A Luiz Arthur Nunes

0

São Paulo, 10 de março de 1986

Luizar, querido,
você não imagina como foi dificil conseguir estes minutos para sentar aqui e
escrever a você. Mais ainda, sentar e concluir o melodrama. Meu plano era ter
mandado tudo hoje pela manhã. Não foi possível.
Esta cidade é definitivamente vampira. Me sinto exausto. Hoje foi meu
último dia na revista, estou mergulhado em burocracias inacreditáveis para fazer
todos os documentos necessários à contratação pelo Estado. Nem vale a pena
contar. Mas tenho vontade de chorar, fugir para o Paraguai que seja. Vai dando
certo. O que não impede uma angústia e uma insegurança insuportáveis.
Mas olha, taí o melodrama.
A partir da página 23, rebati e reescrevi muita coisa. Principalmente quando
Ursula recupera a memória. Entre otras cositas, que você vai perceber, dei uns
toques de impaciência para Jezebel. Jezebel, acho, tem todos os planetas em signos
de terra — e simplesmente não suporta piração. Então ela dá uns bons cortes em
Ursula.
Na fala final de Ursula, acrescentei algo que me pareceu engraçado. Com
toda essa história de pacote econômico, Ursula — tomada pelo espírito de Maria da
Conceição Tavares — diz: “Amanhã mesmo congelarei todos os preços no vilarejo,
mudarei a moeda corrente e triplicarei o salário dos mineiros”.
Isso tem dois gumes. Te explico minha loucura:
Pode ser bom, porque remete à situação atual do Brasil — fica tudo como
uma sátira à Nova República (Maurício é a ditadura que cai — Ursula a oposição
que sobe). E é — eu acho — hilário.
Mas pode ser mau, porque — não sei — situa demais. Não sei se não reduz o
melodrama todo a um nível de leitura menor. Isso pode ser forte porque é
praticamente a última fala da peça.
Enfim: você decide. Alias, querido, meta a mão no texto durante os ensaios.
Corte, enxugue, acrescente. O que você quiser. Tenho inteira e absoluta confiança,
sabes, no teu trabalho — pra mim, você é um dos melhores diretores do país.
Reli todo o texto umas três vezes. Sa’s que gosto muito? Acho que não está
irregular — tem ação, tem uns “monólogos interiores”, as personagens são todas
muito vivas (o mais pêra me parece Vassili: tentei melhorar um pouco — na
recuperação da visão usei algumas informações de Borges), tudo é muito dinâmico.
Talvez a cena em que Ursula recupera a memória esteja lenta demais. Eu quis
fazer certa tensão — pira, despira, pira de novo. Não sei se não ficou arrastado.
Sugestão: para música final — andei ouvindo Muda Brasil, de Todas, da
Marina. Acho que tem a ver. Talvez seja um pouco lenta. Sou favorável ao rock
mais pauleira possível. Pode até ser um clássico, tipo I can get no satisfaction — com
aquele pique, pelo menos.
Ah: continuo com os quadros-vivos na cabeça. Também porque as
narrações podem ficar meio chatas — é preciso, eu acho, que nos momentos de
narração o texto não fique fundamental demais, entende?
Sobre o melodrama, acho que é isso. Aguardo notícias e — se Deus quiser
— para a estréia estarei aí. Ou logo na seqüência.
Quanto à minha vidoca, bem, têm acontecido coisas. Uma delas, boa — foi
um telefonema do Rio: se eu queria aquela bolsa do International Writing Program,
de Iowa. A partir de setembro, três meses. Topei, achei ótimo. Agora estão rolando
umas burocracias, mas tudo praticamente acertado — acho. Fico enlouquecido de
pensar em sair do Brasil novamente. Precisava muito. É pago, e tal, daria pra ir a
New York, quem sabe voltar pela Europa. Não fale a ninguém — entra areia, você
sabe —, mas mande boas energias.
Ando tenso, inseguríssimo e muito só. A mudança de trabalho me deixa bem
louco. E tudo travado. Não tenho escrito. Não há tempo, não há condições
práticas, não há serenidade. A cidade ruge e invade teu espaço. Tenho me
perguntado muito do sentido de continuar vivendo em São Paulo. E não encontro
resposta, nem outra possibilidade.
A euforia econômica no ar me parece positiva — pelo menos tem certa
esperança. Mas não deixa de ser meio ridícula essa ânsia toda. Sei lá, sei lá, minha
cabeça dá nós e eu penso que não entendo nada do momento histórico.
Mas é isto. Te quero um bem enorme, sempre, e desejo felizes ensaios. Que
tudo fique lindo, com a mão característica do seu enorme talento. Quando puder,
me dê notícias.
Um beijo carinhoso do seu irmão/amigo
Caio F.

Ler mais »

0 comentários: