A Zaél Abreu

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São Paulo, 15 de maio de 1980.

Querido pai,
fazia tempo que queria escrever para o senhor, desde que voltei daí, no final de
fevereiro. Acontece que foi uma correria danada, com o novo trabalho, a nova casa,
a complicação toda com os documentos, a vinda de Simone — enfim, mil coisas
me roubando tempo e disposição. Agora está tudo mais calmo. Já me adaptei ao
trabalho, estou sozinho em casa. Tudo corre melhor, mais solto.
Fiquei um pouco preocupado com o senhor quando estive aí. E o senhor vai
me permitir ser franco: tenho a impressão de que o senhor está levando uma vida
muito amarga. Ficou na minha cabeça uma frase que o senhor disse logo ao voltar
daquela viagem a Santiago, algo como “Eu já morri e não sei”. Ô pai, que é isso?
Entendo — e mais profundamente do que o senhor possa imaginar — o quanto a
mudança de Santiago para Porto Alegre, a reforma no quartel o abandono da
Maçonaria devem ter agido dentro do senhor para que fosse acontecendo esse
sentimento de distanciamento da vida. Mas acontece que o senhor não colocou
outras coisas para substituir essas. E eu não entendo por quê. O senhor abandonou
até mesmo a leitura, parou de ir ao cinema, de sair. Quer dizer, deliberadamente
foi-se afastando de tudo. Num velho, eu até entenderia essa atitude. Mas o senhor
não é um velho.
Imagino que existam razões fortes, ou complexas, dentro do senhor para
provocar essa atitude. Mas há de concordar comigo que, fora do senhor, essas
razões não existem. Tenho andado bastante por aí, conhecido muita gente e,
honestamente, pouquíssimas vezes (ou quase nunca) encontrei uma família como a
nossa. Unidos, amigos, solidários — com essa mãe fantástica que é a Dona Nair
segurando a barra de todos. Amigos meus que os conhecem — como, por
exemplo, o José Márcio — ficam muito impressionados, “Mas como” — eles
dizem — “é que vocês conseguem se manter assim quando todas as famílias por aí
estão desmoronando?” E eu não sei explicar. Acho que é uma questão de amor.
Fiquei preocupado também com a mãe, quando estive aí. Ela está cansada,
pai. E muita seguração de barra. Há anos, meu Deus, ela só trabalha, sem descanso,
quase sem diversão. Achei-a triste.
Mas não pense, por favor, que esta carta é para recriminá-lo por alguma
coisa. Não se trata disso. Apenas gostaria de compreende-lo melhor e, se possível,
de ajudá-lo — como o senhor e a mãe me ajudaram (e ainda ajudam) durante muito
tempo. Eu gostaria de convidá-lo para vir, com a mãe, passar um tempo comigo.
Acho que julho é uma boa época, porque coincide com as férias da mãe e tal. A
casinha é realmente ótima e, como estou sozinho agora (e por muito tempo), há
bastante espaço. Tem dois quartos em cima, um deles seria de vocês, Por enquanto,
ela está um pouco vazia. Como estou comprando o telefone (saiu 50 mil), este mês
me sobrou pouquíssimo dinheiro. Mas acabo de pagá-lo no final de maio, portanto
em junho ela deve estar pronta.
Fora a alegria que me dariam, acho que faria muito bem ao senhor sair um
pouco. Tem tanta coisa aqui por cima, pai. São Paulo é uma cidade fascinante, cheia
de vida. Depois, lembro que Tia Ninica ofereceu o apartamento dela, no Rio —
vocês poderiam estender a viagem até lá — uma cidade linda demais. Pense nisso.
Gostaria tanto que o senhor e a mãe conhecessem o lugar onde vivo. E não me
venham com desculpas tipo “dinheiro”. A passagem de ônibus custa tanto quanto
de Porto Alegre a Itaqui, e de avião pode ser feito um crediário que sai ainda mais
barato. Eu não vejo problemas.
Talvez o senhor não tenha vontade de sair — mas será que não vale a pena
um esforço? Às vezes a gente vai-se fechando dentro da própria cabeça, e tudo
começa a parecer muito mais difícil do que realmente é. Eu acho que a gente não
deve perder a curiosidade pelas coisas: há muitos lugares para serem vistos, muitas
pessoas para serem conhecidas. Tudo isso estimula a gente, clareia a cabeça,
refresca. Por que não?
Quanto a mim, acho que estou muito bem. Poucas vezes tenho me sentido
assim. Pela primeira vez, estou comandando completamente a minha própria vida.
Morar só é uma experiência fantástica. Tenho uma empregada ótima, Renilda, uma
baiana flor de boa vida, mas muito bom caráter (e como isso é raro por aqui, o
resto não importa muito). A casa tem um jardinzinho nos fundos, um pequeno
pátio, que tenho cuidado muito, principalmente nos fins de semana.
Terça-feira aconteceu uma coisa ótima. Como o senhor sabe, há quatro anos
eu fazia psicoterapia. Primeiro aí, dois anos, com o Dr. Mário Bertoni, que morreu
naquele desastre. Depois continuei aqui, em grupo. E há alguns meses eu vinha
pensando em parar. Não sentia mais grandes problemas para discutir. Nesse tempo
todo, aprendi a me conhecer, a conviver comigo mesmo, me tornei muito mais
tranqüilo, muito mais seguro. Falei nisso às outras pessoas do grupo, ao Dr.
Domingos, o psicanalista, e à Suzana, a psicóloga assistente dele. Foram ótimos
comigo: acham que eu estou realmente bem, que tenho mesmo condições de
segurar a minha barra sozinho. Enfim, ganhei alta — o que é uma coisa rara em
terapia. Às vezes as pessoas ficam dez, quinze anos em tratamento. Isso me deixa
ainda mais confiante.
No trabalho, tudo vai bem. Tenho um chefe excelente — Caloca, tinha sido
meu chefe na Pop, e me protegeu durante muito tempo. Ontem consegui terminar
um trabalho que vinha fazendo desde março, um livrão de mais de 500 páginas
sobre educação de bebês. Continuo fazendo as críticas de livros para Veja e, de vez
em quando, algumas matérias para a Nova. Como meu salário aqui é de 52 mil, às
vezes tiro 60/65 por mês. Dá para levar, apesar do Delfim Neto...
Agora que tudo está mais ou menos em ordem, quero começar a aprontar
um novo livro. Estou transando com uma editora do Rio (a Nova Fronteira, que
pertencia ao Carlos Lacerda) para publicá-lo. No momento, creio que é a melhor
editora do Brasil. Acho que tudo vai dar certo e — quem sabe? — no começo do
próximo ano talvez esteja com um livro novo à venda por aí.
Insisto mais uma vez: gostaria profundamente que o senhor e a mãe
pudessem vir. Por favor, vão pensando nisso desde agora. Vamos passear muito.
Há lugares ótimos para conhecer.
Espero que estejam todos bem. Um beijo para a mãe, Cláudia e Márcia. Um
abraço para o Felipe. Sei que o senhor não gosta de escrever cartas, mas se quisesse
responder eu gostaria muito. Cuide bem de sua saúde.
Um grande abraço do seu filho
Caio


PS — Minha erva mate acabou completamente — tenho procurado em mil
lugares e não encontro, O senhor podia me mandar um ou dois pacotes de
Madrugada Amarga?

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