Onde andará Dulce Veiga

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I
SEGUNDA-FEIRA VAGINAS DENTATAS
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Eu deveria cantar. Rolar de rir ou chorar, eu deveria, mas tinha desaprendido essas coisas. Talvez então pudesse acender uma vela, correr até a Igreja da Consolação, rezar um Pai Nosso, uma Ave Maria e uma Glória ao Pai, tudo que eu lembrava, depois enfiar algum trocado, se tivesse, e nos últimos meses nunca, na caixa de metal "Para as Almas do Purgatório". Agradecer, pedir luz, como nos tempos em que tinha fé. Bons tempos aqueles, pensei. Acendi um cigarro. E não tomei nenhuma dessas atitudes, dramáticas como se em algum canto houvesse sempre uma câmera cinematográfica à minha espreita. Ou Deus. Sem juiz nem platéia, sem close nem zoom, fiquei ali parado no começo da tarde escaldante de fevereiro, olhando o telefone que acabara de desligar. Nem sequer fiz o sinal-da-cruz ou levantei os olhos para o céu. O mínimo, suponho, que um sujeito tem a obrigação de fazer nesses casos, mesmo sem nenhuma fé, como se reagisse a uma espécie de reflexo condicionado místico. Acontecera um milagre. Um milagre à toa, mas básico para quem, como eu, não tinha pais ricos, dinheiro aplicado, imóveis nem herança e apenas tentava viver sozinho numa cidade infernal como aquela que trepidava lá fora, além da janela ainda fechada do apartamento. Nada muito sensacional, tipo recuperar de súbito a visão ou erguer-se da cadeira de rodas com o semblante beatificado e a leveza de quem pisa sobre as águas. Embora a miopia ficasse cada vez mais aguda e os joelhos tremessem com freqüência, não sabia se fome crônica ou pura tristeza, meus olhos e pernas ainda
funcionavam razoavelmente. Outros órgãos, verdade, bem menos. Toquei o pescoço. E o cérebro, por exemplo. Já chega, disse para mim mesmo, parado nu no meio da penumbra gosmenta do meio-dia. Pense nesse milagre, homem. Singelo, quase insignificante na sua simplicidade, o pequeno milagre capaz de trazer alguma paz àquela série de solavancos sem rumo nem ritmo que eu, com certa complacência e nenhuma originalidade, estava habituado a chamar de minha vida, tinha um nome. Chamava-se − um emprego. Olhei minha cara no velho espelho riscado, as marcas que eu nem sabia mais se pertenciam ao vidro ou à pele, cumprimentei com uma curvatura de cabeça: "Muito bem, parabéns. Você agora tem um emprego". Mas não conseguia sentir nenhum calafrio de dignidade, nenhum frêmito de esperança que pudesse iluminar meus olhos vermelhos ou empurrar para fora meu fatigado peito onde − não queria lembrar, mas lembrei − há menos de uma semana descobrira o primeiro fio de cabelo branco. Suspirei. Verdade que só um completo idiota ou alguém totalmente inexperiente sentiria, nem digo êxtase, mas qualquer espécie de animação por ter conseguido um trabalhinho de repórter no Diário da Cidade, talvez o pior jornal do mundo. Acho que ainda não tinha me transformado num idiota, não completamente pelo menos. E quanto à experiência − bem, aquela cara marcada, ainda inchada de sono, com barba de três dias, me observando por entre os riscos do espelho, parecia tê-la de sobra. Tudo bem, disse a cara no espelho, já que você prefere mesmo confundir experiência com devastação... Suspirei outra vez. Não, querida cara, encher laudas e laudas nas máquinas de escrever daquele pasquim pré-informático certamente não era motivo para dar pulinhos. Mas eu tinha que ficar contente. E quando você quer, você fica. Comecei a ficar. Afinal, aquele podia ser o primeiro passo para emergir do
pântano de depressão e autopiedade onde refocilava há quase um ano. Gostei tanto da expressão pântano-de-depressão-&-etc. que quase procurei papel para anotá-la. Perdera o vício paranóico de imaginar estar sendo sempre filmado ou avaliado por um deus de olhos multifacetados, como os das moscas, mas não o de estar sendo escrito. Se fosse bailarino, talvez imaginasse estar constantemente, em qualquer movimento, o esculpido? Ah, cada gesto, uma verdadeira apologia estética da forma pura. Era engraçado. E bastante esquizofrênico. Mas de repente o real tinha-se tornado bem menos retórico. "Você começa hoje, cara" − dissera Castilhos no telefone. Com aquela voz no fundo da qual, para manter o velho hábito subliterário, eu poderia localizar algo que chamaria de áspera-ternura-cúmplice, mas na verdade não passava de excesso de nicotina e saco cheio: "E vê se não me faz cagada logo no primeiro dia, oquei? Garanti prós homens que você é da pesada". Espantoso: na noite anterior eu fora dormir como um jornalista desempregado, endividado, amargo, solitário e desiludido de quase quarenta anos para acordar no dia seguinte, magicamente, com aquela voz do passado me comunicando pelo telefone que eu era − da pecada. A partir de hoje, uma vida feita de fatos. Ação, movimento, dinamismo. A claquete bate. Deus vira mais uma página de seu infinito, chatíssimo roteiro. 0 escultor tira outra lasca do mármore. Coloquei água para fazer café, cogumelos branquicentos cresciam na umidade da cozinha. Simpáticos, até meio bucólicos. Liguei o rádio, entrei no chuveiro. 0 apartamento era tão pequeno que a gente podia fazer todas essas coisas praticamente ao mesmo tempo. Com uma das mãos, ensaboava a cabeça, com a outra controlava o volume do rádio na sala, enquanto estendia uma das pernas para apagar o fogo quando a água fervesse. − Eia! Avante! Sus! − gritei embaixo da água gelada. − Ai-pi-ai-ô, Silver!
Então ouvi no rádio uma música que parecia conhecida. Dizia qualquer coisa como "a realidade não importa, o que importa é a ilusão", no que eu concordava plenamente. Pelo menos nos últimos meses, não me acontecera nada além de fantasias. Mas a música que ressoava em algum porão da memória era antiga como um bolero, um fox, e o que saía do rádio agora era um desses rocks com baixo elétrico desesperado, percussão envenenada e sintetizadores histéricos. A voz da cantora lembrava vidro moído num liquidificador. De qualquer forma, pensei, a letra está certa. E todas as coisas que eu lembrava, ou achava que lembrava, porque de tanto lembrar delas acabara por transformá-las em mera − e péssima − literatura, já não importavam mais. O resto do último sabonete escorregou entre meus dedos. Era tão pequeno que desapareceu pelo ralo. 2 − Isso é brincadeira − eu disse. − Esse grupo existe mesmo? Castilhos bateu no ar um de seus cigarros. Desde que eu o conhecia, há uns vinte anos, fumava três ou quatro ao mesmo tempo. Alguns equilibravam-se na beira da mesa, o contorno metálico cheio de manchas escuras, outros espalhavam-se pelos cinzeiros perdidos entre pilhas de laudas, fotos, clipes, pastas, envelopes, copos de plástico, adoçante artificial, tubos de cola, rolos de dinheiro, bilhetes de loteria, blocos, lápis, canetas, restos de sanduíche, latas de coca-cola dietética e um boi nordestino de cerâmica, que eu conhecia de outras redações. Por trás dele, o ventilador soprou as cinzas contra meus olhos. A sala acarpetada devia estar numa temperatura próxima de um forno crematório. Ele depositou o cigarro num cinzeiro em forma de mãos unidas e abertas em concha, como se esperassem um maná dos céus. Aquele cinzeiro, eu também achava que conhecia. Velhas redações, outros tempos. Na
verdade, uma por uma daquelas bugigangas pareciam familiares, inclusive ele. E isso não era exatamente o que eu chamaria de "uma sensação agradável". Castilhos mexeu nas fotos, separou uma mulata de fio-dental e botas brancas, juntou-as com um clipe a uma lauda tão furiosamente rasurada que as correções tinham furado o papel: − Que que tem de estranho, só por causa do nome? São os tempos, que se há de fazer? Agora eles se chamam Ratos Escrotos, Vermes Imundos, Bichos Nojentos, coisas assim. − Ele voltou-se para a mesinha mais baixa do lado, enfiou uma lauda na máquina e datilografou de um jato. − Que coxas, hein, meu? Olhei para ele sem entender. Pelo que sabia, gostava das magras espirituais, tipo Audrey Hepburn. No máximo, Deborah Kerr. Das mais recentes, talvez Michelle Pfeiffer. Jamais mulatas de botas brancas. − A legenda: "Que coxas, hein, meu?" Uma de vinte toques, descontando o i, cabe certinho. − Arrancou a lauda, berrou: − Pai Tomás, chega aqui. − Perfeito − eu disse. Tinha esquecido que conversar com ele era sempre assim. Dois ou três temas cruzados, entrecortados por suspiros, tosses, roncos, telefonemas, cigarros e berros. Cortes bruscos, retomadas e contratemas, sem nenhuma introdução tipo como-eu-ia-dizendo ou coisa assim. − Pai Tomás, onde se meteu essa anta? − Passou distraído as pontas dos dedos amarelos pelas coxas da mulata. Sempre me surpreendiam, as mãos de Castilhos. Em vez de previsíveis manoplas peludas, eram pequenas, gordinhas, rosadas. Quando começava a odiá-lo, bastava olhar para elas. Perdoava tudo na hora. − Vômito, outro dia pintaram uns garotos aí com um grupo assim. Grupo não, banda. É assim que eles dizem agora. Teve outro, As Lesmas. Apareceu também um Belzebu e os Querubins Invertidos. São os tempos, que se há de fazer?
O telefone tocou, ele atendeu. Olhei em volta, mas a sala enorme e decadente, com seus ventiladores de pés altos, estava quase vazia. Anão ser por um rapaz de cabelos eriçados de gel, todo de preto, que datilografava com fúria talvez uma demolidora crítica aos Querubins Invertidos. − Fecha às oito − Castilhos berrava. − Às oito sem falta, porra. Quero isso na minha mesa até as sete, pelo menos pra dar uma lida nessa bosta, oquei? − Bateu o telefone, pontas de cigarro voaram em todas as direções. − Débeis, todos débeis. Outro dia um aí escreveu que fulana ganhou o Oscar de melhor atora, é mole? De repente materializou-se ao lado da mesa dele um negro jovem, mas de cabelos completamente brancos, como um Preto Velho de umbanda. Fez continência, sério. Por baixo da camisa cáqui desabotoada vi uma guia de contas vermelhas e pretas. Brilhavam, lustradas pelo suor da pele negra. Castilhos ergueu a foto da mulata e sacudiu-a na minha cara. − Pai Tomás, este é o nosso novo repórter de Variedades. − Laroiê! − disse Pai Tomás, curvando a cabeça branca. Eu sorri. Quer dizer, contraí os músculos da face para mostrar os dentes. Estava me sentindo um pouco tonto, não tinha comido nada naquele dia. Pisquei, quando abri os olhos Pai Tomás tinha-se desmaterializado. Perto de Castilhos, nunca se sabia ao certo quando as coisas paravam de parecer divertidas e começavam a tornar-se patéticas, folclóricas ou vagamente ameaçadoras. Atrás da mesa dele os vidros imundos filtravam a luz cinza da Nove de Julho. A cidade parecia metida dentro de uma cúpula de vidro embaçada de vapor. Fumaça, hálitos, suor evaporado, monóxido, vírus. Olhei outra vez para as mãos dele e, sem nenhum empenho, tentei pela última vez: − Preciso muito, Castilhos, sinceramente. Mas não sei se sou o sujeito mais indicado para. − Sabe sim. Sabe perfeitamente. E vai fazer tudo direitinho, oquei? Só porque o nome da banda das meninas é Márcia Felácio e as Vaginas Dentatas,
que que tem de mais? Até que é um nome muito original, e devem ser umas meninas legais. Toca toda hora no rádio. − Só ouço canto gregoriano − menti. E suspirei: − Sapatas, sexistas, adolescentes rebeldes sem causa nem conseqüência. − Bom título para uma crítica. Mas vai lá ver, depois escreva. − Acendeu um cigarro. E repetiu: − São os tempos. − Que se há de fazer? − completei. − Me dá o telefone delas. Ele afastou uma pilha de laudas, pegou uma agenda. Havia mais papéis soltos dentro dela do que todas as páginas juntas. Isso que ainda estamos em fevereiro, pensei. Estendeu um papelzinho. − Fala com Patrícia. Ou Vanessa, ou Mônica, ou Cristiane, um desses nomes modernos. Que coisa, não existem mais Veras, Juçaras, Elviras. E Carmens, então? − Castilhos, você ainda mora naquele apartamento da São João? Ele abriu uma gaveta com o pé, depois fechou-a com estrondo, empurrou os óculos para a testa e acariciou os chifres do boi nordestino. Isso eu lembrava: era o sinal de que não tínhamos mais nada a conversar. Enquanto levantava, eu disse: − Toma cuidado, guerreiro, quando os dedos do grande mestre acariciarem os chifres do bovino. Ele grunhiu. Talvez fosse um sorriso, não sei. Fui saindo entre as mesas desocupadas. Uma loura cinqüentona, com muitas jóias douradas e um vestido decotado imitando onça, debruçou-se na máquina quando passei. Poderia ser vulgar, mas qualquer coisa no pescoço esticado demais e nos ombros rígidos, jogados para trás, revelava certa aristocracia. Quem sabe uma recém-divorciada tentando começar de novo, uma ex-bailarina russa fascinada pelos trópicos e obrigada a fazer sórdidas traduções para sobreviver. Atrás dela, num calendário Seicho-No-Ie, estava escrito "Agora é o momento decisivo para renascer". Estava começando a
sentar ao lado dela para telefonar, quando Castilhos gritou: − É a capa de sexta − e depois, sem levantar, mas com a voz muito empostada, num inglês tão perfeito que não entendi absolutamente nada, recitou: − "Disable all the benefits of your country, be out of love with your Nativity, and almost chide God for making that countenance you are". O rapaz de preto deteve as mãos sobre o teclado. − John Donne − arriscou. A ex-bailarina russa bateu palmas: − Fernando Pessoa. Estava totalmente errada. Nos vinte anos que eu conhecia aquele jogo, em língua portuguesa Castilhos só admitia Camões. E certa vez, para surpresa geral, Florbela Espanca: "Sempre da vida o mesmo estranho mal, e o coração a mesma chaga aberta." Agora todos esperavam, olhando para mim. Era decisivo como uma prova iniciática. Chutei: − Shakespeare. Castilhos confirmou: − As you like it. Ato quatro, cena um. Os outros aplaudiram. Curvei a cabeça, agradecendo. Pedi licença à loura e peguei o telefone. Antes que pudesse discar, ela estendeu sobre a mesa a mão cheia de anéis e longas unhas escarlates. − Prazer − disse, sem nenhum sotaque russo. Ao contrário, com suas vogais abertas soava levemente baiano. − Sou Teresinha O'Connor. − Teresinha como? − O'Connor − ela repetiu, caprichando na pronúncia. − De origem irlandesa, sabe? Sou a cronista social. Quando tiver alguma nota, você me passa? Pessoal que lida com arte sempre tem. − Pode deixar − eu disse. E comecei a discar.
3 Do fundo, vinha uma gritaria infernal. Um assassinato, uma tourada, festa de criança ou estupro. It’s only rock and roll, pensei, elas deviam estar ensaiando. Ficamos gritando, sem que ninguém conseguisse ouvir nada. Depois ouvi um barulho seco, como uma porta batendo, a gritaria abafada, e a voz no telefone. − Com quem você quer falar? − Com Vanessa − eu disse. − Qual Vanessa, a Redgrave ou a Bell? − Qualquer uma. − Aqui não tem nenhuma Vanessa, meu amor. Tenta a Jane. Revidei: − Qual Jane, a Fonda ou a Bowles? Ela surpreendeu-se exageradamente. Era carioca, percebi pelos “esses” chiados, “erres” rascantes. E estava se divertindo: − Você disse Bowles, Jane Bowles? Essa eu não conheço. − Escuta − eu disse. − Se você faz mesmo questão, podemos levar horas nisso. Posso chamar a Marianne Faithfull ou a Moore, a Charlotte Brontë ou a Rampling. Muito cultural e tudo. Mas acontece que estou trabalhando, gatinha. − O gatinha não fazia parte de meu glossário, mas achei que ajudaria. E mais formal: − Com quem estou falando? − Com a Patrícia. Neal ou Highsmith, pensei em perguntar, talvez Travassos. Aquilo era contagioso. − Com você mesmo que eu quero falar. − Então fala, meu anjo. Enquanto eu explicava que precisava fazer uma matéria com o grupo e tal − achei melhor dizer assim, o grupo, ainda não me sentia preparado para pronunciar em público algo como Márcia Felácio e as Vaginas Dentatas −,
Teresinha O'Connor telefonava freneticamente na mesa ao lado. Era daquele tipo que disca com a ponta da caneta esferográfica, depois masca a tampa enquanto espera a ligação completar. − Tudo bem − Patrícia disse. − Imprensa é imprensa, só que também não é assim. Liga e já vai entrevistando. Antes eu preciso da sua data de nascimento. − Hein? − Data, local e hora. Que nem a Yoko fazia quando todos aqueles caras queriam entrevistar o John Lennon. Não é porque a gente é brasileira que não vai ser seletiva, entendeu? − Mas para que você quer isso? − Para montar seu mapa astral, evidente. Preciso ver se tudo cruza. Roqueira, intelectual e astróloga. Devia usar óculos, pensei. E mentalizei a superfície cor-de-rosa de Netuno, Miranda, vulcões de gases congelados. Depois a Voyager perdida no espaço, a voz de Mick Jagger urrando para o infinito I can get no satisfaction, em nome de todos nós. Precisei pensar um pouco para dar a data certa, não lembrava direito do ano. − Tudo isso? − Patrícia parecia decepcionada. − É. − E a hora? − A hora eu não sei. − Então nada feito. Sem hora exata, como é que eu vou calcular o Ascendente? Não tem na certidão? − Não. − Pergunta para sua mãe. − Minha mãe mora fora do Brasil − menti. − Liga pra ela, nem é tão caro assim. Liga aí do jornal. − Ela não tem telefone − "é uma aldeia perdida nos Cárpatos", contei para mim mesmo. No meio da neve, numa cabana sem telefones nem
redações, cronistas sociais ou bandas de rock, só tem alces lá. Onde ficavam mesmo os tais Cárpatos? − Mas pelo menos foi de manhã, à tarde ou à noite? − De manhã cedo − falei. Era verdade, minha mãe sempre contava que não tinha dormido a noite toda. Para me fazer sentir culpado, claro. Mas uma vez falou qualquer coisa como quando olhei pela janela o sol estava nascendo e você estava saindo. Eu gostava disso, pelo menos fora num dia de sol. − Segura na linha − Patrícia pediu. Do outro lado, voltou a gritaria infernal. Aos poucos a redação começava a ficar movimentada. Sujeitos gordos do Esporte, meninas desgrenhadas da Variedades, adolescentes espinhentos da Geral. Eu estava ficando velho. E mal-humorado. Baixei os olhos, comecei a desenhar círculos concêntricos nas costas do papel com o telefone dela. Mexendo devagar a cabeça, naquele calor, isso me estonteava ainda mais. Miranda, enumerei, Cárpatos, Passo da Guanxuma. Tudo tão longe, tudo ficção. Embaixo dos círculos concêntricos escrevi "tudo gira ao seu redor", como num cartão que tinha visto não sabia onde. Estava enchendo de tinta o segundo ó quando a gritaria voltou no telefone, depois tornou a ficar abafada. − Alô − eu disse. − Olha, querido, hoje não vai dar de jeito nenhum. Nós temos uma gravação. Além disso, dia da Lua não é favorável. Muito instável, entende? Só na sexta, dia de Vênus. E às seis da tarde, com Leo no Ascendente e o Sol na casa do outro. Escandi as sílabas tão meticulosamente que qualquer um, até uma vagina dentata, perceberia que eu estava ficando furioso: − Patrícia, tenho que entregar essa matéria na quinta. Para sair na sexta. Não posso esperar que os astros estejam favoráveis e Urano na casa do caralho.
Ela não disse nada, teria sido o palavrão? − É a capa − seduzi. Até parecia a Vanity Fair. − A capa, a cores. De repente, ela cedeu: − Tudo bem. Vamos gravar um clip num estúdio daqui a pouco. Aparece lá. Mas, entrevista, de jeito nenhum. Só depois do mapa. Vou te dar o endereço. Quando terminei de anotar os intermináveis sabe aonde tem um posto meio escroto e aí você vai ver um out-door de cueca dum cara muito sexy e bem ao lado de um prédio horroroso de pastilhas verdes, apaguei o cigarro no cinzeiro de bronze, muito artístico, de Teresinha O'Connor. Ela estendeu o rosto para um beijinho. − Três pra casar − pediu. Dei um, sem tocar na pele. Ou na camada de maquiagem entre minha boca e a pele dela. Peguei um monte de laudas e sai correndo. Na porta, ouvi a voz de Teresinha: − Não esquece as minhas notas, viu? 4 Até encontrar um táxi, passei por dois anões, um corcunda, três cegos, quatro mancos, um homem-tronco, outro maneta, mais um enrolado em trapos como um leproso, uma negra sangrando, um velho de muletas, duas gêmeas mongolóides, de braço dado, e tantos mendigos que não consegui contar. A cenografia eram sacos de lixo com cheiro doce, moscas esvoaçando, crianças em volta. Na esquina estava um homem vestido com um macacão alpino, de chapeuzinho verde, tocando realejo para um periquito desses que tiram a sorte. Parei. O homem fez o periquito bicar três vezes o papelzinho dobrado antes de estendê-lo para mim. Estava escrito:
"O hábito de trabalhar proporcionar-te-á todas as comodidades da vida: aprende a ser feliz em um honesto viver, desejas notícias que serás surpreendido com uma fortuna de que viverás feliz, eis o que o teu signo diz". O motorista japonês tentou puxar conversa, mas respondi com um grunhido, ele desistiu depois de comentar que ia cair a maior água. Afastei o banco para trás, estendi as pernas, abri mais o vidro. Ele ligou o rádio, rezei para que não sintonizasse num daqueles programas com descrições hiper-realistas de velhinhas estupradas, vermes dentro de sanduíches, chacinas em orfanatos. De repente a voz rouca de Cazuza começou a cantar. Vai trocar de estação, tive certeza, mas ele não trocou. Isso me fez gostar um pouco dele, tão oriental, talvez budista, e pedi que aumentasse por favor o volume, deitei a cabeça no encosto de plástico pegajoso e por quase um segundo, muito rapidamente, enquanto o carro rastejava pelo trânsito difícil, sobre o asfalto em brasa, a camisa molhada, a pilha de laudas virando pasta entre meus dedos, fechei os olhos, o vento soprava na minha cara, secando o suor, e por quase um segundo, outra vez, como quem de repente suspira ou pisca e segue em frente, veloz feito uma mariposa que cruza subitamente o ar nas noites de verão, à procura de luz acesa para girar em torno, como quem apaga ou acende uma dessas luzes para perceber no quarto vazio apenas a vibração do bater de asas que restou no ar, não o inseto que já foi embora, no fundo turvo do pensamento, eu queria ver no escuro do mundo, sem querer nem provocar ou conduzir, por quase um segundo, finalmente, dentro do táxi que descia em direção ao Ibirapuera, lembrei então de Pedro. 5 Antes de vê-la, recebi na cara uma rajada de gelo seco através da porta que ela abriu, depois fechou. Ficou parada na frente, como a sacerdotisa guardiã de algum tesouro. Uma sacerdotisa com pelo menos um metro e
oitenta, não mais de vinte e poucos anos e a aparência de uma dessas aves pernaltas que, nas fotografias ecológicas, repousam à beira dos pantanais. Seria engraçada, se não tentasse parecer tão séria. Como imaginei, Patrícia usava óculos. Não redondos, enormes, para indicar que lia muito, nem de armação colorida, para deixar bem claro que, apesar de ler muito, não era nenhuma chata. Óculos gatinho, anos 50, de algum brique rico dos Jardins. O cabelo crespo quase louro despencava em cascatas desgrenhadas até a cintura do jeans muito justo. Em frangalhos, claro. Nos pés, arrastava coturnos pesados de soldado ou alpinista. Dava a impressão de não se preocupar nem um pouco em parecer bonita, simpática ou educada. Talvez por isso, aquele ar de pré-vestibulanda problemática, tinha um jeito desamparado. Eu não conseguia tirar os olhos de sua camiseta. No peito, havia algo como o desenho de uma boca vertical aberta, uma mancha bordo sanguinolenta contra o fundo branco. Entre os contornos arroxeados daquela boca ameaçadora, duas fileiras de dentes serrilhados, como os dos tubarões, ameaçavam entre os lábios. E quando pensei lábios, entortando a cabeça para ver melhor, foi que compreendi. Era uma vagina dentata. Mas só tive certeza quando ela virou de costas e pude ler o nome do grupo, escrito atrás. Ela me olhava entediada, eu não tinha nada especial. Um jeans como o dela, mas sem rasgões, camiseta branca sem vagina nem falo estampados. Nenhum brinco, nenhuma mecha verde no cabelo. Uniforme de guerra, ou de quem quer ficar invisível. E eu queria, há tanto. Ela perguntou: − Você é o cara do jornal? Eu disse que sim. − Você parece muito careta. Eu disse que era. Ela me olhou por cima dos óculos:
− Você deve ter o ascendente em Peixes. Fiquei olhando a vagina entre os seios dela, sem dizer nada. Sabia que a qualquer momento podíamos nos enredar outra vez num daqueles diálogos labirínticos: Dorothy Parker ou Lamour, quem sabe Dandridge? Foi então que comecei a ouvir. Por trás da porta, vinha uma música familiar. Não apenas familiar. Havia nela, ou na sensação estranha que me provocava, algo mais perturbador. Tentei ouvir melhor, mas o que lembrava não era exatamente aquilo, embora o que eu não identificava que fosse, e quase lembrava, também estivesse lá, dentro da música ou de mim. Dava saudade, desgosto. E outra coisa mais sombria, medo ou pena. Na minha cabeça cruzaram figuras desfocadas, fugidias como as de uma tevê mal sintonizada, confundidas como se dois ou três projetores jogassem ao mesmo tempo imagens diversas sobre uma única tela. Fusão, pensei: pentimento. E revi uma sala escura muito alta, luz do dia vedada pelas cortinas, um cinzeiro antigo em forma de caixinha redonda, desses que as mulheres dos filmes preto-e-branco dos anos 40 carregam nas bolsas, o fio de pérolas no colo alvo de uma mulher. Não fazia sentido. Patrícia olhava para mim, curiosa. Um reflexo qualquer fez cintilar uma das pedrinhas no canto de seus óculos. Talvez por isso, muito nítida entre aquelas imagens vagas, uma poltrona desenhou-se na minha memória. Ou imaginação, eu não sabia. Era uma poltrona clássica, uma bergère forrada de veludo verde. Procurei em volta algum tom de verde semelhante àquele. Não havia nenhum. Folhas que jamais recebem sol, musgo, fundo de garrafa − um pedaço de vidro que achara certa vez na areia, tão verde e polido pelo sal e as águas que era como se tivesse absorvido a cor das profundezas do mar. Era assim, o verde da poltrona. − Conheço essa música − eu disse. Patrícia sacudiu os ombros.
− Todo mundo conhece. É o nosso grande sucesso, está em segundo lugar. Empurrei-a para o lado. − Preciso ouvir melhor. − Você não pode interromper − ela começou a dizer. Mas eu já tinha entrado. A sala grande estava enevoada pelo gelo seco. Entre nuvens, fui distinguindo aos poucos alguns homens, ou partes deles. Troncos, cabeças. Pouco depois, ao fundo, um cenário de papelão pintado reproduzindo edifícios em ruínas cercados por enormes latas de lixo quase do tamanho deles. De dentro delas, brotavam objetos inesperados: uma perna de manequim, um relógio de pêndulo, um violoncelo partido ao meio, bonecas decepadas, flores de plástico, lápides, réstias de alho. Salvador Dali em Hollywood, pensei, cenografando um filme de Christopher Lee. Contra os edifícios, três garotas vestidas com jeans e camisetas iguais aos de Patrícia tocavam bateria, baixo elétrico e teclado. Eram as Vaginas Dentatas: uma baterista negra, cabelos trançados com contas coloridas, uma tecladista gorda, cabeça quase raspada, e uma japonesa enorme. À frente delas, apoiada num poste falso de luz, outra garota de cabelos descoloridos, coberta de couro negro, com uma guitarra. De onde eu estava, não conseguia ver seu rosto. Apenas percebia o contraste entre as roupas pesadas e os cabelos quase brancos, pairando feito auréola sobre o rosto profundamente pálido, sob a luz azulada dos spots. Irreal como um anjo. Um anjo do mal, sem asas nem harpa, um anjo caído. Essa era Márcia Felácio. Quando entrei, ela parou imediatamente de cantar. No mesmo momento, telepáticas, as três Vaginas Dentatas também pararam. Patrícia gemeu no meu ouvido. − Eu tentei avisar. Márcia odeia isso. No meio da névoa falsa, um homem gritou. − Que porra é essa, moçada? Estava tudo bem, assim não dá.
Márcia bateu com a guitarra no poste de luz. A coluna de papelão tremeu na base de isopor pintado. As mãos na cintura, ela olhava para mim e Patrícia. Compassadamente, a negra das trancinhas começou a bater num dos pratos da bateria. Parecia proposital: a trilha sonora óbvia do crescendo de suspense um segundo antes da explosão de nervos. − Patrícia − Márcia berrou, um feitor ordenando cem chibatadas, salguem-lhe as costas. − Já não falei mil vezes que não admito nenhum estranho por perto em hora de gravação? − É o cara do jornal − Patrícia explicou. A voz soava infantil, desafinada. Ridícula, e ao mesmo tempo coerente com aquele visual de ave pernalta. − Ele pegou e foi entrando, não tive culpa. A prima-dona-pós-punk-pré-apocalíptica olhou direto para mim. Talvez por causa das luzes, os olhos dela brilhavam demais. Sintéticos, como se fossem de acrílico ou emitissem fachos de raio laser. Um farol maldito, para perder os navegantes. Achei que podiam ser verdes. − De onde você é mesmo? − Do Diário da Cidade − gaguejei. Gostaria de ter dito New York Times, Le Monde ou algo assim. − Tenho que fazer uma matéria de capa com vocês. A culpa não foi de Patrícia, eu é que. Márcia chutou o poste outra vez. Um homem gritou: − Epa, assim você me fode o cenário, gatinha. Na bateria, o prato continuava retinindo. A japona do baixo arrancou um acorde estridente, que ficou rangendo no ar. Apoiada no teclado eletrônico, a gorda fumava com um risinho cínico. Estavam se divertindo, percebi. Um dos homens bateu palmas: − Como é que é, rapazes − e ninguém riu. − Agente não pode ficar aqui a vida inteira. Vocês querem ou não gravar esta merda? Os olhos de laser de Márcia Felácio varreram o estúdio:
− O que você chama de merda, eu chamo de arte. Cada um vê apenas aquilo que é capaz de ver. − Certo − desculpou-se o homem invisível. − Desculpa, eu não quis. Vamos gravar. Patrícia apertou meu braço: − Ela não é bárbara? − sussurrou. Só se ouvia a batida da bateria entrecortada pelos uivos do baixo. Márcia baixou a cabeça, chutou devagar o poste torto e pegou a guitarra. − Tudo bem − disse. − Esquece, dessa vez passa. − Grá-vando! − o diretor gritou. Márcia virou de costas, ergueu o braço direito, o indicador apontado para o teto. No pulso, um bracelete cheio de tachas. Márcia olhou para as outras Vaginas Dentatas, depois contou, batendo o pé no chão: − One, two, three! Um acorde horripilante da guitarra me fez imaginar uma daquelas enormes unhas escarlates de Teresinha O'Connor riscando de alto abaixo um quadro-negro. Márcia recomeçou a cantar. Aquela voz de vidro moído, áspera e aguda, girando dentro de um liquidificador, nem feia nem desafinada, mas incômoda na maneira como ocupava espaço dentro do cérebro da gente, aquela voz que, independente do que cantasse, dava a impressão de sair do fundo de ruínas atômicas, não as ruínas falsificadas daquele cenário de papelão, mas as de Hiroshima, as de Köln, depois do bombardeio, escombros de alguma aldeia nos arredores duma usina nuclear, após a explosão, sobrevivente do fim de tudo, aquela voz de sereia radioativa − era a mesma que eu ouvira no rádio, enquanto tomava banho para ir ao jornal. Passei a mão pela nuca, o arrepio não desapareceu. Porque não era apenas isso, eu suspeitava mais que sabia. Eu conhecia aquela música de outro lugar, outro tempo. Prestei atenção na letra.
Distorcida pelo arranjo que lembrava um vento radioativo soprando dentro de uma catedral gótica, acelerada, gemida e urrada, completamente diversa do tom sereno que tivera um dia, poluída pelos uivos contaminados da guitarra e as batidas imitando explosões longínquas, era um velho sucesso dos anos 40 ou 50. Para meu próprio espanto, lembrava a letra inteira. Comecei a cantar junto, movendo os lábios sem som, eu não sabia cantar: Nada além, nada além de uma ilusão. Chega bem, é demais para o meu coração. Acreditando em tudo que o amor mentindo sempre diz, eu vou vivendo assim, feliz, na ilusão de ser feliz. Se o amor só nos causa sofrimento e dor, é melhor, bem melhor a ilusão do amor. Eu não quero nem peço para o meu coração nada além de uma linda ilusão. Nada, nada além, Márcia repetia, quase sem se mover, afastando-se do poste apenas para abaixar-se, estendendo dramaticamente a mão para a frente, erguendo para o alto o rosto desfigurado pelos filtros mortiços das luzes. Fechando os olhos, vi novamente aquela poltrona verde. E mais nada, nada além, até começar a lembrar dos mesmos versos cantados por outra voz. Uma voz de mulher, antiga, densa, pesada. − Corta! − alguém gritou.
Então lembrei, num relâmpago: Dulce Veiga. Dulce, Dulce Veiga também tinha gravado a mesma música. Há dez, quinze, vinte, quantos anos? O arrepio desceu da nuca para os meus braços, estranho feito uma premonição. Dulce Veiga, eu disse para o escuro. O quê, Patrícia perguntou. Não respondi, as luzes acenderam. O diretor gritou: − Cinco minutos, vamos fazer uns contra planos. Márcia saiu do meio das latas de lixo, veio andando para mim. De algum lugar, Patrícia fez surgir uma coca-cola com um canudinho, que estendeu para ela. Muito perto de mim, Márcia tirou a jaqueta. Não usava nada por baixo. Tinha seios pequenos, firmes, com dois bicos empinados como se estivesse excitada. Havia uma borboleta tatuada entre eles. Transformada em mucama, Patrícia começou a abaná-la com um leque de palha. Eu não conseguia desviar os olhos dos seios dela. − Desculpa o escândalo − ela disse, a voz um pouco rouca. Os olhos eram mesmo verdes. − Não consigo me concentrar quando tem alguém estranho. − Tudo bem − eu disse. − Tudo bem − ela disse. − Tudo bem − eu repeti. − Tudo uma maravilha − disse a japonesa atrás de mim, passando a mão na minha bunda. − Aquela música − eu disse. − Essa música que você cantou. − Chama-se Nada além. − Eu conheço. − E daí? Todo mundo conhece. É um sucesso antigo do Orlando Silva, a gente só. Eu perguntei de repente: − Você conhece a gravação de Dulce Veiga?
Márcia fez o canudinho roncar, no último gole de coca-cola. Sem responder, estendeu a garrafa vazia para Patrícia. Num canto, as três Vaginas Dentatas acotovelavam-se ansiosas em torno do espelho nos joelhos de um baixinho. De onde estávamos dava para ouvir o rác-rác da gilete batendo no vidro. Senti um frio nos intestinos. Como uma estrela canastrona, Márcia jogou para cima a fumaça de um cigarro. Estendido assim, o longo pescoço tinha veias azuis quase invisíveis, pulsando. Lembrei de Lestat, o vampiro: ficaria doido. A japona chamou: − Você não quer? Vem logo antes que essas piranhas cheirem tudo. Márcia convidou: − Quer uma carreira? O baixinho passou o espelho, Patrícia estendeu uma nota enrolada para Márcia. Ela curvou-se. Quando ergueu a cabeça, seus olhos brilhavam ainda mais. Estendeu a nota para mim. Quase um palmo, na carreira generosa, me cabia o i do nome dela escrito no espelho. Metade na narina esquerda, metade na direita: aspirei, um arrepio no estômago. Ergui a cabeça, tornei a perguntar: − Você conhece a gravação de Dulce Veiga? Ela passou as costas da mão na ponta do nariz. Tive medo que se ferisse nas tachas da pulseira. Funguei, pequenos grãos amargos rolaram para o fundo da garganta: era do bom. − Claro que conheço. Dulce Veiga era minha mãe. − Como, era? Ela morreu? Profundamente, Márcia estudava lá dentro dos meus olhos. Baixou a cabeça: − Não, ela não morreu. Ela desapareceu um dia, de repente, faz muitos anos. − Como, desapareceu? Ninguém some assim, sem mais. Márcia mordeu os lábios com força, por muito tempo. Os dentes
ficaram manchados de batom roxo. Parecia irritada. − Desapareceu, porra − e estendeu uma das mãos fechadas até muito perto do meu rosto. Achei que ia me esbofetear, feito filme. Mas abriu a mão no ar, na ponta do meu nariz, estalando os lábios: Puf! Foi assim, sumiu, bem assim. Eu era quase um bebê. Foi há vinte anos. Então, eu não disse. A poltrona verde, o quarto de paredes altas, o cinzeiro redondo, o fio de pérolas. E um bebê. Entre as ruínas dos edifícios, um dos câmeras começou a bater palmas: − Vamos lá, minha gente. Tomem seus lugares. Eu disse: − Conheci a sua mãe. Não sei se ela ouviu. Deu um beijo frio no meu rosto: − Amanhã sem falta. Liga em casa, a gente combina a entrevista. Mas, eu quis dizer. Eu precisava falar de Dulce Veiga. Dela, de mim, do tempo. Lentamente, de maneira estudada, Márcia começou a voltar para o cenário, enquanto vestia a jaqueta. No meio do caminho, voltou-se, os olhos lançando raios, puxou violentamente o zíper e gritou para todos ouvirem: − Vê se dá o fora daqui. Não consigo trabalhar direito com esse cara me olhando. O baixinho do espelho me empurrou para fora. Eu estava atordoado demais para reagir, me deixei levar. Para fora, para longe, para qualquer lugar, talvez lá onde estavam a poltrona verde, a seringa manchada de sangue, o berço no canto escuro. Não sei como tinha esquecido tudo aquilo, mas agora também não sabia o jeito certo, se havia um, de lembrar. Tantas coisas, tantos anos depois de Dulce Veiga. Antes de ser empurrado para fora, olhei para trás e ainda consegui ver Márcia mais uma vez. Estava em pé, de costas, ao lado do poste de luz, a guitarra atravessada no corpo, o braço direito levantado feito uma lança, a mão fechada, apenas o dedo indicador apontando para o alto.
Então, eu não disse depois que aporta fechou, então eu também conheci você, baby. 6 Estava entardecendo. As nuvens rolavam pelo céu rasgado por alguns relâmpagos ao longe, nos lados da Cantareira. O vento arrastava latas vazias e folhas de jornal pela rua, janelas batiam, pessoas fechavam apressadas as portas das lojas, das casas, os homens cerravam com força as marquises metálicas das bancas de revistas. Um trovão explodiu distante, depois outro, mais perto. Um cão ganiu, depois uivou. Vai cair uma tempestade, pensei, e comecei a caminhar rápido em direção ao Ibirapuera, à procura de táxi ou ônibus, antes que as ruas ficassem alagadas, intransitáveis, a cidade em estado de calamidade, como em todas as tardes de verão. Da sacada de um edifício, alguém gritou: - Eparrê, eparrê-i, Iansã! Foi nesse momento que a vi. Numa das esquinas em frente ao parque, no meio da ventania, embaixo da quaresmeira coberta de flores roxas, estava parada Dulce Veiga. Toda vestida de vermelho, uma rosa branca aberta, presa na gola do casaco, a bolsa da mesma cor pendurada num dos braços cruzados, com luvas de cano curto brancas. Repartidos exatamente ao meio, cobrindo suas têmporas e as maçãs salientes do rosto, os cabelos louros e lisos caíam em duas pontas no espaço entre os lábios finos e o queixo um tanto orgulhoso, que ela erguia para olhar melhor na direção de onde eu vinha, sem sorrir nem fazer gesto algum. Soprados pelo vento, a única coisa que se movia no corpo dela eram os cabelos. Desnudavam ou cobriam seu rosto, esvoaçavam em torno dele, tão lisos que sempre acabavam por voltar à posição antiga depois que o vento passava. Estava ali parada, indiferente à ventania e às primeiras gotas esparsas de chuva. Concentrada, paciente. Como se depois de todos aqueles anos,
esperasse por mim. Quando alcancei a esquina oposta, esperando o sinal abrir, tão próximo que podia ver o fio de pérolas no seu pescoço, do outro lado da rua ela ergueu o braço direito, indicador estendido para o céu, num gesto igual ao de Márcia antes de começar a cantar. No mesmo instante, um raio de prata caiu entre as árvores do parque. Fechei os olhos, ofuscado. Ao abri-los, entre as brechas dos carros passando e a primeira saraivada fria de chuva na minha cara, Dulce Veiga não estava mais lá. Talvez tivesse subido num carro, talvez tivesse entrado no parque, atravessei a rua correndo para entrar também no parque, atrás dela. A chuva ficava cada vez mais forte, mais gelada, e imaginei vê-la desaparecendo na curva da alameda, entre os bambus, os saltos demasiado altos dos sapatos vermelhos afundando na terra molhada. Gritei seu nome, que nem eu mesmo ouvi, abafado pelo rumor dos carros passando, da chuva transformada em granizo batendo e batendo contra a terra morna. Minha roupa estava encharcada, vou pegar um resfriado, pensei − e não, eu não podia, o jornal, a entrevista, a febre outra vez no apartamento vazio, as pontas dos dedos buscando sinais malditos no pescoço, na nuca, nas virilhas. Procurei abrigo embaixo de uma árvore, sentei no chão, abracei os joelhos. Encolhido feito um cão com medo dos trovões, fiquei olhando a queda oblíqua das pequenas pedras de gelo. A terra molhada exalava um cheiro penetrante, secreto, íntimo como de sexo ou sono. Encostei a testa fria nas pernas, tornei a fechar os olhos. 7 A primeira vez que vi Dulce Veiga, e foram apenas duas, ela estava sentada numa poltrona de veludo verde. Uma bergère, mas naquele tempo eu nem sábia que se chamava assim. Sabia tão pouco de tudo que, na época, quando tentei descrevê-la depois na mente e no papel, disse que era uma dessas poltronas clássicas, de espaldar alto e assim como
duas abas salientes na altura da cabeça de quem senta. Por alguma razão, até hoje, ao pensar nela penso também inevitavelmente num filme qualquer, em preto-e-branco, da década de 40 ou começo dos 50. Dulce tinha a cabeça jogada para trás, afundada entre aquelas abas. Comove não me visse, comove eu não estivesse lá. Parado sob o arco que dividia em duas salas de paredes altas onde estávamos os dois, eu podia ver apenas sua garganta muito branca, um fio de pérolas brilhando contra a pele. Na peça escurecida, provavelmente era quase noite e, além disso, as cortinas permaneciam sempre cerradas, eu saberia depois, sem que ninguém contasse, as sombras caídas sobre a poltrona e seus cabelos louros não permitiam que eu visse o rosto dela. Percebia somente suas mãos longas, magras, unhas pintadas de vermelho, destacadas como um recorte móvel na penumbra azulada do entardecer. Numa das mãos, agitava lenta um cálice de conhaque. A outra segurava um cigarro aceso. Dulce Veiga só bebia conhaque, dizia que para amaciar a voz. Mas como fumava sem parar, principalmente quando bebia conhaque, e isso era muito freqüente, não acredito hoje que a razão fosse mesmo essa. Naquela época, quando eu a conheci, costumava acreditarem tudo que me diziam. Eu era muito jovem, tinha vinte anos e a segurança absoluta da eterna juventude, como um pequeno vampiro ou semideus. Não estou absolutamente seguro que, de algum lugar no interior do apartamento, viessem os acordes iniciais de Crazy, he calls me, na gravação de Billie Holiday, e poderia ser também Glad to be unhappy, Sophisticated lady ou qualquer outra dessas canções roucas, gemidos. Naquele tempo eu não as conhecia, mas estou certo de que nessa ou na outra vez perguntei quem era e ela disse que era Billie, e eu anotei, tão aplicado. Tudo isso que agora parece clichê banal, naquele tempo − repito e não me canso, porque é belo e mágico na sua melancolia: naquele tempo − tudo era novo, eu nem suspeitava das marcas pelo caminho. Afirmo que havia música, sem medo de mentir, poli mesmo que não houvesse nada e o silêncio do apartamento fosse cortado apenas pelo ruído dos carros na Avenida São João, lá embaixo − mesmo que não, que nada e nunca, repito: seria tão perfeito se fosse exatamente assim como penso que lembro, tantos anos depois, que ficou como se tivesse sido. Logo que entrei na sala, não a vi. Mas devo ter sentido a presença de alguém, algo
como uma respiração arfante, um perfume adocicado de jasmim, dama-da-noite, manacá ou outra dessas flores assim antigas, excessivamente perfumadas. Fiquei parado no escuro, até começar a perceber algumas formas mais definidas pelos cantos. Atrás da poltrona, o berço coberto pelo pano indiano, depois a mesa de tampo redondo de mármore sobre a qual havia alguns objetos que, nesse primeiro momento, nesse primeiro dia, não prestei atenção. Olhava só para ela. Quando meus olhos acostumaram-se à luz escassa pude vê-la inteira, sentada naquela poltrona de veludo verde, pernas cruzadas, vestida toda de preto. Ela usava sempre no máximo duas cores, mas isso, como tantas outras coisas, eu só saberia depois. A brasa de seu cigarro subia e descia no escuro, às vezes mais viva, quando ela tragava. Devo − e digo devo porque sou incapaz de lembrar exatamente dos gestos que fiz, das coisas que disse e ou pensei − ter feito um movimento para acendera luz na sala de paredes altas. Pois, disso estou certo, de repente uma voz densa, uma voz que só inúmeros conhaques, cigarros e cafés poderiam ter deixado assim, uma voz de veludo verde, espesso como o da poltrona, brotou no meio das sombras para pedir, numa lamúria: − Não acenda, por favor. Está bem assim. Creio que apertei o gravador contra o peito. Eu era muito magro, eu tinha acho que até menos de vinte anos, e tantas ilusões. Creio que perguntei se podíamos começara entrevista, e ela disse que sim, ou não disse nada durante algum tempo, não lembro. Mas tenho certeza que, antes de levantar o rosto, estendeu a mão para depositar o cálice de conhaque sobre a mesa de mármore, depois apanhou uma caixinha preta, redonda, abriu a tampa com um estalido seco e equilibrou nela o cigarro. Só então Dulce Veiga ergueu para mim o rosto de maçãs salientes, os olhos verdes, e pude ver seus cabelos lisos, louros, finos, repartidos ao meio com exatidão milimétrica, caindo em duas pontas no espaço entre os lábios finos e o queixo um tanto orgulhoso. Não sei se foi dessa vez que o bebê chorou, e ela levantou apoiando-se no braço gasto da poltrona, para embalar devagarinho o berço. Isso não combinava com ela, e sei que não sei ao certo por que minha memória guardou-a inteiramente imóvel olhando direto meus olhos no momento em que disse com um suspiro: − Está certo, podemos começar.
8 Era quase noite quando parou de chover. Nos lados de Pinheiros, o céu tinha tons púrpura no alto, depois diluídos lentamente até o laranja, então mais intensos, luminosos, dourado perto do horizonte que a gente nunca via. Atravessei devagar o parque deserto enquanto ouvia ao longe as sirenes das ambulâncias, carros de polícia e bombeiros, dei a volta pelo lago onde um barco solitário me fez lembrar, outra vez, aquela palavra que eu não sabia ao certo o significado. Pentimento, repeti: pentimento, um sentimento com pena. A roupa molhada secava contra o corpo, água de chuva e suor. Quase na Avenida Brasil, olhei para trás de repente, num impulso, como se alguém chamasse meu nome, mas não havia ninguém mais no parque e então, erguendo a cabeça para o céu, para os lados de Interlagos, vi um arco-íris. Um arco-íris esmaecido, meio invisível, precisei fixar os olhos, apertá-los um pouco para ver melhor o lilás e o azul quase perdidos na noite que começava a descer, apenas o verde e o amarelo mais nítidos, como uma bandeira. Podia fazer um pedido, lembrei, mas não acreditava mais nisso. Voltei as costas para seguir em frente. Ergui a cabeça para as manchas cada vez mais douradas do crepúsculo, e foi nesse momento que a vi, incendiada de prata, um pouco acima da faixa violeta sobre os edifícios mais altos, a primeira estrela, devia ser Vênus. Primeira estrela que vejo, lembrei, realiza o meu desejo, pulávamos amarelinha riscada com pedaços de tijolo pelas calçadas do Passo da Guanxuma, eu sempre queimava o limite do céu na hora de dar o giro de costas, num salto, olhos fechados, sete vezes repetir, olhos abertos presos na estrela até fazer o último pedido, depois não olhar mais para cima. Parado entre quatro esquinas, a primeira estrela à minha esquerda, o arco-íris à direita, de frente para a cidade, de costas para o parque, respirei fundo o ar lavado pela chuva e pedi. Pedi sete vezes em voz alta, não havia ninguém por perto para olhar e talvez rir, um homem não muito jovem, todo molhado, falando
sozinho, pedindo não sabia o quê. Força e fé, que tinha perdido, eu pedi. 9 Não havia ônibus nas ruas alagadas, os táxis passavam cheios, jogando água barrenta nas pessoas amontoadas, à espera de condução. Resolvi andar até em casa, mas antes entrei num bar, pedi um conhaque. O rádio falava do temporal, favelas desabadas, carros levados pela enxurrada, congestionamento, um edifício evacuado, não seria impossível que fosse o meu. Um homem de muletas ofereceu a borboleta, últimos bilhetes, na cabeça, moço. Mas não tenho sorte, eu disse, e o homem falou nunca diga isso, tem que arriscar, um dia quem sabe. Falei que fosse andando, peguei o copo opaco, cheiro de pano molhado, bebi de uma só vez. Bateu no estômago e na cabeça ao mesmo tempo, um fio de fogo ligou os dois na altura do peito, depois desceu para as pernas, espalhou-se pelos braços. Esfreguei as mãos com força. Do rádio saíam os primeiros acordes da Voz do Brasil. Alguém disse um palavrão, o caixa desligou. Paguei, acendi um cigarro e comecei a atravessar a cidade. 10 Era um edifício doente, contaminado, quase terminal. Mas continuava no mesmo lugar, ainda não tinha desmoronado. Embora, a julgar pelas rachaduras no concreto, pelas falhas cada vez mais largas no revestimento de pastilhas de cor indefinida, como feridas espalhando-se aos poucos sobre a pele, isso fosse apenas uma questão de meses. Velha e querida espelunca, pensei com certo carinho, esse tipo de carinho por um cachorro velho, cego e sarnento, enquanto passava a mão na eterna placa de en consserto pendurada pelos porteiros nordestinos na porta do elevador quebrado.
Novamente subi pelas escadas meio alagadas, que sempre me faziam lembrar de um hospital onde nunca estivera. Um hospital em quarentena, isolado por alguma peste desconhecida e mortal, no coração da Rodésia: Karen Blixen traria víveres, vacinas. Eu fizera aquilo tantas vezes que, mesmo fechando os olhos, sem contar os degraus, só pelos cheiros e ruídos dos corredores, podia identificar cada um dos andares. No primeiro, cebola frita, feijão, mijo de gato, moravam as velhinhas tão idênticas com suas saias pretas e guarda-chuvas que eu nunca soubera quantas seriam, mas no mínimo uma meia dúzia, e aqueles diálogos das telenovelas que assistiam sem parar. − Leda, você não tem o direito de fazer isso comigo. Afinal, são sete anos. Sete anos, mais que de amor, de devoção! − Amor? Você diz... amor? Só se for para você, Rogério. Porque para mim, para mim foram sete anos de prisão e amargura. − Então quero saber a verdade, Leda. Por mais insuportável que seja. Olha nos meus olhos e responde, se ainda te resta alguma dignidade. Você... você tem outro homem? Não ouvi a resposta de Leda. A nefasta verdade. Ou a câmera parada num rosto impenetrável, narinas frementes: cenas do próximo capítulo. No segundo andar, afundei naquele cheiro de suor de academia de ginástica, água de colônia barata e preservativos usados. O apartamento dos dois rapazes argentinos que faziam musculação, halteres e, eu suspeitava, também michê pelos jornais. Do meu apartamento podia ouvir um dos dois sair correndo quase sempre depois que o telefone tocava, naqueles dias exatos − eu cuidara no jornal − em que os classificados de massagens ofereciam os prazeres de "Stallone, argentino atlético superdotado para homens e mulheres insaciáveis". Aos domingos, quando deviam sentir banzo da Calle Florida e não havia clientes, pela janela aberta era possível ouvir a voz de Carlos Gardel, nostalgias de sentir junto a mi boca como un fuego tu respiración. Gardel agora estava calado, substituído pelos gemidos de algum vídeo pornô entrecortado por exclamações quase incompreensíveis além de um coño ou mira que conchuda,
hombre. Há mais de ano, desde que Lídia me passara o apartamento antes de fugir para o interior de Minas Gerais, nada daquilo era surpresa. Dependendo do humor de cada dia, podia soar folclórico, bizarro, sórdido, deprimente. Às vezes Pedro Almodóvar, às vezes Manuel Puig. Mas naquela noite eu estava exausto demais para achar qualquer coisa. Parecia pior, parecia real. Meu andar cheirava sempre a defumação. Não aquela das varetas indianas compradas em entrepostos naturais, mas outra mais espessa e barata, tabletes coloridos das lojas da Praça da Sé. De qualquer forma, perfumado. Cheiro de igreja. Místico, enjoativo. Pelas frestas da porta do apartamento ao lado, principalmente às sextas-feiras, escapavam colunas acinzentadas de fumaça doce, transformando o corredor num túnel nevoento, litúrgico. Era o apartamento de minha vizinha Jandira. Tentei pisar mais leve, para que não abrisse a porta puxando conversa. Foi inútil. Eu enfiava a chave na porta quando ouvi a voz dela: − Você viu o Jacyr por aí? Jacyr − ela gostava de contar que o filho chamava-se assim porque, num ato de amor, fundira num só o nome dela com o do ex-marido-Moacyr-aquele-cafajeste − era um garoto magro, esganiçado, de uns treze anos, que às vezes fazia faxina para mim, ia ao correio, ao banco, ou ficava numa esquina da Augusta distribuindo volantes sobre "os estarrecedores poderes telúricos de Jandira de Xangô". Desde que, por insistência de Lídia, eu escrevera o texto dos tais volantes, Jandira decidiu que eu era uma-flor-de-moço e estava sempre tentando me ajudar. Eu disse que não tinha visto ninguém, e me voltei para ela. Era uma mulata clara, pouco mais de trinta anos, cintura muito fina, bunda imensa, dentes magníficos. Usava um turbante prateado, argolas enormes nas orelhas. Não parecia muito preocupada.
− Ele saiu antes da chuva, Iansã anda furiosa. Não voltou até agora − ela olhou para mim mais atenta, e meio vesga, como sempre ficava quando começava a ver coisas: − Você está diferente, o que aconteceu? − Arrumei emprego − eu disse. Ela bateu palmas, ergueu as mãos para o alto, saudando: − Kaô kabiesile meu pai! Graças a Deus, pedi tanto a Xangô. Você vai ver como agora vai surgir justiça na sua vida, meu filho. Daqui para a frente, Xangô há de prover todas as suas necessidades. Pensei que, se aquele emprego no Diário da Cidade era justo, Xangô devia andar bebendo demais. Mas não disse nada. Virei a chave, comecei a abrir a porta. Embaixo dela, no chão, havia uma carta, o envelope debruado de verde e amarelo. Podia ser, tive saudade, esperança e duvidei, podia ser de Pedro. Fiquei ansioso para pegá-la, mas Jandira não parava de falar, querendo saber tudo sobre o tal emprego. − Trabalhei demais − menti. − Estou cansado. Fui entrando, a carta palpitava no chão. Ela me deteve: − Me procura amanhã. Você precisa jogar os búzios, Oxum está pedindo. Falei que tudo bem, não pretendia ir. Fora uma vez, Lídia não ia ao supermercado sem consultar Jandira, o oráculo da porta ao lado. Eu ficara decepcionado, ela não disse quase nada daquelas coisas todas sobre maravilhas do futuro, você vai ser convidado para uma festa, vai conhecer uma pessoa que. Só mandara tomar banhos com umas ervas, que não tomei, as feiras fechavam quando eu estava acordando. Cartas, santos, números, astros: eu queria afastar completamente todas essas coisas da minha vida. Queria o real, um real sem nada por trás além dele mesmo. Apenas mais fundo, mais indisfarçável, sem nenhum sentido outro que não aquele que se pudesse ver, tocar e cheirar como os cheiros, mesmo nauseantes, mas verdadeiros, dos
corredores do edifício. Eu estava farto do invisível. Antes de entrar, perguntei: − E o Jacyr? Jandira sacudiu os ombros: − Quando Oxumaré quiser, ele aparece. Qualquer coisa, eu disse, qualquer coisa me chama. Peguei a carta no chão, olhei o remetente. Era Lídia, provavelmente falando outra vez de todas aquelas igrejas coloniais, paredes brancas, portas e janelas azul-marinho, montanhas e vacas de Diamantina, Sabará ou Mariana. De como finalmente ela tinha descoberto a paz & o equilíbrio & do quanto estava feliz por cair fora de São Paulo & o que afinal eu continuava procurando nesta cidade poluída, maligna & amaldiçoada? O real, respondi mentalmente. Deixei o envelope em cima da mesa, sem abrir. Aquelas cartas me faziam mal. Tudo me fazia mal, olhei em volta. Nas paredes que eu limpara de todos os vestígios de Lídia − Che Guevara, John Lennon, Charles Chaplin − havia apenas um pôster gigantesco, quase dois metros de largura. Cercado por uma moldura preta cheia de furos brancos, como um fotograma, estava uma faixa de areia amarela mergulhando num mar quase verde. Ao longe, do outro lado do que provavelmente era uma baía, algumas montanhas rasas. Tudo árido, nada tropical. Em primeiro plano, contra as montanhas e o mar, em pé na areia, uma mulher usando um antiquado maio duas peças, mãos cruzadas atrás da cabeça. A mulher era um tanto gorda, cintura grossa, pernas curtas. Usava raybans gatinho, como os de Patrícia. Embaixo dela, sobre a borda inferior do fotograma, estava escrito L&t es nicht aufregend, dieses, Leben?, que alguém me dissera em Berlim que significava "não é excitante esta vida?" ou algo assim. Era absolutamente tolo, quase sempre me dava vontade de rir. E era tão raro rir que repeti: − Não é excitante viver?
Ainda não tinha me acostumado à ausência da secretária eletrônica, então olhei para o telefone sem nenhuma máquina embaixo dele, nenhuma luzinhavermelha piscando para mim. Era sempre assim, depois que eu a vendera: entrava, olhava a alemã opulenta e tinha vontade de rir, depois olhava o telefone e tinha vontade de chorar. Alguém pensara em mim, e eu ausente, que pena, deixa teu recado depois do sinal. A estante torta de livros, quase todos de poesia, a máquina de escrever empoeirada, o fogão na quitinete, a geladeira vazia. Nem microondas, computador, máquina de lavar, freezer, fax, enceradeira, vídeo, aspirador, disc-laser, centrífuga. Eu era artesanal, pré-eletrônico: duro. Estava pensando em sair para comer alguma coisa naquela cidade enlameada quando bateram na porta. Era Jandira, um copo de leite e uma fatia de bolo num prato. Sobre os dois, um guardanapo branco muito limpo. Estendi a mão, perguntei: − Nada do Jacyr? − Não se preocupe com ele. O Jacyr sabe se virar. Come isso, você anda muito magro, meu filho. Dei um beijo nela. Sempre cheirava a arruda. − Fica com Deus − ela disse. Amém Jesus, eu devia dizer. Mas não disse nada. Fechei a porta. Tirei toda a roupa, joguei no meio da sala, depois me estendi no sofá embaixo da janela. Pensei em ligar o rádio, mas não suportaria ouvir a voz de Márcia cantando, sempre era um risco, ligar a tevê ou abrir um livro, mas sabia que não conseguiria prestar atenção em nada, desventuras de Rogério e Leda, buracos na camada de ozônio, vulcões em Java, terremotos na Mongólia. Pensei em sair para um cinema, mas já tinha visto todos os filmes da cidade, inclusive aqueles de férias, em que adolescentes esquizóides de repente viram o ídolo do colégio e conquistam a rainha da torcida, em beber outro conhaque, dez conhaques, mas não havia nenhuma bebida em casa, em ligar para alguém, onde andaria Regina, mas eu sumira há tantos meses que
teria que dar explicações e contar e ouvir coisas como por onde você anda o que você está fazendo, e não − eu não queria mesmo nada além de ficar ali, exausto e nu, jogado no sofá molhado pela chuva. Toquei o pescoço, no lado direito. Inaparentes, rolavam sob as pontas dos dedos. Apaguei a luz, e enquanto comia o bolo de Jandira, no escuro iluminado apenas pelos reflexos do neon da funerária do outro lado da rua, sem querer pensar em nada do que tinha acontecido, lembrei vagamente que havia mais alguém no apartamento da São João, naquele dia, quando pela primeira vez vi Dulce Veiga, e logo depois, ou ao mesmo tempo, um pouco excitado, equilibrei sobre a barriga o copo de leite, para lembrar também da borboleta entre os seios pequenos de Márcia, mas os seios dela confundiam-se com os peitos musculosos do argentino que eu vira um dia no corredor, e no meio da gritaria dos travestis lá embaixo entrando pela janela aberta junto com nuvens de mosquitos, antes de dormir, pela terceira vez naquele dia, entre farelos, pensei outra vez em Pedro.

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