira de estrada, no canto de algum terreno baldio, sob uma pilha de lixo, em algum lugar longe de tudo, porque ninguém sentira o cheiro podre, sem ter sido jamais descoberta. Vinte anos depois, apenas ossos, restos de tecido. Intactas, além de cabelos e unhas, quem sabe as pérolas. Um fio de pérolas tão brancas quanto as vértebras nuas de seu pescoço. Afastei o pensamento. Os telegramas eram todos de pessoas conhecidas, elogiavam a crônica, queriam saber mais de Dulce Veiga.
Nenhuma pista, nenhum indício. Passei-os para Castilhos. − Muito bem − ele rosnou. E com a brasa do cigarro começou a furar um dos telegramas. − Quer dizer que a sua crônica é um sucesso. − Não pensei que alguém lembrasse dela. Castilhos fez outro furo ao lado do primeiro, ficou olhando fixo para ele. Olhei também. As bordas incendiadas crepitaram por um momento, até encontrar as bordas apagadas do outro furo. Então apagaram-se também, para formar um único orifício que lembrava o número oito deitado, assim ∞. − Escrever tem desses mistérios. De repente, sem esperar, um dia você consegue despertar alguma coisa que está viva dentro de muita gente. − Sua voz era um tanto amarga, talvez ele mesmo jamais tivesse conseguido algo desse tipo. Fez outro furo embaixo dos dois primeiros. E antes que os três furos se unissem, formando um triângulo de extremidades arredondadas, disse com ironia: − Só espero que você não esteja planejando agora deitar em cima dos louros. Ou das louras. E a nossa matéria? − Já marquei a entrevista. Entrego amanhã sem falta, dá tempo? − Tempo dá. Mas tem um outro problema. O Rafic ligou, quer falar pessoalmente com você. Aquela alegria − era alegria? − que eu começara a sentir com as rosas, os telegramas e tudo, desapareceu de repente. Rafic era o dono do jornal, de prédios, ilhas, iates. Queria agora um canal de tevê e, falavam, andava metido em política. Jamais alguém dizia seu nome, cochichavam apenas Ele, onipresença ameaçadora. Nunca aparecia no jornal, mas como uma espécie de Big Brother muçulmano, sabia de tudo que acontecia ali dentro. − O que é que ele quer? − Talvez convidar você para um cruzeiro pelas ilhas gregas. Andros, Tenos, Mikonos, Delos, Naros, Terá, Creta − Castilhos recitou. E acariciou o boi de cerâmica. Por um momento o cigarro equilibrou-se entre os dois chifres amarelos, como um terceiro chifre fumegante. Estendeu um cartão: −
O endereço do homem. Pede que você vá vê-lo hoje, sem falta às seis em ponto. Não se atrase: o chefão odeia esperar, que se há de fazer? Com o sol na sete, pensei absurdamente. Para conseguir fazer a entrevista com Márcia, teria que chegar sob um sol inconveniente. Fodam-se Patrícia e seus astros, pensei. Era bom correr. Braços cruzados, Teresinha contemplava as rosas. Parecia mais O'Connor do que nunca. Talvez pensasse em Dublin, algum amor perdido, com aquela mesma expressão de Anjelica Huston parada nas escadas ouvindo The lass of aughrim, em The dead. Ausente e sem dor, por isso mesmo ainda mais dolorida. Mas não nevava lá fora, sobre toda a Irlanda, sobre o túmulo de Dulce Veiga. Por trás das janelas da mesa de Castilhos, São Paulo chiava na fervura dos quase quarenta graus de fevereiro. Teresinha suspirava, agora prisioneira na torre Martello de onde, em dias excepcionalmente claros, e hoje talvez fosse um deles, podia-se ver Bray Head. Pensei em levar as rosas para Márcia, talvez pudessem amansá-la. Mas Vaginas Dentatas deviam odiar flores. Anão ser talvez cactos, antúrios. Fálicos, pontiagudos. Guardei no bolso o cartão de Alberto Veiga, o endereço de Rafic, tirei uma rosa branca do buquê e, com minha mais esmerada inflexão de filme inglês dublado por Herbert Richers, curvei-me e entreguei as restantes a Teresinha: − Lady O'Connor, embora não o perceba, você sempre será o personagem principal. Oh, ela levou a mão à boca. Eu já estava longe. Sem que ninguém percebesse, quase na saída, deixando aquele fotograma voltar outra vez à sua imobilidade, coloquei a rosa branca em cima da máquina de Filemon, peguei o gravador e dei o fora.
23 A casa não ficava no Morumbi, Jardins ou qualquer outro desses bairros chiques. Depois de voltas e voltas, consultas num guia em pedaços onde as ruas sempre continuavam justamente nas páginas que estavam faltando, perguntas nas esquinas e informações do tipo conta três faróis, mas só existiam dois, vire depois à esquerda, mas à esquerda não havia rua alguma, o motorista do táxi conseguiu encontrar um pequeno sobrado no alto da Freguesia do Ó. Paguei sem reclamar, dinheiro do jornal. Parecia cidade do interior. Figueira no centro da praça em frente à igreja, meninos jogando bola. Mais estranho ainda, parecia uma casa do interior. Se, claro, eu não olhasse por cima dos telhados baixos para esbarrar na massa pestilenta do rio Tietê, filete de pus sublinhando o perfil da cidade. Era um dia quase sem poluição, o cinza transparente sobre a cidade e o céu de nuvens esparsas tão brancas e redondas que, se eu ainda ousasse escrever maus poemas, seria irresistível compará-las a bandos de ovelhas. Gregas, naturalmente. Talvez armênias. Pelas terras distantes, quem sabe, lembrei de Teresinha O'Connor − sim, certamente era um daqueles raros dias em que se pode ver Bray Head do outro lado −, e me arrependi de não ter trazido as rosas. Nos dois metros de jardim entre a porta e o muro baixo, que a hera começava a cobrir, não havia antúrios, cactos ou unhas-de-gato. Sobre a grama recém-cortada, cresciam azaléias ainda sem flores, margaridas moles de calor e um jasmineiro. Alguém parecia cuidar bem delas, mas era difícil imaginar uma vagina dentata fazendo qualquer coisa assim. Talvez uma empregada, talvez morassem com os pais. Os pais de Patrícia, claro. Patrícia abriu a porta. Ela substituíra os óculos gatinho por outros mais pesados, um pedaço de esparadrapo prendendo a haste quebrada, usava um jeans cortado na altura dos joelhos e tinha um livro nas mãos. Não parecia mais tão moderna. Ao contrário, lembrava uma dessas moças com ar de
solteirona desde os doze anos. A única coisa contemporânea naquele cenário era a moto estacionada na calçada. Fiquei tentando ler o título do livro, sem olhar para ela. E quando olhei, embora não fossem sequer três da tarde, percebi que não estava zangada. − Tive que vir antes. Tenho um compromisso às seis. − Não tem importância. Eu tinha esquecido que é horário de verão. Com o sol na nove, pode até dar certo. De repente vocês viajam juntos. Afastou o corpo para que eu entrasse, tinha um vago cheiro de leite condensado. A sala também parecia uma sala do interior, modesta e limpa, um sofá de estampado meio puído, poltronas combinando, guardanapos de crochê no espaldar, nos braços. Mas onde estará afinal o rock and roll, pensei, olhando a parede com reproduções de gravuras inglesas do começo do século. Uma gata branca e cinza-claro estava escarrapachada numa das poltronas. Patrícia apresentou-a: − Esta é Vita Sackville-West. Sentou na poltrona, colocou a gata no colo e fechou o livro. Era Virginia Woolf, The voyage out. Na capa verde-claro, no interior de um quarto aberto para uma enseada cheia de navios, havia uma moça recostada num diva de estampado quase igual ao das poltronas da sala. Se estivesse de jeans, a moça da capa, ou se Patrícia também usasse um daqueles vestidos brancos, cheios de babados, seriam praticamente idênticas. Acendi um cigarro. − Quer um? − Não fumo. Apontei o livro: − Ela parece com você. − Por isso mesmo comprei esta edição − Patrícia disse. Depois, estudada, virou de perfil, tirou os óculos, puxou o cabelo para a nuca e prendeu-o num coque, baixando um pouco o rosto. − Tenho certeza absoluta que sou a reencarnação de Virginia Woolf. Você não acha que sou a cara dela?
Era verdade, ou quase. Faltava certa angústia, ainda. Tentei brincar: − Pena que desta vez Vita tenha reencarnado como gata. − Em compensação, tenho certeza que Márcia é a reencarnação de Katherine Mansfield. Desta vez resolvemos essa história. Well, agora a tarde ficará cada vez mais fria, e enquanto a bruma sobe do rio Ouse, ela vai acender a lareira e preparar um chá, talvez Earl Grey, em bules e xícaras de porcelana com delicadas guirlandas de flores campestres, para esperar Roger e Lytton. Depois, quando já estivermos na segunda ou terceira chávena, chegará o pobre Leonard, carregado de provas das novas edições da Hogarth. E pela noite adentro, sem dar muita atenção ao boletim dos bombardeios transmitido pela BBC, ficaremos lendo em voz alta, encantados, os novos poemas de Eliot. Ou falando mal de Joyce, aquele grosseirão, interrompidos apenas pela chegada do pequeno Quentin e Vanessa − mas quem seria Vanessa? Pouco provável que fosse a tecladista de cabeça raspada ou a japonesa enorme do baixo elétrico − e eu? Quem sabe E. M. Forster, de volta da índia para encontrar Alec Scudder. Comecei ame sentir tão confortável que cheguei a estender os pés para alguma invisível banqueta de veludo adamascado. − Cuidado − avisei. − Não vá encher os bolsos de pedras e entrar no Tietê. Patrícia ia responder qualquer coisa. Inteligente, bem-humorada, quem sabe um pouco pedante, mas coerente com a nova Patrícia que, além de fazer com que me sentisse muito bem, tinha belas pernas, queimadas por um sol que Virginia Woolf poucas vezes ou nunca tinha visto. Chegou a abrir a boca, acariciando a gata. Mas de repente, solo de guitarra, o rock and roll entrou em cena. Parada na escada de madeira, de calcinha e sem sutiã, completamente fora de propósito naquele suave ambiente british, um exemplar do Diário da Cidade nas mãos, Márcia gritava:
− Quem deixou esse cara entrar? Patrícia, você me paga. Quem esse idiota pensa que é, me usando como pretexto para explorar a história de uma pobre mulher desaparecida num pasquim escroto de imprensa marrom. E aquela perua O'Connor ainda conta que eu sou filha de Dulce Veiga. Já disse e repito: não sei nada sobre essa maldita história. Não vou dizer porra nenhuma sobre isso porque nem eu mesma sei. Miando alto, Vita saltou do colo de Patrícia e desapareceu no interior da casa. Márcia jogou o jornal no meio da sala: − Quero ser reconhecida pelo meu próprio talento. Me recuso a alimentar toda essa necrofilia baixo-astral em torno da minha mãe. Subiu as escadas, bateu uma porta. Patrícia jogou o livro sobre a poltrona: − É assim mesmo. Ela é Leão, uma estrela. Você é Aquário, o oposto. Sabe aquela coisa, se atraem e repelem? − Começou a subir as escadas. De repente parou, voltou-se e afirmou numa voz que soava inexplicavelmente triste: − Tudo vai dar certo. Afinal, vocês têm as luas em conjunção, em Virgem. Já devem ter tido alguma encarnação juntos. Sozinho na sala, sorri para o sorriso de Dulce Veiga, jogado no chão. "Quero encontrar outra coisa", dizia a legenda. Eu também, suspirei. A gata voltou, instalou-se em cima do jornal. Talvez não fosse a reencarnação de Vita, mas era sem dúvida muito britânica, apesar de birmanesa, com seus modos contidos, a pequena mancha escura no focinho que lhe dava um permanente ar de enfado aristocrático. Estendi a mão para acariciá-la, mas ela esquivou-se e caminhou para um biombo no canto da sala, tão lenta que parecia me convidar a segui-la. Atrás do biombo havia uma escrivaninha e uma estante com duas filas de livros. Na de cima, todos os de Virgínia Woolf, incluindo diários, cartas, mais as biografias de Leonard Woolf, Quentin Bell e John Lehmann. Muito manuseados, desordenados, riscados, certamente não estavam ali escondidos
para impressionar visitas. Que de resto, naquela distância, deviam ser raras. Embaixo, além do I Ching, apenas livros sobre Astrologia, a maioria em inglês. Ao acaso, li os nomes de alguns autores − Liz Greene, Robert Hand, Stephen Arroyo, Dane Rudhyar −, não me diziam nada. A gata roçou nas minhas pernas, depois pulou sobre a escrivaninha. E lá, entre caixas de incenso indiano, cristais, pedras e inúmeras caixinhas de vários tamanhos e formatos, estava o que imaginei que fosse meu mapa astral, pelo menos havia meu nome no alto da folha. Já tinha visto em revistas, mas não compreendia aqueles sinais dentro do círculo do Zodíaco, ligados uns aos outros por linhas retas, azuis ou vermelhas. Passei a mão pelo dorso de Vita Sackville-West. Ela ergueu no ar a cauda felpuda, depois deixou-a tombar de leve sobre o desenho do que devia ser um planeta em forma de garfo, cheio de traços vermelhos ligando-o a outros planetas. − Nunca vi um Netuno tão aflito em toda a minha vida − disse Patrícia às minhas costas. − Só estava dando uma olhada, não entendo nada. A gata pulou no colo dela. E ficaram as duas me olhando com aquele mesmo olhar um tanto vesgo de Jandira de Xangô, quando via em mim coisas que nem eu mesmo conseguia ver. − Você deve ter pés tão frágeis − ela disse. Era verdade. Eu tinha pés magros, fracos, pequenos demais, que tropeçavam e doíam o tempo todo. Pensei que Patrícia ia pedir para que eu ficasse descalço, mas ela fez um movimento de cabeça em direção ao andar superior. − A superstar está mais calma. Pode subir agora. Enquanto subia, fui compreendendo. No andar de baixo, Inglaterra, começo do século, flores desmaiadas nos estampados, chá e simpatia. No andar de cima, Nova York ou Berlim, o final envenenado deste mesmo século. A divisão era tão radical que não se podia dizer que fosse
maluca. Pelo contrário, parecia perfeitamente equilibrada. Mais ainda quando, pela janela ao lado da escada, vi a pitangueira lá fora: o Brasil ficava no quintal. Como numa galeria pop exclusivamente feminina, pelas paredes fui identificando pôsters de Janis Joplin, Patty Smith, Tina Turner, Laurie Anderson, Suzanne Vega, Sinéad O'Connor, Madonna, Annie Lennox e outras que eu não conhecia. De brasileiras, apenas Wanderléa, Marina e Rita Lee, vestida de fada. Pisquei para Rita. Se Deus quiser, lembrei, um dia eu quero ser índio. O vago perfume de incenso e chá Mu do andar inferior cedia lugar ao cheiro denso de maconha e cigarros. A porta do quarto de Márcia estava aberta. Ela continuava de calcinha, mas tinha vestido aquela medonha camiseta das Vaginas Dentatas. Pernas cruzadas, sentada na colcha amarelo-brilhante sobre o colchão colocado direto no assoalho, em frente a um cinzeiro cheio de pontas. Vacilei na entrada, exagerando na atitude de respeito. O temor do macho, uma vagina dentata devia adorar esse tipo de coisa. − Entra de uma vez, vamos fazer logo esse negócio. Sentei no chão, o gravador entre nós. − Não vou dizer nada sobre minha mãe. − Tudo bem − eu disse. Ela acendeu a ponta de um baseado. − Só vou dar essa porra de entrevista porque Patrícia me convenceu. Ela diz que é bom para o grupo. Fuck off: a mídia, esses caçadores de cabeças. Hã-hã, eu disse. Com todo aquele sol lá fora, a janela continuava fechada. Na penumbra, além da cama e roupas espalhadas, quase todas pretas, havia uma tevê ligada sem som, vídeo, tape-deck, uma guitarra em pé num canto e um único pôster. Iluminado pelas vibrações coloridas da televisão, o rosto ao mesmo tempo frágil e duro, de maxilares salientes, queixo quadrado e lábios femininos, o rapaz − para minha surpresa era um rapaz − parecia um pouco com Pedro, mas parecia mais Jim Morrison. Um Jim Morrison que não
estivesse morto, enterrado naquele cemitério em Paris, nem velho, se ainda vivesse ou, como diziam, escondido e louco em alguma cidade remota da América. Um Jim Morrison rejuvenescido que, de acordo com os tempos, tivesse também descolo-rido os cabelos, e continuasse cantando aquele interminável final de um apocalypse now eternamente adiado. Ia perguntar se era realmente ele, alguma montagem − seria possível cortar e oxigenar os cabelos de uma fotografia? Márcia estendeu o baseado. − Vamos lá? Cruzei as pernas, prendi a respiração. Com a ponta dos dedos, ela eriçou os cabelos. Me senti numa squatter house em Kreutz-berg, antes da queda do muro. E apertei o botão do gravador. 24 Márcia Francisca da Veiga Prado não era nome de estrela. Mas esses quatro nomes tinham história. Márcia, modernezas do fim dos anos 6o, heranças de JK; Francisca homenageava a avó goiana, mãe da mãe, diziam que sangue de índia com alemão, estranhos olhos verdes; Veiga vinha de Dulce, e Prado do pai Alberto. Alberto conhecera Dulce quando era apenas um estudante de teatro, e ela uma cantora conhecida. Ele então, no nome artístico, preferira o Veiga ao Prado, mais dramático. Quando a mãe desapareceu, Márcia não tinha dois anos. O pai, filho único, mandou-a primeiro para a avó paterna, no Rio de Janeiro, uma senhora portuguesa bem de vida, viúva num apartamento em Copacabana. Márcia tinha sete, oito anos, quando ela Me conte a sua vida, pedi meio sem graça. Eu nunca fora nem seria um bom repórter, desse tipo que espicaça e provoca, eu tinha medo de ferir. Quase sem me olhar, Márcia falava de cabeça baixa, acendendo cigarros,
roendo as unhas ou espiando de vez em quando a tevê ligada. Espiei também, acompanhando seus olhos, mas não cheguei a descobrir se, numa sessão da tarde qualquer, era Imitação da vida, o Erro de Siuan Slade ou O candelabro italiano. Quando perguntei ela disse que tanto fazia, esses melodramas ridículos românticos caretas de vinte anos atrás, que ela adorava. Sou louca por Troy Donahue, revelou, e achei que se fosse mesmo Imitação da vida ela devia achar a mãe Dulce a cara de Lana Turner no papel de Lora Meredith. Mas não morreu atropelada, que se excedia no vinho do Porto. O pai, já então ator e diretor razoavelmente conhecido, mandou-a para a outra avó, a tal Francisca Veiga, num lugar chamado Alto Paraíso de Goiás. De lá eram as memórias mais felizes, tipo banhos de rio, vestidinhos de algodão, tetos de sapê, pés descalços e inacreditáveis noites estreladas. Tinha fotos, se eu queria ver. Márcia cantava pelas estradas procurando o som das asas das borboletas, quando param de voar e tremem brevemente sobre as flores abertas, e o som dessas flores, enormes hibiscos vermelhos, quando o vento louco sopra em suas pétalas, e o das pedras jogadas nas corredeiras, enquanto rolam por baixo d'água batendo em outras pedras, e o do cascalho seco estalando sob o sol em pleno meio-dia, e as estrelas que caem, transformadas numa chispa ao desaparecer no horizonte de trezentos e sessenta graus, no coração do Brasil. Tudo muito poético e bucólico e folclórico, enquanto a avó Francisca, falei nada sobre Dulce, nós tínhamos combinado, só perguntei que-mais ou qualquer coisa assim, evitando falar nas rosas que o pai tinha mandado, e continuei a ouvir suas histórias, decupando na mente aquelas cenas tropicais que pareciam feitas de encomenda para uma futura cinebiografia da artista quando jovem. Ela soava falso ao contar essas coisas, mas essa falsidade, percebi aos poucos, não passava de um jeito de esconder a emoção, porque no fundo, além de todos os filtros glamourosos, alguma coisa daquela história verdejante devia mesmo ser verdadeira. Pelo menos a voz dela, às vezes, era realmente assim como buscara. Eu acendia cigarros, ela acendia cigarros, eu
pensava que ela não devia fumar tanto, se queria mesmo preservar tanto sol pela garganta. Ao mesmo tempo, lembrava sua voz radioativa, então editava mentalmente títulos como anjo-contaminado-do-apoca-lipse-pirado-de-dentro-de-todos-nós, e as falhas e que-meio curandeira, aprontava tisanas e ungüentos para capiaus. Honesta, Francisca provava cada uma de suas beberagens antes de aplicá-las. E como numa fábula irônica, um dia, misteriosamente, morreu envenenada por um de seus próprios remédios. Não havia autópsias nem paranóias por lá: só um caixão barato, coberto por terra vermelha. E a certeza angustiosa: não tinha mais ninguém no mundo além de Alberto Veiga. Pai artista, isto é, instável, capaz de todas as vilezas e grandezas num piscar de olhos. Aos quinze anos, Márcia foi mandada para Londres, para "completar sua educação". Segundo Alberto, esse era um sonho da mãe Dulce Veiga, que ninguém sabia onde andava. Foi lá que conheceu Patrícia, no colégio onde estudava e, um pouco mais tarde, ícaro. Com ele, que queria ser músico, começaram a tocar em metrôs e pubs, e ela suspirou ao falar de Noting Hill Gate, Covent Garden, I remember you in Ladbroke Grove, canais de Camden Town, bras na voz eram corretas e estavam certas assim, inteiramente erradas: ela era um rouxinol brilhante de césio goiano. Não vinha nenhum ruído lá de baixo nem de fora, só algumas crianças gritando longe, na rua de cidade do interior, e quando virei a fita e disse muito bem, vamos à segunda parte de sua vida, ela de repente estremeceu como se sentisse frio. Estendeu a mão para algum lugar e pegou a jaqueta de couro, enrolou-se nela como se fosse um cobertor. Pensei que assim, magra, pálida, os olhos verdes arregalados, aquele cabelo branco, parecia a imagem, negativa, claro, de alguma campanha antidrogas. As partidas, as mortes, os exílios, e tive um impulso louco de adotá-la, cuidar para que bebesse bastante leite, mel, germe de trigo, vitaminas, sais minerais. Mas eu não estava certo se esse tremor contemporâneo, esse ar doentio, essa fragilidade cosmopolita, de repente e apenas não passavam de puro simulacro. As mil faces da pequenas tardes
cinza, roupas pretas, cheios de anéis. Patrícia recolhia os pennies shillings minguados, ícaro tocava qualquer coisa eletrônica, Márcia cantava Guantanamera de poncho, Let it be com purpurina no rosto, Tico-tico no fubá com bocas de Cármen Miranda, e também as primeiras músicas dele, com letras dela ou Patrícia, que lia e escrevia o tempo todo num quartinho em Bloomsbury. Se eu queria ver, tinha foto na Time Out e tudo. Um dia largou os estudos e fugiu para Nova York com ícaro. Caíram de boca na heroína, alguém dedou, o pai mandou buscá-la. Estava ficando velho, sentia saudade e remorsos por não tê-la assumido, mandou buscá-la para que ficasse junto dele enquanto envelhecia e pudessem assim reunir os pedaços de cada um. À força, Márcia voltou, tinha dezoito anos, um mês numa clínica, ícaro veio pouco depois. E Patrícia quase junto. Então brigou com o pai, que ela chamava de Alberto, um careta repressor, conheceu as garotas Márcia: a frágil, a louca drogada, a órfã rebelde e maldita. Só que eu não conseguia evitar uma tristeza enorme enquanto ela continuava a lembrar de todas aquelas cenas perdidas nas ruas nevoentas de London, London, olhando de vez em quando para o pôster de Jim Morrison com cara de Sid Vicious, abrindo pastas para mostrar fotos, alfinetes nas narinas. Na tevê o filme acabou, entrou um comercial de iogurte, biscoitos, ela apertou o controle remoto e a imagem se foi. Sem a luz da tevê o quarto ficava ainda mais escuro, com qualquer coisa pesada no ar. A voz dela foi diminuindo enquanto eu tentava fazer algumas perguntas, mas ela parecia exausta. Cada vez mais encolhida sobre a colcha amarela, foi ficando quieta, e eu também, porque era tão difícil, eu sabia, voltar para ser aqui e começar finalmente a crescer ou morrer, tanto faz, dá no mesmo. Assim, aos poucos, enquanto os dois íamos parando de falar, o quarto foi ficando cada vez mais escuro, e da banda, pensaram numa coisa assim bem heavy, muito hard, mas queria romper aqui você sabe como é, e o resto eu já sabia, não? eu olhei em volta, a cara de Jim Morrison na parede, três brincos na orelha, e claro que eu compreendia,
compreendia tudo, perguntei se ela queria parar, ela disse que sim, e eu desliguei o gravador. 25 Perdidamente, pois é assim que se define a ação de quem não sabe aonde vai, nem o que faz, Márcia olhava a fotografia daquele rapaz. Que não era Jim Morrison, nem Pedro ou alguém que eu conhecesse. Acompanhei seu olhar. Pela primeira vez naquela tarde, ela desviou os olhos de onde estavam para olhar meus olhos, que acompanhavam os olhos dela, interceptados no meio do olhar. Entardecia no quarto quase escuro. Ficamos nos olhando assim, sem saber aonde ir. Os olhos dela: verdes de acrílico, pupilas dilatadas. Os meus: olheiras, cansaço, miopia progressiva. Alguém precisa cuidar de você, menina, pensei. Não sei o que ela pensou. Ao mesmo tempo, desviamos os olhos para procurar, outra vez, a foto do rapaz que parecia Jim Morrison. Ela disse: − Esse era ícaro. − Por que era, ele morreu? − Foi, um ano atrás. − Overdose? − Digamos que sim. No meio do silêncio, talvez por isso, no meio do vazio de repente instalado dentro da minha cabeça, emergiu então aquele nome que Pepito dissera, e perguntei: − Quem é Saul? Márcia estremeceu: − Quem? − Saul − repeti, e outra vez, escandindo as sílabas: − Sá-ul, quem é? Ela bateu a palma da mão na coxa nua: − Não tenho a menor idéia.
E subitamente, aos gritos de que não tinha tempo, que tudo aquilo parecia um inquérito policial, um absurdo inútil e idiota, que precisava ensaiar e já era muito tarde, que só faltava eu querer saber sua cor favorita, sua posição sexual preferida, que tinha perdido o saco, e ficou em pé no colchão, as pernas fortes, pernas de quem muito andou, abriu violentamente a janela, deixando entrar uma luz dourada dentro do quarto, depois saltou para o meio do quarto, apertou um botão do tape-deck e, ao som de Lou Reed cantando Walk on the wild side, jogou a jaqueta num canto e me empurrou para fora. Enquanto mergulhava outra vez na galeria pop do corredor, ainda pude vê-la de joelhos, curvada no chão, batendo uma carreira de pó na superfície esmaltada da guitarra. 26 Deitada na poltrona, entre o livro de Virginia Woolf e a foto de Dulce Veiga no jornal, a gata lambia as patas brancas. "Vita", chamei baixinho, "Vita Sackville-West." Ela não se moveu. Ausente, parecia contemplar pirâmides no fundo das próprias pupilas, tapetes persas, nas longas noites sem Virginia, ou os gramados de Long Barn. Não havia ninguém na sala. No livro aberto, em tinta roxa, Patrícia sublinhara esta frase: "As usual in the evening, single cries and single bells became audible rising from beneath". Single cries, repeti, era bonito single bells. No Largo da Matriz, um sino começou a tocar. De repente, apavorado, lembrei que deviam ser seis horas. Eu tinha que encontrar Rafic, o chefão que odiava esperar. Precisaria de um helicóptero capaz de cruzar a cidade até o Morumbi em menos de cinco minutos: dinâmico repórter vence mais uma prova na dura batalha pela sobrevivência. Comecei a andar em direção à porta, mas enquanto andava começou a acontecer também uma coisa completamente paranóica: tive certeza que, de algum canto, Márcia devia estar me espiando, e também aquelas outras três, a
gorda de cabeça raspada, a japonesa gigantesca, a negra de trancinhas. Todas escondidas, com suas camisetas de vaginas dentatas, rindo de mim. Espiei atrás do biombo, tudo continuava igual. A não ser por uma varinha de incenso queimando sobre a mesa, quase no fim, a cinza prestes a cair sobre o vértice de uma pirâmide de cristal. No andar de cima, Márcia aumentara ao máximo o volume do som. Lou Reed convidava: "Hey, baby, take a walk on the wild side". Como se fosse pintada, indiferente aos sinos, ao rock e à minha paranóia, Vita não se movia. Abri a porta, atravessei o jardim onde os jasmins começavam a cheirar. Enjoativos, fúnebres. A moto continuava estacionada na calçada. Alcancei a praça. Entre crianças e namorados, nenhum táxi à vista. Pensei em entrar de novo na casa, pedir para telefonar, mas as vaginas dentatas à espreita, emboscadas, iriam se deliciar com essa cena de desamparo masculino. De repente eu a vi outra vez, do outro lado da rua. Foi muito rápido. Dulce Veiga estava parada na porta da igreja, com um vestido leve, de verão. Ao me ver, ela estendeu o braço para cima, em direção ao céu, como sempre fazia, depois baixou-o e desapareceu dentro da igreja. Desviei do anjo louro erguendo o peixe de prata no meio do chafariz, mas a boca do peixe estava completamente seca, não saía nenhum jato d'água dela para encher o tanque redondo entupido de copos de plástico, pedaços de jornal, camisinhas usadas, pontas de cigarro, um querubim no meio do lixo. Eu deveria ter voltado, para telefonar ou descer a ladeira até encontrar um táxi, cruzar a cidade o mais rápido que pudesse, enfrentar Rafic, a fera muçulmana disposta a fazer quibe cru dos meus colhões. Mas irracional, irresponsável, atravessei a rua atrás dela. Uma moto freou, o gravador caiu no chão. Um cara de cabeça raspada gritou: − Quer morrer, veado? Peguei o gravador todo arrebentado, a fita escapava de dentro. Se
fosse uma máquina fotográfica, o filme estaria velado, e para sempre perdidas as comoventes confissões de Márcia F. Na praça, todos olhavam. Continuei andando, sem olhar para trás. Da janela do sobrado, Márcia Felácio e as Vaginas Dentatas deviam estar assistindo a tudo. Enquanto eu subia os degraus da igreja, o cara ainda gritou: − Ai-ai querida, vai ver que ela é filha de Maria. Não voltei, as orelhas em fogo. Covarde, gemi para mim mesmo, fracote. Entrei na igreja, parecia vazia, nenhuma outra porta aberta a não ser aquela por onde eu entrara. E Dulce Veiga não estava lá. A única pessoa dentro da igreja, ajoelhada ao lado do altar principal, era Patrícia. Olhos fechados, ela rezava aos pés da imagem de um santo negro, colocado sobre uma urna de vidro. Toquei seu ombro, ela olhou para cima: − Onde está Dulce Veiga? − Não sei − ela disse −, não sou detetive. − Eu a vi entrar na igreja. − Você está louco, estou aqui há meia hora, não entrou ninguém. − Patrícia apontou para a imagem do santo, levou o indicador à boca, pedindo silêncio, e sussurrou: − Faz um pedido. Faz que ele atende. No vidro da urna havia um papel contando a história de um certo beato Antônio de Categeró, escravo que virará monge franciscano, depois eremita, e morrera na Itália, quinhentos anos atrás. Meu Deus, pensei. Pero Vaz de Caminha acabara de mandar a tal carta. Dentro da urna, estendidos num estojo aberto, dois ossos do antebraço do beato. Era meio nojento, e eu não entendia como aqueles ossos pequenos, finos, tinham vindo parar no alto da Freguesia da Nossa Senhora do Ó, se o santo era italiano, africano ou brasileiro. Patrícia puxou a barra da minha calça. − Faz um pedido − insistiu. Eu fiz: pedi para descobrir onde andaria Dulce Veiga. Me benzi rapidamente, sem ajoelhar, eu tinha que correr para a casa do maldito Rafic.
− Estou atrasado, tenho que ir até o Morumbi. Patrícia benzeu-se. Beijou as pontas dos dedos, encostou-os na urna com aqueles ossos, depois tocou de leve na própria testa. Mesmo com seu novo ar de solteirona precoce, não combinava com aquela cena. Nem eu. O rosto dela parecia muito sereno quando levantou. − Eu levo você de moto − disse. Talvez, afinal, eu devesse começar a acreditar em milagres. Em rezas, em sonhos, em delírios. 2 7 O vento batia na cara de E. M. Forster, equilibrado na garupa da motocicleta de Virgínia Woolf. A cara dele era queimada pelo sol de Calcutá, Nova Délhi, talvez Poona. Ela parecia magnífica com seu capacete de astronauta, jaqueta e botas de couro negro. Desviava dos ônibus, costurava em ziguezague entre os carros, fazia curvas como quem desafia a gravidade no globo da morte, quase deitada no asfalto, passava embaixo dos espelhos retrovisores dos caminhões. Pessoas gritavam coisas ao vê-los passar, eles não ouviam. Os cabelos longos dela escapavam por baixo do capacete para fustigar os olhos desprotegidos de Edward Morgan Forster, agarrado na cintura de Virginia Stephen Woolf, sessenta ou setenta anos depois, de volta da índia. Para rever Alec Scudder, pensei. E enquanto cruzávamos as marginais, entre nuvens de fuligem, desta vez sem medo algum, lembrei exatamente de como conhecera Pedro. 28 Pedro era tão claro que, no escuro, quando estava nu, eu ficava olhando para ele à espera de que sua pele fosforescesse como roupa branca na luz negra. Talvez por isso, por outras coisas também, a primeira vez que o vi tive uma sensação de dourado. Digo
sensação porque, no primeiro momento, não vi seu rosto, seu corpo, a dimensão que ocupava no espaço. Vento,poeira. Tudo isso, que vinha dele e soprava sobre mim, era dourado. Eu estava quase dormindo quando ele entrou numa daquelas estações de metrô meio desertas depois das dez, onze horas da noite. Ponte Pequena, Tiradentes, Luz, nunca vou saber qual, nunca vou saber de onde veio, naquela vez e em todas as outras. No vagão vazio, apenas eu sentado num canto, a mochila entre as pernas, morto de sono depois de mais uma daquela viagens de ônibus ao Rio de Janeiro, ele podia ter sentado. Foi assim que pensei quando a porta se abriu e entrou alguém que eu ainda não sabia que era ele, e não abri os olhos, porque não valia a pena, eu não procurava ninguém, naquele tempo. Pedro não sentou, embora todos os lugares, a não ser o meu, estivessem vazios. Ficou parado à minha frente, a mochila exatamente entre seus dois pés abertos. E seus pés, em sentido oposto, quase colados nos meus, ridículos, malucos Como se dançássemos, dois homens estranhos e sozinhos, no vagão do último metrô. Nesse momento, começou a acontecer aquela sensação. Ainda sou capaz de lembrar como, pouco antes devê-lo parado à minha frente, fui abrindo devagar os olhos. Como se despertasse enquanto alguém abria a janela, tomado por aquela mesma sensação de dourado de quando amanhece ou anoitece nos dias claros de luz, e o sol, um instante antes de surgir ou sumir Joga sobre o horizonte todos os seus presságios, e se você souber olhar, como os homens do campo e os bichos parecem saber, poderia perfeitamente profetizar como será esse dia ou essa noite que começam ou terminam, até mesmo o dia e a noite seguintes, e muitos outros. A estação inteira, se tiver esse olhar, você pode. Desse mesmo jeito, feito bicho ou homem do campo, embora não fosse nenhum dos dois, quem sabe por estar suspenso à beira do sono, por outras coisa também, assim o previ, antes devê-lo. Dia após dia, no começo claro, e uma por uma de todas as estações de Pedro, antecipei. Depois, igual a essas nuvens douradas nas bordas e roxas no centro, que à medida que o sol sobe ou desce, nasce ou morre, vão transbordando lentas a escuridão do roxo em seu núcleo, enquanto o dourado se desfaz tão rápido que, se você piscar, num segundo eleja não está mais ali, e enquanto você se pergunta mas como? ou para onde foi? porque o roxo
quase negro tomou toda a superfície da nuvem e, ela mesma, além da nova cor, já ganhou também outra forma súbita e inteiramente diversa. assim ele se tornaria. Por enquanto, não, por enquanto eu tinha apenas uma sensação de dourado. Erguendo os olhos para o rosto daquele homem jovem que eu ainda não Sabia que era Pedro, entre os solavancos do trem, do lado oposto da barra amarela que afunda pelo túnel, tomado por aquelas sensações e todas essas outras que tento especificar agora, algumas sem nome, como aquele calafrio crispado e gozoso da montanha-russa, um segundo antes de despencar no abismo, esbarrei num rosto claro que oscilava de um lado para o outro, eu não Sabia se pelo balanço do trem ou se estaria um pouco bêbado. Devia ser sábado, passava da meia-noite. Ele sorriu para mim. E perguntou: −Você vai para a Liberdade? −Não, eu vou para o Paraíso. Ele sentou-se ao meu lado. E disse. −Então eu vou com você. 29 Não foi difícil encontrar a casa de Rafic. Na curva da Avenida das Magnólias, seria impossível ignorar aquele número 58 brilhando em neon rosa no começo da noite. Samambaias verdejantes despencavam em cascatas no jardim suspenso, mas insuficientes para ocultar o grafite no muro daquele bolo de cimento coberto de antenas parabólicas. Com spray vermelho alguém escrevera Turcão Bundão, bem ao lado de um enorme falo esporrando notas de cem dólares. Rico como era, não entendi por que ele não mandava pintar ou raspar aquele negócio. Mas talvez, fui pensando, talvez achasse excitante aquele falo, aqueles dólares. Desci da moto, pisei numa carta de baralho caída no chão. Antes que pudesse vê-la, Patrícia pegou-a. Era um rei de espadas. − Cuidado com esse homem − ela disse. E desapareceu na curva, atrás da ilha de bananeiras.
O portão abriu-se, olhei para cima, para a câmera do circuito interno de televisão, precisei me conter para não dar adeusinho. Pelo menos minha aparência, acho, não era suspeita, embora me sentisse um bocado sujo. Meus jeans desprendiam aquele cheiro de cachorro molhado de chuva, de roupa seca na sombra, passada a ferro ainda úmida. Esse cheiro, misturado ao suor, à fuligem das ruas, devia criar em torno de mim uma aura pestilenta. Para agravar as coisas, o perfume de dama-da-noite solto no jardim me dava vontade de vomitar. Cheguei a estender a mão para a amurada de cimento. No alto da escadaria, entre crisântemos impecáveis, polpudos, amarelos, espiava um anão de cerâmica. Parecia o Zangado. No meio da orgia de bananeiras, palmeiras nanicas, espadas-de-são-jorge e outras plantas de folhas agudas, lustrosas, que pareciam de plástico naquele excesso de esplendor, apareceu de repente um mordomo. Nada britânico, apesar do uniforme e luvas brancas. Lembrei do mordomo filipino de Reflexions on a golden eye, não era difícil imaginar o soldado se espojando nu naqueles gramados, enquanto Marlon Brando espiava. O sotaque cearense cortou a fantasia: − O senhor é o moço do jornal, é não? Falei que sim. E segui-o pelos degraus, usava sandálias havaianas. Estendeu a mão para a parede envidraçada, depois sumiu. Imensa como um navio, a sala era toda branca. Os tapetes, as paredes, sofás e poltronas, a mesa com tampo de vidro cheia de prataria baiana. As cores estavam apenas nos quadros acima dos sofás. Primitivos, tropicais, laranjas e verdes e azuis berrantes, bandeirolas de São João, ladeiras, igrejinhas no topo de colinas, selvas com tucanos e araras de bicos e penas resplandecentes, palmeiras e luas cheias solitárias pairando sobre marés encapeladas. Tudo isso em torno do que devia ser a peça principal: em moldura dourada, o retrato de uma mulher loura, empinada, com uma águia entre as mãos. Fiquei vagando no meio daquilo, com meu cheiro que empestava o
ambiente. Das caixas de som colocadas no alto saía uma música tão familiar que custei a reconhecer Ray Conniff. Sem me atrever a macular a alvura dos sofás, cheguei mais perto de um quadro que lembrava Di Cavalcanti. Eu precisava mesmo de óculos: era uma mulata extremamente parecida com aquela que Castilhos publicara a foto. − Muito bem, muito bem. Beleza, vejo que tem bom gosto − disse uma voz. Eu me virei, o gravador caiu no chão, a fita saiu para fora outra vez, levei um bom tempo até conseguir enfiá-la lá dentro, sorrir e estender a mão para Rafic. Era um cinqüentão grande, forte, de ombros largos e cabelos inteiramente grisalhos contrastando, ensaiados, com as sobrancelhas cerradas e os bigodes negros. Usava um terno de linho branco, a camisa vermelha aberta exibia três correntes de ouro entre os pêlos negros abundantes. Cheirava a Paço Rabanne pour homme, e isso fez com que voltasse a consciência fatal do meu próprio cheiro. Para o próprio bem dele, tentei ficar o mais longe possível, mas Rafic insistia em se aproximar e dar palmadas nas minhas costas. − Já sei que é um grande apreciador de arte, Castilhos me contou tudo a seu respeito. Fiquei imaginando que tipo de coisa Castilhos poderia ter contado. As unhas esmaltadas de Rafic apontaram o quadro da mulata: − Não é uma verdadeira obra-prima? Minha última aquisição, sou um colecionador exigente, você sabe. Rapaz novo, mas muito original. A moça é modelo, atriz, cantora. Puta talento, puta mulher. Até pedi a Castilhos que desse uma força no jornal. − Muito expressivo − eu disse. A náusea voltava, mais forte. Rafic me puxou pelo braço para um bar também branco, no canto da sala. As qualidades da mulata, do pintor, de Castilhos, do jornal − e as minhas, temi. Ele me empurrou para cima de um banquinho branco, deu a volta no balcão,
debruçou-se na minha cara. Ornar Sharif no papel do magnata grego, o senhor embaixador de Érico Veríssimo. Mostrou a vitrine de bebidas. − Vai querer o quê? Tudo estranja, legítimo. Tinha pensado numa singela água com gás. Mas diante daquela visão do paraíso − Cutty Sarks esplendorosos, Gordons translúcidos, Fundadores dourados − sucumbi à tentação. − Jack DanieFs, puro. − Seu sacana − ele riu, dentes de ouro ao fundo dos bigodes negros. − Não falei que tinha bom gosto? Encheu primeiro meu copo, depois o dele, JB com gelo. No minuto de silêncio em que o líquido caía dentro do cristal, fiquei tentando lembrar se aquela música seria Aquellos ojos verdes, ou seriam negros? Bebi o primeiro gole, cheirava a madeira perfumada. "Sê como o sândalo", lembrei − de onde? − "sê como o sândalo que perfuma o machado que o fere", parecia frase do calendário Seicho-No-Ie de Teresinha O'Connor. Num painel ao lado das bebidas havia várias primeiras páginas do Diário da Cidade, desde 64 ou 68, transformadas em pôsters. Numa delas, li: "Comunismo finalmente extinto do país". − Castilhos falou que o senhor queria. O anel de ouro brilhou no tampão do balcão. Tinha uma águia em relevo. − Pelamordedeus, senhor, não. Ainda estou enxuto. − Castilhos disse que você queria falar comigo. O anel chispou sob os cristais do lustre. − Be-le-za, uma verdadeira beleza o que você escreveu sobre Dulce Veiga. Minha mulher Silvinha chegou até a chorar, ela é muito sensível, pobrezinha. Que talento, que sensibilidade, que − que doce amargura −, meu caro jovem. Meus ombros se soltaram: ainda tinha um emprego.
Rafic deu a volta no balcão, sentou à minha frente e abriu as pernas. Devia ter pau grande, pensei sem querer. Mocassins de cromo alemão, mas as meias vermelhas combinando com a camisa pareciam sintéticas, com frisos do lado. Então lembrei, eu já o tinha visto. Era aquele homem de mãos dadas com Dulce Veiga numa mesa de boate, na foto do arquivo. Não sabia bem se na festa de entrega do prêmio a Leniza Mais ou com Lilian Lara, pensei em falar nisso, já que estava tão interessado talvez ele soubesse onde, afinal. Mas o Jack Daniel's, a dama-da-noite invadindo as portas abertas, o Pacco Rabanne e o meu próprio cheiro estavam retardando meus reflexos. Além disso, ele não parecia interessado em ouvir. − O dia inteiro, um sucesso. Desde manhã cedo, uma loucura. Agências de publicidade, canais de tevê, gravadoras. Todo mundo quer saber onde anda Dulce Veiga. Um editor quer publicar uma biografia dela, tem produtor já armando programa especial, não sei que lá. Gente dando depoimento, até me convidaram. Só falta uma coisa. Deu um gole no uísque, cravou os olhos em mim. Eu estava ocupado em ler outra manchete do jornal: "Militares moralizam o país". Ele aproximou o rosto, cravos na ponta do nariz adunco, aquela pele avermelhada de quem bebe bem, e há muito tempo. Como um segredo, revelou: − Ela: encontrar Dulce Veiga. Só isso que falta. − Certo − eu disse. E peguei um cigarro. Ele acendeu, o isqueiro de ouro tinha uma águia gravada na tampa, igual à do anel. Tornou a encher os copos. − Portanto, meu caro e talentosíssimo rapaz, a partir deste momento você está dispensado de cumprir horário no jornal. De agora em diante seu trabalho vai ser exclusivamente esse, beleza. Um trabalho delicioso, encontrar nossa querida Duke Veiga. − Mas ela pode estar morta num terreno baldio, numa beira de estrada − completei −, sem lápide nem flores. − Tudo era meio vertiginoso. E
cheirava pior que eu. − Estou certo que não. Verdade que ela teve uns envolvimentos estranhos por aí. Na época da bendita revolução. Guerrilheiros, subversivos, gente dessa laia. Coisa de artista, você sabe. Infelizmente, pelamordedeus. Por isso mesmo deve ter fugido. E nós vamos encontrá-la, custe o que custar. − Não sei se. − O que for preciso. Pesquisa, entrevista, viagem. Basta você telefonar, eu autorizo, carta branca. No balcão do aeroporto, na hora, qualquer coisa. Mas é que, tentei dizer. − Inclusive me resolve um problema no jornal. Que é justamente onde aproveitar alguém do seu cacife. Falta de vagas, recessão, infelizmente você sabe. Assim você fica como repórter especial, me tira até um peso da consciência por não poder aproveitar alguém do seu gabarito, entende? Eu entendia. Era bastante objetivo. − A notícia do ano, beleza. O nome do Diário da Cidade por cima outra vez. E o seu, meu caro jovem. Pode até escrever um livro, editor não falta, pagando os tubos. Em dólar: Onde andará Dulce Veiga?, já pensou. Um sucesso, como você sabe, sou muito bem relacionado. E confidencialmente, não conte a ninguém pelamordedeus, ando pensando em me candidatar. Deputado, senador, convites não faltam. Você parece esperto, pode até trabalhar comigo, beleza. Que tal uma assessoriazinha de imprensa? Eu estava ficando bêbado. Navio em alto-mar, num dia de tempestade, a sala branca girava. Imaginei Márcia sentada no chão, de calcinha e camiseta de vagina dentata, batendo uma carreira de pó no vidro daquela mesa, entre pratarias baianas. Branca como a sala, a cocaína brilhando entre cajus de prata. E Jim Morrison na parede, três argolas na orelha. This Li the end, arrotei, ele não notou. Rafic estendeu a mão:
− Topado? Era pegar ou largar. Apertei a mão dele, não tinha jeito. Eu ia começar uma lengalenga que não era detetive nem nada, e que nem a própria filha de Dulce sabia onde, quando uma mulher entrou na sala. Loira, toda vestida de verde, colares pesados de ouro, ela brilhava no meio do branco. Era a mulher do retrato, faltava a águia entre as mãos. Nervosa, estalava os saltos nas tábuas entre os tapetes. − Silvinha, meu anjo, este é o jovem autor da crônica sobre Dulce Veiga. Ela estendeu a mão fria, cheia de pulseiras. Tinha pelo menos vinte anos menos que ele, mas os olhos, a boca e os peitos começavam a despencar, na sala de espera da primeira plástica. Olhos pretos astutos, gestos lerdos de quem toma barbitúricos, eu também já a tinha visto. Claro: era "a deslumbrante Silvinha Rafic", sempre citada com fotos na coluna de Teresinha O'Connor, presente nas entrevistas das madrugadas de sábado na tevê. − Como vai − ela disse, voz arrastada. − Você escreve super-bem. Rafic passou a mão em sua cintura, puxou-a para os joelhos. Ela afundou as unhas vermelhas nos pêlos dele, entre as correntes de ouro. Por baixo da camisa vermelha, beliscou um mamilo cabeludo. Deviam trepar bem, pensei. Coito anal, oral, nada ortodoxo. Ele gemeu: − Silvinha também é poeta. Publicou dois livros, faço questão que você leia. Dá um livro a ele, meu bem, dá o Suspiros de outono, ilustrado pelo Ubirajara Trindade, publicado pelo Massao. Ela bocejou, olhou o Cartier: − Outra hora, Rá. Estamos atrasadérrimos, a Joyce está esperando no Rodeio. Suspirei aliviado, Rafic também: − Assim ele torna a nos visitar. Gosto de conviver com os jovens.
Quem sabe uma noitada daquelas bem artísticas, faz tempo que a gente não. Podia chamar o Valdomiro Jorge, conhece o Mirinho? − De vista − eu disse. Era um cineasta de sexta categoria, agora metido em política. − E a Salete de Souza, o Betinho Simpsom, a Selma Jaguaraçu, o Luisito Barroso, a Lazinha Mello e Silva, o Nenê de Vasconcelos, a Aurore Jordan − o ouro falso dos nomes reluzia no meio da sala branca. Silvinha bebericou o uísque dele, depois serviu-se de uma dose de campari. Franziu o nariz, talvez sentisse meu cheiro, depois caminhou até o sofá, parou no meio do caminho, apertou uns botões. Ray Conniff emudeceu, a voz de Simone despencou sobre a sala. Ela sentou, cruzou as pernas, começou a folhear uma Vogue estrangeira. Faltava uma cadela poodle tingida de rosa a seus pés. E os créditos de Dallca subindo sobre a imagem congelada. Rafic me empurrou para a saída. Não foi difícil, eu estava fora de combate. Do lado de fora, surgiu novamente o mordomo nordestino. A náusea voltava, eu tinha que me controlar pelo menos até a Avenida das Magnólias. Através do vidro, Silvinha deu adeusinho. − Apareça − convidou entediada. − Nossas festas são bárbaras, saem em todas as colunas. Rafic me puxou para um canto mais escuro. Longe dos olhos de Silvinha, perto de outro anão de cerâmica. Pelos óculos, esse devia ser o Mestre. − Fala franco, rapaz, você está muito duro? Apertei o gravador. − Como? − Duro, liso, quebrado, a pão e água. Pelamordedeus, eu sou um homem que veio do nada e se fez na vida. Ninguém como eu compreende essas coisas. Antes que eu talvez recusasse, mas não sei se seria capaz, ele meteu a mão no bolso, arrancou uma carteira de couro legítimo, com outra águia
lavrada, abriu-a, tirou um monte de notas. Sem contar, enfiou-as no bolso da minha camisa. − Para os primeiros passos da Operação Dulce. Fui descendo a minisselva tropical, seguindo as havaianas do mordomo. Parado no portão, olhei para trás e vi Rafic outra vez. Todo de branco no meio do verde, uma mão erguida no ar, parecia um almirante em alto-mar. Os dedos abertos formavam o V da vitória. Ou vício, vingança, vergonha, voragem, vertigem, pensei, eu estou bêbado. − O que for preciso − ele gritou. − Qualquer, qualquer coisa para encontrar Dulce Veiga. Nosso rouxinol perdido, beleza. Tropecei para fora. Um vento viscoso, cheirando a azedo, vinha do rio Pinheiros. − Vai com Deus, moço − disse o mordomo. E fechou o portão. 30 Há tanto tempo eu não jantava fora. Era como ir ao cinema. Mesa no canto, azeitonas pretas sem caroço, pão com gergelim, patê de berinjela, bloody mary. Um, dois cigarros. Na frente do rapaz a cara de Rupert Everett em Dancing with a stranger e do casal em crise, Rita Tushingan e Tom Selleck, pizza, guaraná, silêncio farpado. Elis Regina numa FM suave, sentimental eu fico, quando pouso na mesa de um bar, eu sou um lobo cansado, carente. Ao ponto, filé ao molho madeira, gordos champignons, batatas fritas, arroz à piemontesa. A loura com perfil de Grace Kelly, pena o moleton, turma da repartição cantando parabéns para Antônio Moreno, vinho riesling ou cabernet? Cerveja desce melhor, mas vinho chapa, que venga el toro. Uma garfada, um gole. Torta de limão, água com gás. Outro cigarro, café com chantili, licor de strega flambado. Da mesa ao lado Paula Prentiss e Daryl Hannah olham excitadas a chama azul, Mel Gibson e Alan Ladd fingem não ligar. Mais três, quatro cigarros, ar de Humphrey Bogart, se queres saber se eu
te amo ainda, Nana Caymmi na FM, procure entender a minha dor infinda. Outro café, outro licor, sou amigo de Fulano, guardanapo de linho, Belmondo e Carmen Maura de mãos dadas logo à esquerda. Cinco, seis cigarros. Conta paga, gorjeta excessiva, volte sempre, quem me dera. Na saída, os olhos ávidos de Shelley Duvall ao lado de Woody Allen. E o bafo espesso da Oscar Freire sem brisa na noite de fevereiro. Kim Novak passa num Monza cinza, desce no L'Arnaque. Ainda sobrava muito do dinheiro de Rafic. Primeiro passo da Operação Dulce: encher o bucho. Eu poderia pensar que não tinha a menor vergonha na cara, mas sem pensar nada, só uma náusea persistente, ia subindo, depois descendo a Augusta, coração sereno como uma bomba-relógio. Não estava certo, pensei, mas tudo estava certo, lua cheia atrás da torre da Paulista. Cio no ar, presa na esquina. Foi quase em frente ao Long champs que ela barrou meu caminho. Da maneira clássica, pedindo fogo. Era ruiva, cabelos frisados até os ombros, colant justo azul-turquesa. Não usava botas, mas sombra verde nas pálpebras. Quase um ano sem trepar, enumerei: do mundo nada se leva, a vida é para ser vivida & etc. James Dean envelhecido e Kim Bassinger paraibana, frente a frente numa ilha da América do $ul. Os pássaros sobrevoaram nossas cabeças gritando here and now! here and now! Joguei o jogo de jogar o jogo, estilo Dalton Trevisan: - A fim duma transinha? − Pode ser, qual que é? − Ninharia, baratinho. − Quanto, gatinha? − Quinhentos o instante, a hora mil. − E a chupetinha gostosa? − Seiscentos valeu? − Valeu, mas.
− No hotel da Peixoto tem que pagar o quarto. − Quem sabe em casa, maior astral. E mais barato. − Mora só, tesudão? − Fora Deus. − Limpeza, em cima? − Do lado, antes da Praça Roosevelt. − Oquei, sabe que você parece o garoto do Bom Bril? − Bom Bril eu vou te mostrar. − Duvi-dê-o-dó. − Como é seu nome? − Viviane na rua. Na real é Dora. − Rainha do frevo e do maracatu? − Rainha até pode ser, moço. Mas o eu eu não dou não. 31 O elevador continuava quebrado, ninguém nos corredores. Embaixo da porta, só a conta de luz, que nem olhei. Depois da faxina de Jacyr, o apartamento cheirava a pinho-sol, veja campestre. Ele era bom nessas coisas. Em outras também, eu supunha. Larguei o gravador em cima da mesa. Sobre o disco de Márcia, um bilhete de Jacyr: "É bárbarô, vossê é amigo dela, me conçegue um de prezente bofe". E o poema, o poema ainda estava lá, manchado de café. A única mancha do apartamento, parecia proposital. Tive um impulso de guardá-lo imediatamente, junto com todas as outras lembranças de Pedro, que recolhera e escondera de mim mesmo. Dora − Viviane esperava, não tenho a noite toda, gatão. Ela me empurrou sobre o sofá, por um segundo desejei que fosse embora. Seria complicado expulsá-la, mais complicado do que apenas recostar nas almofadas, abrir as pernas enquanto ela sentava no chão. Puxou o zíper dos meus jeans, não parecia se importar com o cheiro de cachorro molhado. Devia conhecer piores, anos de calçada. A gritaria da rua entrava pela janela aberta, junto com a luz mortuária do Happy Days, Elba Ramalho em toca-
fitas de carro e Jacyr no Quênia's Bar, bebendo cerveja com o rastafari, orgulho da raça nagô, vinte e cinco centímetros. Dora desceu minhas calças até os tornozelos, com os pés descalcei os sapatos. Por cima da cueca, ela passou a mão no meu pau, enfiou-a por dentro do tecido, fechei os olhos, podia ver quem quisesse em seu lugar, eu era louco por Diane Keaton, por Deborah Bloch, sempre as ruivas, afundei mais nas almofadas. Vamos dançar lambada, bichinho, ela disse, e baixou também minha cueca, o sotaque estragava tudo, tentei me concentrar outra vez, a mão molhada de suor avaliava o peso dos testículos, depois apertou a base do meu pau, lambeu a glande como quem prova um sorvete ruivo, um sorvete de maracujá, talvez Patrícia Pillar, não Woolf, ele fremiu de encontro ao céu da sua boca. Ela subiu a mão por baixo da minha camisa, beliscou um dos mamilos, as unhas ciclâmen de Silvinha entre os pêlos de Rafic, filho da puta, gemi, e Dora começou a lambê-lo suavemente, da base até a glande, afastando o, prepúcio. Cruzei as mãos na nuca para não tocar em seu cabelo tingido, suas pálpebras verdes, Nora Barnacle, tira minhas calças, pedi, e ela tirou, como uma escrava, Lou Andreas Salomé, tira minha cueca, as meias também, Frida Kahlo, e ela tirou. Abri mais as coxas, ela ajoelhada no meio, dava voltas com a língua, pequenas pancadas, depois enterrava-o no fundo da garganta, uma das mãos no mamilo, a outra segurando os testículos, mais fundo, pedi, luz apagada, Marilyn Monroe descendo the river of no return. Ele ficava cada vez mais duro, mais empenado, apenas os sons da rua lá longe, gritaria, baixaria, empurrei com força o corpo para a frente, ela recuou assustada, depois entendeu, aceitou o ritmo. Eu empurrava, ela recuava, eu recuava, ela avançava, inteiro na boca, areia movediça, pantanal. Tirava às vezes para respirar, eu pedia não pára, volta aqui, volta já, e ela voltava, f ode gostoso a tua cangaceira, ela gemeu. Branco canalha, rainha do frevo, ô Dora, sulista escroto, gaúcho metido, Dada Corisco, fodendo o agreste. E lá no fundo da garganta, quase
gozando e rindo, olhos fechados para ver longe dali, sem que nada no corpo dela, além da boca, tocasse meu corpo além do pau, desta Vez deliberadamente, com todos os detalhes, enquanto enchia sua boca de esperma, continuei a lembrar de Pedro. 32 Descemos juntos no Paraíso. Viramos os últimos bares, eu e Pedro, bebendo cerveja com Steinheger, depois conhaque à medida que a noite esfriava. Falávamos como se nos conhecêssemos há anos. Há vidas quem sabe. Quando todos os bares fecharam e o dia começava a nascer nos lados da aclimação, convidei-o para vir até o apartamento onde eu morava há menos de um mês, desde que Lídia se fora. Não havia quase nada lá. Um colchão, roupas espalhadas, discos, livros, uma garrafa de vodca ou uísque pela metade. Sentados no chão, ficamos bebendo, fumando, ouvindo uma velha fita de Bola de Nieve que, não sei porque, ele trazia no bolso. Cada vez mais clara, a luz da manhã varava as folhas de jornal que eu colara nas vidraças. Feito uma cortina de crimes, intrigas e miséria. Tínhamos quase a mesma idade, nenhum dinheiro, mulher ou filho. Ríamos sem parar das nossas vidas e das alheias. Bola de Nieve cantava yo era como una barca solitária en el mar y surgiste en mi vida. Ficávamos cada vez mais bêbados. Tentei levantar para fazer café, mos Pedro tornou a encher os copos. E me puxou para junto dele, contando que morava longe, que não queria voltar para casa naquela noite, que brigara com o irmão, a cunhada, Os sobrinhos. A voz de Pedro era rouca e lenta. Mau rouca e mais lenta por causa da bebida, dos cigarros, das palavras muitas, da manhã nascendo.
Comecei a cochilar enquanto ele perguntava se podia ficar ali, se podia ficar comigo. Claro que sim, era tão simples. Quase dormi, não lembro. Quando acordei, ele me beijava. O beijo de Pedro não era desses de amigo bêbado, encharcado de álcool e solidariedade masculina, carência etílica ou desespero cúmplice. A língua de Pedro dentro da minha boca era a língua de um homem sentindo desejo por outro homem. Ele era bonito. Todo claro, quase dourado. Tentei afastá-lo, repetindo que nunca tinha feito aquilo. Eu gostava de mulher, eu tinha medo. Todos os medos de todos os riscos e desregramentos. Ele beijava minha boca, minha faces, meus olhos, meus cabelos, minhas mãos, meu pescoço, meu peito, minha barriga. Eu parecia uma donzela assustada. Eram ásperas demais as barbas amanhecidas roçando uma na outra, os músculos duros dos braços, das pernas, os cabelos raspados na nuca, os pêlos no peito. O cheiro, os toques, todo o resto: inteiramente diverso do amor de uma mulher, que era o que eu conhecia. Pouco e mal, e quase sem prazer, mas era assim que tinham me ensinado que devia ser. Assim eu conhecia o amor das mulheres. No meu ouvido, Pedro repetia que não podíamos fugir daquilo, que estávamos predestinados, que fora um encontro mágico, que precisava de mim para não morrer de solidão e abandono e tristeza. Eu deixava que repetisse todas essas coisas de fotonovela, de melodrama, de latino América, que continuasse a me beijar. Dormimos juntos vestidos, abraçados. Quando acordei, pelo apartamento não havia outro vestígio dele além dos filtros brancos dos cigarros que fumava, no cinzeiro cheio. Eu não sabia se voltaria a encontrá-lo, eu não sabia se queria que voltasse. Eu estava aterrorizado pela idéia de gostar de outro homem. Ele voltou, dias depois. Quando Pedro voltou, estava anoitecendo. E foi como se todas as luzes da casa se
acendessem ao mesmo tempo. E nós jantamos juntos, fomos ao cinema, ao teatro, ouvimos música, sentamos nos bares, acendemos os cigarros e enchemos os copos um do outro. Durante semanas fizemos todas essas coisas que as pessoas fazem quando querem ficar juntas, vivendo uma a vida da outra. Depois voltávamos para casa e ele sempre tornava a me beijar, insistindo que fôssemos para a cama. Tú no sospechas cuando me estás mirando, ele cantava com Bola de Nieve. Durante meses, os dois em pé, os paus duros apertados um contra o outro na porta de saída. De madrugada, eu conseguia mandá-lo embora para a Luz, Tiradentes, Ponte Pequena, nunca soube onde. Eu deitava sozinho, sem lavar as mãos ou o rosto, para guardar seu cheiro. E me masturbava noite após noite, até ficar esfolado, pensando no corpo e na cara de Pedro, em todas as formas de penetrar e ser penetrado por ele. Eu não cedia, eu tinha medo. Certa noite, talvez tivéssemos bebido demais, Ou não bebido nada, talvez estivéssemos, eu e Pedro, exaustos daquele jogo que não era jogo, ele deitou na minha cama, me puxou para o seu lado. Eu rolei por cima, pelo lado, por baixo dele, morto de riso. Ele tirou minha roupa, lambeu todo meu corpo, me virou de bruços e me possuiu como um homem possui outro homem. Eu senti primeiro dor, depois medo, depois prazer. Como sente um homem penetrado pela primeira vez por outro homem. Mas nojo não, nem desprezo ou vergonha. Só alegria, eu senti com Pedro. Uma alegria que era o avesso daquela que tinham me treinado para sentir. Na manhã seguinte, ficamos o dia todo na cama, ouvindo Bola de Nieve, pedindo pizzas e cigarros e cervejas por telefone. Quando anoiteceu, e começava a chover, eu lambi todo o seu corpo, virei-o de bruços e o penetrei também. Como jamais possuíra nenhuma mulher real, nem mesmo Lídia, nenhum ser de fantasia, na palma da minha mão.
Tinha sardas miúdas nos ombros, manchas de ouro. Gosto de sal, cheiro de terra molhada pela primeira rajada de chuva, um triângulo de pêlos nas costas, logo abaixo da cintura. Mordi sua nuca, ele gemeu. Passamos dias assim, Pedro e eu, um dentro do outro. O cheiro, os líquidos, os ruídos das vísceras. O que era de quem, dentro e fora, nós não sabíamos mais. As secreções, as funduras. Os dias se interrompiam quando ele ia embora. Recomeçavam apenas no mesmo segundo em que tornava a chegar. Não sei quanto tempo durou. Só comecei a contar os dias a partir daquele dia em que ele não veio mais. Desde esse dia, perdi meu nome. Perdi o jeito de ser que tivera antes de Pedro, não encontrei outro. Eu queria que voltasse, não conseguia viver outra vez uma vida assim sem Pedro. Nos meses seguintes, não havia nenhum sinal dele pelas ruas, os hospitais, paradas de ônibus, estações de metrô, uma por uma, tarde da noite, amanhecendo nas padarias. Por vezes, na rua, alguém de costas parecia com ele. Parei de trabalhar. Parei de ser e de fazer qualquer outra coisa além de esperar que ele voltasse. Mas Pedro não voltou, eu não voltei. As luzes da casa nunca mais tornaram a acender com sua chegada.

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