Onde andará Dulce Veiga (Parte 2)

0

II
TERÇA-FEIRA THE HARD CORE OF BEAUTY
11
Por trás das lentes escuras dos óculos, contra a luminosidade do sol das duas da tarde, enquadrada pelo retângulo da porta do edifício, cortada pelo reflexo na lataria dos automóveis lá fora, do fundo do corredor onde eu estava pensei primeiro que a silhueta era de mulher. Alguma freguesa dos búzios de Jandira, terça era dia de jogo, querendo amarrar marido. Ou cliente dos rapazes do segundo andar, embora jovem demais para pagar homem. Eu estava enganado. Botas brancas até o joelho, minissaia de couro, cabelos presos no alto da cabeça, pulseiras tilintando, a maquiagem de prostituta borrada como se tivesse dormido sem lavar o rosto ou pintado a cara sem espelho − era Jacyr. − Oi − cumprimentou. E depois, agressivo: − Que que foi, bofe, nunca me viu? Eu disse: − A sua mãe está preocupada. Você sumiu, Jacyr. Jogou a cabeça para trás. Tinha uma mancha roxa no pescoço. − Que se dane. E não me chama mais de Jacyr, agora sou Jacyra. Em vez de suspirar, peguei um cigarro. − Me dá um. − Você só tem treze anos. Tentei guardar o maço, mas ele arrancou-o da minha mão. Quando se curvou para que eu acendesse, e acendi, duas sacolas carregadas da feira, uma das velhinhas passou por trás dele sem cumprimentar.
− Catorze − Jacyr corrigiu. Ergueu a cabeça, os olhos de pupilas dilatadas cobertos de sombra azul, soltou uma nuvem de fumaça na minha cara, bafo de maconha e cerveja, devolveu os cigarros e gritou para a velhinha: − Horrorosa. Vai cuidar da tua vida, jaburu! Mais respeito, eu quis dizer. Afinal, velhinhas. Um alarme de automóvel disparou lá fora, eu não queria começar aquele dia com outra dor de cabeça. − Tenho que andar. Estou atrasado. Quase na porta do edifício, Jacyr me chamou. Olhei para ele, para ela. Estava parado na curva da escada, uma das mãos na cintura, a outra segurando o cigarro na altura dos seios falsos. Parecia Jodie Foster em Taxi driver, versão mulata. Gritou, a voz ainda mais esganiçada: − Você não quer faxina hoje? Preciso levantar uma grana. − Amanhã − eu disse sem pensar. Quando me arrependi, era tarde demais. Jacyr já tinha desaparecido na curva das escadas. Antes de sair para a rua, fiquei um instante parado na porta do edifício. Mesmo com o alarme enlouquecido do automóvel, dava perfeitamente para ouvir o salto das botas brancas batendo decidido contra os degraus de cimento. 12 Na redação quase vazia, antes que ele cobrasse a matéria, eu disse: − Castilhos, você lembra de Dulce Veiga? − Dulce o quê? − ele rabiscava frenético uma lauda com caneta vermelha. Repeti: − Veiga. Dulce Veiga, a cantora. Como se fosse um cigarro, Castilhos levou a caneta até a boca. E só depois de ter chupado distraído a tampa, olhando para mim por cima dos
óculos na ponta do nariz, foi que pareceu compreender. Então depositou a caneta ao lado daquele cinzeiro das mãos unidas, pegou um cigarro e apertou-o entre os lábios. Tentou acendê-lo, não acontecia nada. Fez uma careta, eu avisei: − O filtro. − Hein? − O filtro, você está acendendo o cigarro do lado errado. Aquilo nunca tinha acontecido antes. Até no escuro, com os olhos vendados e mãos amarradas, Castilhos sempre saberia encontrar cigarros no meio do caos daquela mesa, depois levá-los à boca sem desviar a atenção do que fazia para acendê-los rápido, certeiro. Era uma espécie de faixa-preta do tabagismo. O telefone tocou, mas em vez de atender ele tirou-o do gancho e ficou assim, o cigarro aceso do lado errado numa das mãos, o telefone na outra, olhando para mim como se eu tivesse acabado de dizer que queria cobrir a descida de extraterrestres na Avenida Paulista. Chamei: − Castilhos. Sem largar o telefone nem o cigarro, em voz baixa, lenta, ele recitou: − "The most marvelous is not the beauty, deep as that is, but the classic attempt at beauty, at the swamp’s center." Olhava para trás de mim tão fixamente que cheguei a me voltar. Mas não havia mais ninguém na redação além de nós dois e Teresinha O'Connor, pendurada no telefone. Eu não tinha a menor idéia de quem seria o autor daqueles versos. E desta vez, não parecia um teste. Soava mais como uma epígrafe. Ou epitáfio. Insisti: − Você lembra de Dulce Veiga? − Diga de novo − ele pediu, ele estava estranho. − Diga de novo para
mim, bem devagar. − Dulce Veiga, Castilhos, você lembra? A tal Márcia Felácio, das Vaginas Dentatas, é filha de Dulce Veiga. Ele esmagou o cigarro. Não acendeu outro. − E onde ela anda? Baixei os olhos, culpado: − Ensaiando, gravando, aquelas coisas. Lançamento de disco, você sabe. Fiquei de ligar hoje. As Vaginas Dentatas não são fáceis. Amanhã sem falta entrego a matéria. Castilhos bateu o fone no gancho com tanta força que duas pontas de cigarros desequilibraram-se da mesa e caíram ao chão. Apaguei com a ponta do pé. − Não, idiota. Dulce, onde está Dulce Veiga? − E eu sei lá? Segundo a filha, ela desapareceu faz uns vinte anos. − Vinte, vinte anos − ele suspirou entrecortado, como se doesse. Passou a mão pelo cabelo escasso, quase todo grisalho, caindo abaixo das orelhas em pequenos caracóis enrolados no colarinho não muito limpo de camisa branca. Sua voz era inconsolável: − Vinte, vinte anos. Eu estava irritado com aquela cena em câmera lenta & closes nos olhos reminiscentes. − Você lembra dela? Na minha direção, por sobre a mesa, ele estendeu as duas mãos abertas, num gesto de quem tenta segurar alguma coisa no ar. As palmas rosadas voltadas para cima, quietas como se esperassem que uma borboleta − e pensei nos seios de Márcia, no vendedor de bilhetes de loteria − pousasse nelas para então fechá-las cuidadoso e repentino, uma contra a outra, a borboleta presa no oco das duas mãos fechadas. Transpiravam, as palmas rosadas das mãos frágeis de Castilhos. Ele tirou os óculos. Naquele tom monocórdico em que dizia os poemas, falou:
− E você acha que eu poderia esquecer? Logo ela, Dulce Veiga, a melhor de todas. A mais elegante, a mais dramática, a mais misteriosa e abençoada com aquela voz rouca que conseguia dar forma a qualquer sentimento, desde que fosse profundo. E doloroso, Dulce cantava a dor de estar vivo e não haver remédio nenhum para isso. E era linda, tão linda. Não só a voz, mas a maneira como se debruçava sobre o piano com um cálice de dry-martini na mão, mexia lenta a azeitona e pegava devagar o microfone com a outra. Não, por favor, não pense nenhuma vulgaridade. Como se colhesse uma rosa para depositar no altar de um deus cruel, assim ela pegava o microfone para cantar. Como quem aceita um dom que implica em outras desventuras, assim ela cantava. Não havia sexualidade explícita em Dulce Veiga, mas qualquer coisa como a lamentação da existência dessa sexualidade. Tudo que cantava era como se pedisse perdão por ter sentimentos e desejos. Uma parte dela estava no centro disso, chafurdando no lodo da paixão. A outra era uma deusa fria, longe de toda essa lamentável lama do humano buscando prazeres. Aquele rosto parecia esculpido em mármore branco, tão inatingível... Você pode achar que estou exagerando, mas todos que a viram um dia, e houve um tempo em que, embora não fôssemos muitos, éramos um clube fechado, uma legião, uma seita de fanáticos aos pés de Dulce Veiga. Nunca houve nenhuma outra como ela, nem vai haver. Você pode achar que estou exagerando, mas quem teve o privilégio de vê-la um dia, uma hora, cinco minutos que fossem, sabe muito bem que. − Eu tive − interrompi. Os olhos dele brilharam. Devia ter sido um homem bonito, eu vi, desses que recitam poemas depois do terceiro uísque. Castilhos fixou em mim seus olhos úmidos, as longas pestanas acariciaram as bolsas inchadas de álcool, cigarros e tempo. − Você é muito jovem, rapaz. − Não tanto quanto você pensa. Ou quanto eu gostaria. Ele tornou a
colocar os óculos: − Você a conheceu? Lembrar, tão perigoso. Mas tentei: − Eu não tinha nem vinte anos. Acho que foi a primeira entrevista que fiz na vida. Para a Bonita. Ele riu. Dentes manchados, mas verdadeiros. − Bonita − repetiu −, a revista da mulher idem. Faz tanto tempo, era divertido. Eu disse: − Estive duas vezes no apartamento dela. Ele gemeu: − Onde andará Dulce Veiga? E bateu com força as palmas das mãos. A borboleta, pensei, ele esmagou a borboleta. − A entrevista − gaguejei. Castilhos acariciou os chifres do boi de cerâmica. Mas eu não tinha entendido. Ele acendeu um cigarro, do lado certo: − Esqueça a entrevista, você faz amanhã. Depois, quando der, não importa. Agora senta e escreve. − Mas escrever o quê? − Uma crônica. Você vai escrever uma crônica, oquei? Ele ergueu a mão, desenhou as letras no ar com a fumaça do cigarro: − "Onde andará Dulce Veiga?": vai se chamar assim. Quero isso sem falta aqui na minha mesa às seis da tarde. Afundou a cabeça na mesa, voltou a rabiscar a lauda com a caneta vermelha. Do fundo da redação chegou a voz estridente de Teresinha: "Mas não me diga, logo ela, que perua!". Castilhos estava absorto em circundar o último parágrafo com letra vermelha, puxando-o com uma seta para o início da lauda.
− Cretinos − rosnou. − Colocam sempre o lead no fim da matéria, que se há de fazer? − E no mesmo tom, me olhando atravessado: − São sessenta linhas cheias. Olhei desamparado para a mesa de Teresinha. Ela abanou, sem largar o telefone. − Pede ao Pai Tomás uma pasta no arquivo. Deve ter fotos dela. Comecei a rastejar em direção à mesa de Teresinha. Maldita, maldita hora em que fora falar no nome de Dulce Veiga para despertar as memórias místico-artístico-Ubidinais do editor-chefe. Eu nunca tinha escrito uma crônica na minha vida, e havia aquela zona de sombra que ainda não conseguira iluminar: alguém, havia mais alguém no apartamento de Dulce, naquele dia, no outro, não sei. Perdido no meio da redação, ergui a cabeça para um dos ventiladores. Ar, pensei. Terra não havia sob meus pés, aquele horrendo carpete amarronzado pelo tempo, fogo só nas brasas dos cigarros de Castilhos, e água viscosa escorrendo na palma das minhas mãos. Quando consegui começar a me mexer, ele chamou. Estendeu um disco: − Chegou para você − disse. Piscou um olho, e acrescentou: − A beleza no meio do pântano, o poema. William Carlos Williams: The hard core of beauty. Peguei o disco. Isso sim, fazia sentido: hard, hard core. 13 O disco chamava-se Armagedon. Isso não me espantou, nem o fato de ter sido enviado tão rápido. Afinal, astrologias à parte, Patrícia devia ser uma excelente divulgadora. O que eu não contava era com a dedicatória escrita na capa, sobre o rosto de Márcia. Um rosto pálido, andrógino, mutante, só os olhos verdes coloridos em primeiro plano, contra o resto do grupo jogado num areai desértico, em preto-e-branco.
Com tinta roxa, numa letrinha miúda que absolutamente não combinava com ela, estava escrito: "Qual o caminho para a morada da luz, e em que lugar encontram-se as trevas? (Jó: 38, 19)". E logo abaixo: "Pelo nosso encontro". A assinatura era Márcia F. F de feroz, pensei, de foda, felicidade, falsidade − e tantas coisas mais. Estava começando a ler o nome das músicas na contracapa, quase todas composições dela, algumas letras de Patrícia − devia ser a mesma, uma tal Patrícia Woolf − outras de um certo Ícaro, com títulos tipo Batalha final, Amor atômico ou Césio 90, quando Teresinha me chamou: − No segundo dia, já ganhando presentinhos, hein? Para me mandarem alguma coisa, preciso prometer mil notas. "Um desejo sincero é sempre concretizado", li no calendário Seicho-No-Ie atrás dela. − É uma matéria que estou fazendo. Ela espiou o disco: − Márcia Felácio e as Vaginas Dentatas. Já ouvi no rádio. Interessante, mas barulhento demais. Prefiro Charles Aznavour, sabe? − Cantarolou com sotaque péssimo: − "Que c'est triste Venice, le temps des amours morts". Hoje estou tão fraca de notas, um horror. No verão não acontece nada. A única novidade é a última plástica de Lilian Lara. Imagina, novidade: a perua já deve ter feito mais de trinta. Lilian Lara era uma famosa atriz de telenovelas, dessas louras de idade indefinida entre os trinta e os sessenta. Às vezes via fotos dela nas capas daquelas revistas que jamais compraria, ou ouvia sua voz melosa saindo da televisão das velhinhas do primeiro andar. Enfiei uma lauda na máquina, uma velha Facit pesada como um trator. Não tinha nada na cabeça, mas precisava fingir alguma ocupação para que Teresinha me deixasse em paz. − Você não tem nenhuma nota para mim? Eu ia dizer que não, mas lembrei: − Você já ouviu falar em Dulce Veiga? Ela piscou. Os cílios respingavam pontinhos pretos de rimei em volta
dos olhos. − Você quer dizer Edith Veiga? − Não: Dulce, Dulce Veiga. Uma cantora, mais ou menos da mesma época. Enquanto fazia um esforço para lembrar, o tempo parecia desabar sobre o rosto dela. As rugas espalharam-se pela testa até a raiz mais escura dos cabelos oxigenados. Da sua mesa, Castilhos olhou para nós, fiscalizando. Eu precisava trabalhar. − Claro − ela disse subitamente. − Nossa, quanto tempo. Ela era muito chique, que fim levou? − Ninguém sabe. Essa cantora, Márcia, é filha dela. Teresinha bateu na testa: − Que fantástico. Já tenho até um título sensacional: "Filha de peixe" e reticências. Conta mais. Contei o que sabia, isto é: quase nada. Foi suficiente. O telefone tocou, ela atendeu, e eu fiquei sozinho com a folha em branco e a máquina de escrever. Escrever o quê? Tinha decidido apenas não revelar que Márcia era filha de Dulce Veiga, isso era assunto para Teresinha. E tudo o que eu lembrava era tão vago, quase incontável. Datilografei um inevitável qwertyuiop. Amassei a lauda, joguei no lixo. Acendi um cigarro. Passei a ponta dos dedos pelo rosto de Márcia na capa do disco, o tal caminho para a morada da luz, onde estaria? Ela usava uma gargantilha de couro negro, cheia de tachas pontiagudas. A foto era cortada na altura do peito, pouco acima de uma das asas da borboleta. Mais de três da tarde, o pessoal da redação começava a chegar. De longe, o rapaz de preto e cabelos arrepiados de gel cumprimentou com a cabeça. Estiquei os músculos do rosto & etc. Pai Tomás não andava por perto para pedir a pasta, eu não me atrevia a gritar por ele, todos olhariam para mim,
as palmas das mãos suavam, eu queria ser invisível. Acendi outro cigarro. Le-tár-gi-co, assim eu andava, a-pá-ti-co, co-le-óp-te-ro. Por trás dos vidros, as nuvens amontoavam-se no céu cinzento, ia chover outra vez. Levantei para tomar café. Fraco demais, copo de plástico, excesso de açúcar. "Mais que de ti", lembrei, "mais que de ti, lembro dos teus sapatos amarelos." Há mais de dez anos aquele verso - seria um verso? − rondava na minha cabeça. Só isso, nunca soubera o que vinha depois. Haveria mesmo algo depois? Ai como eu estava entediado. Espiei o jornal, um filme novo de David Cronenberg, eu adorava A mosca, chegara a escrever um artigo comparando-o com Kafka: a-mesma-gênese-maldita-de-todos-os-outsiders-que-originou-a-metamorfose, qualquer coisa assim, pretensa. Claro, eu me identificava um pouco, afinal tinha meus aninhos de terapia: moscas, baratas, insetos. Estava fazendo o possível para ficar deprimido, e não consegui parar. Naquele tempo, remoí, antes que a vida se transformasse numa sucessão de manhãs iguais às de Gregor Samsa, naquele tempo pelo menos sabia escrever. Escrever, raciocinei idiota-mente, não era como andar de bicicleta nem como fazer sexo, meu bem. A gente desaprende, enferruja, entorpece. Crise geral. A tarde lerda, o tempo passava. Lá fora, o vento súbito soprou as folhas da única palmeira visível. Estar embaixo de outra palmeira como aquela, cartão-postal, um coco verde nas mãos. Depois entrar no mar transparente, ultrapassar a espuma branca da arrebentação, deitar de costas na água, rosto voltado para o céu, flutuar em direção a qualquer lugar. Ilhas, algas, corais, itaparicas. Longe da máquina de escrever. Então fechei os olhos. E comecei a me distanciar dos telefones tocando, das máquinas batendo, das vozes fragmentadas em farrapos de conversas, para prestar atenção somente às batidas do meu próprio coração. As duas mãos postas sobre o teclado, naquela atitude que guarda um pouco de
oração silenciosa e muito de loucura mansa, ao querer desesperadamente dar forma através de palavras a algo que só existe, sem face nem nome, nessa região longínqua do cérebro onde a fantasia cruza com a memória e a intuição cega. Só e submisso, perdido no centro desse cruzamento confuso, no meio do terror de não ser mais capaz, sem nada nem ninguém que pudesse vir em meu socorro, além da própria coisa em si, e ela mesma traiçoeira, talvez assassina, escorregadia feito serpente, ainda e talvez para sempre informe, porque eu, o único capaz de apreendê-la, poderia deixá-la fugir, esse o terror maior, de repente abri os olhos, esfreguei as palmas das mãos, coloquei uma folha na máquina e escrevi: "A primeira vez que vi Dulce Veiga, ela estava sentada numa poltrona de veludo verde". 14 Faltavam quinze para as seis. Li, reli, cortei, acrescentei. Parecia bom, parecia vivo. Minhas mãos tremiam um pouco. Domando a imprecisão, os pontos cravados no final de cada frase. Camisas-de-força, tentativas de conferir certa ordem e alguma clareza a algo que era pura nostalgia vaga, descontrolada. Acendi um cigarro, depois percebi que havia outro aceso no cinzeiro. Apaguei o segundo e, enquanto terminava de fumar o primeiro, fiquei olhando as pastas empoeiradas que Pai Tomás deixara em cima da mesa. Havia pouco material, mas isso não era culpa do Diário da Cidade, tão antigo que essa talvez fosse a única coisa que prestava naquele jornal: a memória de tempos melhores, guardada nos papéis amarelados das pastas do arquivo. Na verdade, Dulce Veiga nunca fora uma cantora muito popular. Os meninos críticos dos segundos cadernos de agora, indecisos em chamá-la de obsoleta ou demodée, diriam hoje talvez que era − cult. Mas essa palavra, que
tinha o irresistível poder de me fazer pensar em Isabella Rossellini arrastando seu sotaque pesado para gemer Blue velvet, naquele tempo teria soado ridícula, quase incompreensível. Dulce Veiga apresentava-se em boates pequenas, mais ou menos requintadas, no centro da cidade, gravara um ou dois discos, fizera pequenos papéis no cinema, onde antes ou depois de cantar algum samba-canção dizia umas poucas falas, invariavelmente debruçada no piano ou fumando na mesa de pista, enquadrada entre o abajur no centro e a champanha no balde suado de gelo − e desaparecera no dia da estréia daquele que seria seu primeiro grande show: "Docemente Dulce". A casa cheia, críticos na platéia, amigos e admiradores: todos dispostos a amá-la e consagrá-la definitivamente como a melhor. Uma, duas horas, cortinas fechadas. Por trás delas, certa inquietação dos músicos, um acorde no piano, um suspiro do saxofone varando o veludo vermelho para estender-se, como uma capa incômoda, também sobre a platéia. Tosses, cadeiras rangendo, palmas nervosas. Ainda tímida, a primeira vaia. Então o diretor Alberto Veiga, marido dela - mas eu não lembrava desse nome, seria ele a outra pessoa naquela tarde, no apartamento da São João? −, mentindo que Dulce sofrerá um acidente. No dia seguinte, o desmentido e o cancelamento do show: Dulce Veiga desaparecera completamente. Durante mais ou menos um mês, naquele ritmo fatal e inevitável das notícias sensacionais, os jornais acompanharam as investigações. A primeira página, depois matérias cada vez menores nas páginas internas, então o caderno policial, três colunas com foto, meia coluna sem foto. Finalmente uma notinha de rodapé dois, três meses depois: "O mistério continua sem solução. Ainda não foi localizada a cantora Dulce Veiga, que desapareceu sem deixar pistas quando". Olhei a data, forcei a mente tentando lembrar onde andaria eu mesmo naquela época. Entregando jornais em Paris, lavando pratos na Suécia, fazendo
cleaning up em Londres, servindo drinques em Nova York, tomando ácido na Bahia, mastigando folhas de coca em Machu Picchu, nadando nos açudes límpidos do Passo da Guanxuma. Minha vida era feita de peças soltas como as de um quebra-cabeça sem molde final. Ao acaso, eu dispunha peças. Algumas chegavam a formar quase uma história, que interrompia-se bruscamente para continuar ou não em mais três ou quatro peças ligadas a outras que nada tinham a ver com aquelas primeiras. Outras restavam solitárias, sem conexão com nada em volta. À medida que o tempo passava, eu fugia, jamais um ano na mesma cidade, eu viajava para não manter laços − afetivos, gordurosos −, para não voltar nunca, e sempre acabava voltando para cidades que já não eram as mesmas, para pessoas de vidas lineares, ordenadas, em cujo traçado definido não haveria mais lugar para mim. Ladrilhar uma parede com mosaicos díspares, assim tinha sido: a metade direita de uma guirlanda não continuava nem completava-se na metade esquerda de outra guirlanda, mas numa inesperada frisa grega ou barroca, que também não estendia-se pelo ladrilho seguinte para definir-se num quadrado ou retângulo, mas dava lugar a um círculo concêntrico decepado. Na entrevista maior, publicada na véspera da estréia, provavelmente a última antes de desaparecer, sublinhei algumas frases de Dulce Veiga: "Canto porque cantar me dá um mentido." "Mas penso sempre que cantar é inútil." "Não quero nenhuma das coisas materiais que o canto poderia me dar." "Quero encontrar outra coisa." "Outra coisa que nem sei o nome, maior que eu mesma ou que qualquer canção." "Gostaria de desaparecer um dia." "Como desapareceram os bondes descendo as ruas, os coretos no meio das praças." Ambíguas, poéticas ou confusas, havia outras frases assim. Eu não conseguia prestar atenção nelas. Enquanto os ponteiros do grande relógio
amarelo na parede dos fundos aproximavam-se das seis horas, cada vez mais a redação parecia uma colméia zunindo. Todos corriam de um lado para outro, entregando sua quota diária de mel, seria mesmo mel? Digamos que sim, pensei, eu estava de bom humor. De vez em quando a abelha-rainha Castilhos controlava tudo com um olhar. Eu precisava escolher uma foto, entregar a matéria. Escolhi: contra um fundo claro infinito, os ombros nus, Dulce Veiga jogava para trás os cabelos louros, como Rita Hayworth em Gilda, sorrindo. Mas havia outras − sedutoras, artificiais, sombrias, extravagantes. Dulce num vestido de tecido brilhante, talvez tafetá, uma rosa de tule negro no decote; de malha preta, só os olhos pintados, equilibrada num banquinho como Silvia Telles, tentando quem sabe captar a simpatia do pessoal da bossa nova; uma boina escondendo os cabelos, pinta falsa no canto da boca, certo ar de militante da resistência francesa; o lado do rosto apoiado no espaldar de uma poltrona, dedos longos entre os cabelos, colar de pérolas, olhar pousado em qualquer coisa além do fotógrafo. Quase todas bonitas, mas nem uma com a luz daquela que eu tinha escolhido. Irracional, decidi que era preciso de qualquer forma passar uma imagem feliz de Dulce Veiga. Havia também fotos com outras pessoas: debruçada nos ombros de Pepito Moraes, seu pianista preferido; com o marido Alberto Veiga, clima canastrão de galã de filme mexicano dos anos 60, paletó com ombreiras, cigarro na piteira entre as unhas esmaltadas; no meio de um grupo, em torno de uma mesa de boate, mãos dadas com um homem forte, vagamente familiar, de bigodes pesados e ar de turco; recebendo um prêmio de Leniza Mais e entregando outro a Maysa, sorrindo entre as duas. Para minha surpresa, várias fotos com Lilian Lara − sua melhor amiga, diziam alguns recortes da revista Intervalo. No centro da Praça da República, contra a amurada do lago, as duas de tailleur branco e grávidas. Um dos braços de Dulce estava passado em volta dos ombros de Lilian, o outro circundava a barriga de sete, oito meses.
Acariciava Márcia, pensei. E procurei por Teresinha na mesa ao lado, tinha esquecido dela a tarde toda, iria gostar daquilo. Ela já se fora, sua coluna era a primeira a fechar. A poeira dos papéis entrava pelas minhas narinas. Espirrei, assoei o nariz. Com um lápis vermelho, no contato feito no dia da estréia do show, tracei um círculo ao redor da foto escolhida, tomando cuidado para que o traço não interferisse naquela espécie de aura serena em torno do rosto de Dulce Veiga. "Quero encontrar outra coisa", escrevi na legenda. Fechei as pastas, dobrei as laudas com a foto entre elas e atravessei a redação para entregá-las a Castilhos. Pensei que fosse ler imediatamente, mas nem sequer levantou os olhos quando me dispensou: − Tudo bem, hoje você pode ir, oquei? 15 Antes que me tocasse, senti sua presença feito um formigamento, calor crescente no ombro. Devia estar nessa posição há muito tempo, a mão suspensa como se me abençoasse, pois só depois que as outras pessoas no bar começaram a olhar foi que me voltei. Ainda assim, demorei a ver seu rosto, um pouco acima da mão estendida. Usava um anel de prata com a imagem de Jesus crucificado em relevo. Talvez por isso, por causa da prata sobre o dedo branco, tive certeza que aquela mão era fria. Apertei-a, quando ele a estendeu para mim. E confirmei: quase gelada. − Prazer − eu disse. Ele curvou a cabeça. Todo vestido de preto, cabelos eriçados de gel no alto da cabeça, raspados em volta das orelhas, uma cruz também de prata pendurada na orelha esquerda, muito pálido, era o rapaz que eu já vira na redação. Não era uma palidez doentia, dessas de gente que, por medo da luz, qualquer espécie de luz, recusa-se a ver o sol, nem tinha aquele tom macilento dos intelectuais que bebem até tarde da noite. Era uma palidez sofisticada, aristocrática, como
quem viveu muito tempo na Europa e achasse vulgar uma pele bronzeada, uma camisa florida ou qualquer outra cor além do preto da roupa e do branco da pele. − Meu nome é Filemon − ele disse. − Desculpe interromper, mas eu li o seu livro. Não lembro direito o título. Visões, qualquer coisa assim. − Miragens − corrigi. E quase me engasguei com o sanduíche. Ninguém tinha lido aquilo, eu mesmo fazia o possível para esquecer aqueles péssimos poemas. − Belo título. Bastante simbolista, não? Engoli o resto do sanduíche. Ele sorria com os olhos muito pretos, não com a boca inesperadamente vermelha. Era bonita, sua boca. Úmida, grande, viva. Tive uma vontade insensata de beijar aquela boca, enquanto dizia: − Nada contra o final do século XIX, ainda mais agora, no final do século XX. Afinal, as questões básicas e o desamparo humano continuam e continuarão os mesmos de sempre. Era pedante demais. Mudo, concordei com a cabeça. Ele continuou a falar: − Mas o que acho mais curioso é que embora com uma visão espiritual subjetiva e decididamente metafórica do mundo você tentou incorporar aos seus versos a linguagem característica da poesia marginal que paradoxalmente por sua vez pouco ou nada tem de espiritual subjetiva e muito menos de metafórica na maneira como busca uma identificação concreta desse real que de resto convenhamos acaba sempre por esquivar-se a qualquer tentativa de reconhecimento seja este de natureza literária científica ou psicológica. Ele parecia ter decorado o texto, soava inteiramente deslocado ali, no ar azedo do bar do jornal, em frente àqueles vidros redondos atulhados de ovos de cascas azuis, às travessas de peixe frito, coxinhas, empadas, cheiro de
cebola e presunto gordo. Não havia onde ele sentar, e continuou em pé, contra o janelão de vidro que dava para a rua. Para ouvi-lo, virei de costas para o balcão meu banquinho forrado de plástico rasgado. Mas não conseguia compreender o que dizia, embora não tirasse os olhos da sua boca. Eu os desviava às vezes para espiar a noite caindo atrás de seus ombros, as luzes começando a acender, refletidas no asfalto molhado do cruzamento da Consolação com a São Luís. Voltei a ouvir só quando ele tocou, de leve, no meu ombro. − Só não compreendo − dizia, olhando fixo nos meus olhos, e muito baixo, para que as outras pessoas não ouvissem −, só não compreendo a ausência absoluta de Jesus nos seus versos e, provavelmente, na sua vida. Por trás do vidro, lá embaixo, algumas pessoas ainda carregavam guarda-chuvas abertos, embora a chuva tivesse parado. Vinda da Xavier de Toledo, uma mulher usando tailleur azul-marinho antiquado, de saia justa abaixo dos joelhos, ficou parada por alguns momentos em frente às escadarias da Biblioteca Mário de Andrade. Sob o guarda-chuva aberto, eu só conseguia ver a metade inferior de seu corpo. A saia justa, os saltos altos. − Ausência de quem? Filemon apertou mais meu ombro, aproximou tanto o rosto que sua cabeça encobriu a visão da rua. Olhava bem dentro dos meus olhos, como se tentasse me hipnotizar. Talvez estivesse conseguindo, porque eu continuava olhando fascinado para sua boca, cada vez mais vermelha, mais movediça. Todos deviam estar olhando para nós. − De Jesus, eu disse. Eu disse o nome de Jesus. Você sabe de quem estou falando. Eu fui enviado até você para falar de Jesus, o Cristo. O homem que morreu por nós na cruz. Para nos salvar, sangrando e gemendo deu sua própria vida, seu próprio sangue, o sangue sagrado de Deus Nosso Senhor e de Maria Santíssima. Em nome de Jesus é que estou aqui, fazendo o que não costumo fazer. Porque não cabe a mim tentar despertar o nome de Jesus no
coração de quem anda perdido nas trevas do demônio e seus enganos sutis. − Obrigado − eu disse idiotamente. Não sabia o que dizer. Tentei afastá-lo para olhar outra vez a rua, aquela mulher parada em frente à biblioteca. Ele pareceu perceber. Ou era apenas uma marcação dramática, estudada, quando endireitou o corpo e anunciou: − Você tem a luz. Você tem Jesus dentro de si, sempre teve. Por isso falei com você. Apenas, Jesus está adormecido dentro do seu corpo enganado, da sua alma cativa. Nem você mesmo sabe disso. Mas eu posso ajudar você a despertá-lo, estou aqui para isso. Atrás do vidro, exatamente na altura do coração de Filemon, a mulher de tailleur antiquado fechou o guarda-chuva branco, sacudiu-o lentamente no ar, como se quisesse livrá-lo das últimas gotas de chuva. Depois ergueu a cabeça, os cabelos louros, lisos, cortados na altura do queixo, e olhou para cima, para onde nós estávamos. Suspeitei que fosse ela. E tive certeza quando, compassada e leve como se dançasse, passou o guarda-chuva fechado para a mão esquerda e levantou o braço direito para o alto, o indicador estendido em direção ao céu, no mesmo gesto daquela mesma hora da tarde anterior. Mesmo no terceiro andar, mesmo através do vidro embaçado e entre todas as outras pessoas que passavam por ela, ocultando-a por instantes dos meus olhos, mesmo com a voz hipnótica de Filemon repetindo sem parar palavras como salvação, caminho, verdade, glória e pecado, sem nenhuma dúvida eu soube que aquela mulher parada lá embaixo só podia ser Dulce Veiga. Tirei a carteira, joguei uma nota sobre o balcão, peguei o disco de Márcia, levantei para sair. Filemon me olhou espantado. Toquei-o no ombro, como tocara em mim antes, na seda preta da camisa. Ele me olhava, a boca aberta. Antes de descer correndo as escadas, avancei em direção ao rosto dele e, sem pensar nos outros que nos olhavam nem em mais nada, sequer no que estava fazendo, beijei-o rapidamente nos lábios. Eram quentes, ao contrário
de sua mão, macios como a seda da camisa. Quando atravessei a porta do bar saindo para o corredor de pastilhas encardidas, ainda tive tempo de olhar para cima, para trás do balcão, e ver a imagem de São Jorge dentro de um nicho de luzes fosforescentes, a lança estendida para o dragão sob as patas do cavalo branco com uma vela acesa, um copo de cachaça e uma rosa vermelha escancarada a seus pés. Esbarrei em Pai Tomás. Ele saudou: − Ogum iê! 16 Ao sair para a rua tive medo de não vê-la. Porque desapareceria como na tarde anterior, como há vinte anos, e também porque naquela hora indecisa entre a noite e o dia, os neons ainda estavam apagados e o lilás do crepúsculo escondido pelos edifícios seria insuficiente para iluminá-la. Mas quase na sombra, o azul-escuro do vestido cada vez mais incorporado à noite que descia, Dulce Veiga continuava lá. Do outro lado, à minha espera. O sinal fechado, sem me importar com os carros, as freadas e os gritos, comecei a atravessar em direção a ela. Quando me viu, e tive certeza que me via, todos viam aquele único homem atordoado que era eu no meio do cruzamento, Dulce voltou-se e começou a andar rapidamente. Os saltos batiam forte na calçada, atingiram a esquina quando cheguei em frente à biblioteca. E talvez pelo excesso de notícias sobre o Leste europeu, nos últimos tempos, talvez pela roupa severa que usava, por alguma ou nenhuma razão, mero delírio, achei que iria dobrar à esquerda, ultrapassar a Galeria Metrópole e entrar na agência da Lufthansa. Como uma espiã de filme dos anos da Guerra Fria, imaginei-a desembarcando em Berlim Oriental, depois seguindo para Budapeste, Praga ou Varsóvia. Gritei seu nome, ela não olhou para trás. Dulce Veiga atravessou a rua, perdeu-se atrás da banca de revistas, e
pensei então que poderia entrar no Hotel Eldorado e sentar naquele bar de paredes envidraçadas, através das quais, olhando com atenção, pode-se ver os homossexuais caçando furtivos do outro lado, no meio das árvores da praça, mais numerosos à medida que a noite avança, para pedir um conhaque ou chá e permanecer ali sentada, esperando alguém ou ninguém, quem sabe simplesmente fumando sozinha, quase imóvel, olhando a rua ou não, talvez sem nenhum pensamento especial, nem mesmo uma expressão no rosto de queixo orgulhoso, enquanto o tempo passasse, o drinque e o cigarro chegassem ao fim e a noite terminasse de cair sobre a cidade. Tornei a gritar, ela seguiu em frente. Quem sabe então, fantasiei enquanto ela avançava pela calçada oposta e eu esperava, outra vez, o sinal abrir, pudesse também eu entrar no bar quase deserto àquela hora para sentar na cadeira vazia à sua frente e. Não saberia o que fazer, talvez mostrar o disco de Márcia, nem o que dizer, e antes que pudesse escolher entre tantas fórmulas tolas como ainda lembra de mim? ou tenho pensado em você ou posso te fazer companhia?, o sinal abriu e para não perdê-la fui obrigado a atravessar sem ter decidido nada do que poderia fazer ou dizer, se dissesse alguma coisa, se ela estivesse realmente lá e eu talvez entrasse também. Nada daquilo seria, porque ela não parou, já ia longe da porta do bar, sem ter entrado. Continuei a segui-la até a esquina da Avenida Ipiranga, onde pensei que fosse atravessar outra vez para chegar à Praça da República, e quando pensei nisso pensei que a praça seria outra, a antiga, não esta de agora, apodrecida. Mas se já tinha atravessado antes, fui pensando enquanto corria, não faria sentido atravessar outra vez agora, no trânsito complicado do final da tarde, e continuei a pensar coisas assim, sem importância nem lógica ou clareza, até que ela desapareceu naquela pequena galeria do Edifício Itália. Entrei na galeria. E tornei a sair, espiando as esquinas que fugiam ou mergulhavam no centro maldito da cidade. Entrei outra vez.
Não havia sinal algum dela nas poucas lojas ainda abertas, nem nos seis ou sete caminhos que se encontram naquele ponto. Entrava pelos corredores apenas um vento frio, talvez o primeiro daquele verão. Pensei em ir embora, mas olhando o painel do elevador percebi que alguém acabara de subir e talvez, pensei em seguida, como eu mesmo costumava fazer sempre que voltava à cidade, talvez ela tivesse ido até o terraço no último andar, de onde, com algum esforço, no resto de luz que ainda havia no ar, poderia ver ou pelo menos supor os verdes da Praça da República, os baixos sombrios nos lados do Bexiga e o contorno daquelas colinas muito além da Barra Funda. As palmas suadas das mãos, apertei o botão do elevador. 17 Contei cada um dos quarenta e um andares. Ao descer no último para tomar o outro elevador que levava ao restaurante, ouvi o som de um piano. Notas lentas, aparentemente soltas, tão espaçadas que a princípio pareciam não fazer parte de melodia alguma. Só depois de um tempo, juntando na cabeça as notas dispersas, reconheci Manhã de carnaval. Tive vontade de cantar junto, mas lembrava apenas daquele pedaço que dizia na vida há uma nova canção, uma coisa assim. Anão ser pelo garçom passando devagar um pano sobre o balcão e o homem de cabelos compridos e grisalhos, debruçado sobre o piano, o bar estava vazio. 0 garçom mal olhou para mim, fui andando entre as mesas enquanto via as costas curvas do pianista e suas mãos sobre o teclado. Quando ele voltou-se de perfil para pegar o copo de uísque em cima do piano, reconheci Pepito Moraes, o pianista de Dulce Veiga. Parei ao lado dele. E perguntei. − Onde ela está? Ele continuou a tocar com a mão esquerda, enquanto bebia com a
direita e me examinava de alto a baixo, sem surpresa. Depois de colocar o copo novamente sobre o piano, respondeu: − Ela quem? − Dulce Veiga − eu disse. − Quem me dera saber onde ela anda − ele sorriu, voltando a tocar com as duas mãos. E acelerou o toque sobre as teclas. − Quem me dera ela voltasse um dia. Apoiei o corpo no piano, para que meu rosto ficasse na altura do rosto marcado dele: − Eu a vi subir até aqui. Pepito semicerrou os olhos, curioso. As rugas espalharam-se pelos cantos, desceram pelas faces até se unirem aos vincos nos cantos da boca. Sua voz era muito calma, como se falasse com uma criança. Ou um louco. − Você deve estar tendo visões, rapaz. Dulce Veiga sumiu há vinte anos. Desde então, ninguém sabe onde ela anda. E podia ser, claro, que tanto a mulher da tarde anterior como a desta não fosse Dulce Veiga, mas outra qualquer, que eu fantasiara e enfeitara; podia ser ainda que não fosse ninguém mais além de uma imagem da minha mente; podia ser também que fosse realmente ela, mas tivesse seguido em frente, por outras ruas, e eu a perdera outra vez. Mas podia ser, finalmente, que Pepito e Márcia e Castilhos estivessem mentindo. − Fale sobre ela − pedi. Ele acelerou ainda mais o toque sobre as teclas, de maneira que, se antes a melodia precisava ser reunida através dos espaços que separavam cada nota, agora teria que ser descoberta dentro das mesmas notas, que a amontoavam e transformavam numa espécie de marcha nervosa, neurótica. De repente parou, voltou-se para mim e acendeu um cigarro: − Não é uma história emocionante, rapaz. Faz tantos anos. Insisti, ele repetiu tudo que eu já sabia. A noite de estréia, o teatro cheio, Alberto Veiga
mentindo que Dulce sofrerá um acidente. No palco, Pepito e os outros músicos ainda tentaram tocar alguma coisa. Mas a platéia foi embora, só queria Dulce e nada mais. Os olhos dele brilharam, devia ser o uísque. − Não quero lembrar. Faz mal lembrar das coisas que se foram e não voltam. No começo fiquei com raiva, achei que ela não pensou em mais ninguém quando desapareceu. Só nela mesma. Mas a gente nunca pode julgar o que acontece dentro dos outros. Ela queria outra coisa. − Que coisa? − Nem ela sabia. Repetia isso o dia inteiro: "Quero outra coisa, eu quero encontrar outra coisa". Durante os ensaios, quando parava de cantar, entre as músicas. E estava tudo maravilhoso, seria um grande show. O melhor do ano. Agora já passou. Não sinto raiva, não sinto nada. Sinto saudade, de vez em quando. Quando penso que podia ter sido diferente. − Diferente como? Ele terminou de beber, ergueu a mão. O garçom aproximou-se, encheu o copo. − Quer um? − Pepito perguntou. − Eu pago. Ganhei no bicho hoje. Recusei, ele continuou: − Diferente, diferente. Será que as coisas poderiam mesmo ser diferentes do que são? Não sei se não existe um plano traçado, como um destino, um roteiro. Houve um momento, aquele momento do show, em que ela poderia ter-se tornado a maior cantora do Brasil. E eu teria ido junto com ela. Roma, Paris, Nova York. Não aconteceu, só isso. Não aconteceu desse jeito, ela não quis. E não se importou se os outros queriam. Ela se foi, eu fiquei por aqui, por ali, tocando piano enquanto as pessoas comem, bebem e namoram. Sem escutar o que eu toco. − Mas para onde ela foi?
− Ninguém sabe, rapaz. Deixou todos esperando aquela noite no teatro, e não apareceu. Nunca mais, até hoje. Mostrei o disco de Márcia. − Você sabia que esta moça é filha dela? − Ouvi falar, dizem que tem muito talento. Vejam só, quem diria. Peguei essa menina no colo, mijou muito em mim. Dulce não tinha o menor jeito para mãe. E depois de Saul, ficou pior ainda. Saul: aquele nome despertava alguma coisa em mim. Alguma coisa que tinha ficado escondida naquela tarde, no apartamento da Avenida São João, em frente à poltrona verde. − Quem é Saul? − perguntei. E não queria saber a resposta. Pepito deu um longo gole no uísque. Além dos vidros, a noite tinha acabado de cair. O asfalto molhado da Ipiranga era um fio de luzes refletidas, invertendo os edifícios. Alguns casais começaram a encher o bar. Quase todos homens cinqüentões, bem vestidos, acompanhados por garotas mais jovens, muito pintadas. As luzes diminuíram no salão, Pepito sorriu malicioso: − Ah, um dos amores de Dulce. Ela teve tantos, nem eu escapei. Eu queria perguntar mais. Mas o garçom tornou a aproximar-se, olhou enviesado para mim e cochichou alguma coisa no ouvido dele. − Tenho de tocar − desculpou-se. − Afinal, os caras me pagam para isso. Tenho que levantar o pau desses senhores para foderem suas secretárias. Night and day, Love L& a many splendored thing, aquelas coisas. Volte outra hora, se você quiser, você parece um cara legal. Mas volte antes da meia-noite, porque depois, rapaz, estou sempre completamente bêbado. Insisti: − Eu queria saber onde ela está. − Desista − ele disse antes de começar a tocar. − Você não vai conseguir nada. Apertei o disco entre as mãos. E ainda perguntei:
− Que bicho deu? Pepito voltou-se, sem entender. − O quê? − O bicho, o jogo do bicho que você ganhou. Ele riu: − Ah, foi borboleta. Deu o treze, borboleta na cabeça. O cigarro entre os dentes, recomeçou a tocar. Enquanto saía do bar, achei que reconhecia aquela música. Não era nenhum daqueles antigos sucessos americanos. Entre a lembrança da borboleta tatuada nos seios de Márcia e o vendedor de bilhetes de loteria no outro bar, no outro dia, em ritmo de fox, rápido, quase uma brincadeira saltitante, Pepito tocava Nada além, o último sucesso de Dulce Veiga. E o primeiro de Márcia, pensei, contando na ordem inversa cada um dos quarenta e um andares do Edifício Itália, até o térreo. 18 Não sei bem como, mas consegui entrar em casa sem cruzar com nenhuma das velhinhas, dos michês argentinos, Jandira e Jacyr − ou Jacyra. Nenhuma carta hoje. Atrás da porta, apenas pó, roupas espalhadas, latas de comida abertas, livros empilhados, discos fora das capas, cinzeiros cheios, jornais desfolhados. Coloquei o disco de Márcia em cima da mesa, ao lado da carta de Lídia, que eu não abrira. E perguntei para ninguém, para nada, como todos os dias, parado no meio da pequena sala: − Não é excitante esta vida? A pin-up do pôster não sorriu. Minha vontade era dormir imediatamente, sem dar nenhuma ordem naquela bagunça, sem pensar mais em nada. Tomei um lexotan, herança de Lídia, era a última caixa. Depois dois, depois três. Começava a ficar entorpecido quando lembrei que não telefonara para Márcia marcando a entrevista. Procurei nos bolsos das calças jogadas no chão, até encontrar o
papelzinho que Castilhos me dera. Desdobrei-o devagar, cada movimento uma eternidade, ainda úmido da chuva do dia anterior. E enquanto lembrava de velhos coquetéis de drogas vagabundas − romilar, artani, abulemin −, fiquei olhando os círculos concêntricos desenhados sobre a frase "tudo gira ao seu redor", e tudo realmente girava, girava lento, o lexotan começou a bater. Levei algum tempo para conseguir lembrar que o número estava anotado do outro lado do papel. Ah sim, telefonar. Do outro lado atendeu uma secretária eletrônica dessas com música gravada antes do recado. Não um rock pesado, mas inesperadamente mansa e doce a voz de Nara Leão cantando It's wonderful. Quando ela dizia It's marvelous that you should care for me, a música interrompia-se e entrava a voz de Patrícia, que aquilo era uma gravação & etc. Achei bom ouvir Nara àquela hora, quis ouvir mais, mas seria impossível encontrar meu próprio disco naquela zona, naquele estado. Então liguei de novo, só para ouvir Nara cantar maravilha, calmaria: a nossa história não vai mais ter fim. Tirei a roupa, joguei-a no chão. Mais uma calça, uma camisa. Outra cueca, outro dia, não fazia diferença. Tudo apenas sujeira que se acumulava. Saul: Pepito dissera. Ele pronunciava Sá-ul, acentuando o a da primeira sílaba, dividindo o nome em dois estágios, dois sustos. O primeiro, um suspiro entrecortado; o segundo, um salto brusco. Dormir, um salto no escuro. Pensei em fazer o sinal-da-cruz, não há Jesus em sua vida, repetia Filemon, mas no meio do nome do Filho comecei a lembrar de uma oração infantil que terminava dizendo algo comove a morte me perseguir os anjos hão de me proteger amém, sempre gostara desse pedaço dos anjos, gostava de anjos, caídos, malditos ou puros intocados, lembrava também de uma gravura do anjo da guarda, as mãos estendidas como Filemon estendera a sua em meu ombro, sobre as cabeças de duas crianças brincando à beira do abismo. Um arco na mão do menino, uma bola de gomos coloridos aos pés da menina, na beira do
precipício negro, a um passo da queda. Os círculos giravam concêntricos pela minha cabeça, o início ou o fim cravados em redemoinho no ponto central da minha testa, mas o pior, o pior não seria nunca a morte real, o nada e o nunca, pior era não lembrar, não poder ou não querer lembrar, como eu não lembrava da segunda e última vez que vira Dulce Veiga, como quem tenta matar memórias indesejáveis para passar, supostamente, ávida a limpo. Tudo aquilo que eu esquecia ou negava, soube vagamente em plena queda, era o que eu mais era. Virei de bruços, nu. Ele usava uma camiseta cavada, sem mangas, como a do argentino do andar de baixo que, certo dia, no corredor, eu vira. Certa tarde, outro tempo. Fui me encolhendo dentro daqueles braços que pertenciam a um corpo do qual eu não via o resto ou o rosto, nem tronco ou cabeça, enquanto os círculos concêntricos continuavam a girar, cogumelos cresciam monstruosos na umidade da cozinha, o cheiro adocicado do incenso deslizava por baixo da porta, a luz diminuía lentamente em resistência, como num fim de peça teatral, até que o último objeto visível, uma mesa ou cadeira, ficasse tão envolvido pelo escuro, apenas entrevisto na luz cada vez mais fraca, um tampo, uma perna, dois braços, e embora comuns, esses objetos perfeitamente reconhecíveis na luz clara, se vistos assim pela primeira vez, à medida que a luz vai apagando e você mais começa a adivinhá-los no que realmente são ou a transformá-los mentalmente na infinidade de outros que poderiam ser, você começa mais a inventá-los do que a vê-los realmente nos seus contornos pouco apouco diluídos em tão lenta treva que ninguém saberia determinar o ponto exato de transição entre o início dessa treva e o final da luz, e nesse ponto exato − pentimento − nem eu nem ninguém poderíamos afirmar com certeza do que se trata realmente. Aqueles objetos, estas memórias. Se duas pernas de cadeira, mesa ou mulher. Se dois braços de poltrona, de fera ou macho.

Ler mais »

0 comentários: