A Sérgio Keuchgerian

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Na cidade alagada
27 de janeiro de 1987
16h 20m

Sérgio, querido,
saudade & saudade & saudade. Fico à espera do teu mapa, que não me
chega, então me adianto e te escrevo. Esperava o mapa também para descobrir o
dia do teu aniversário. Não lembro. Já foi? está sendo? vai ser?
Cinza & relâmpagos outside. Paisagem dramática. Edifícios recortados
contra o céu cortado de relâmpagos. Eparrê-yê, Iansã! Caos, catástrofe. Chegar
ontem no jornal foi igualzinho a um comercial de Camel. Até curti.
Sinto uma falta absurda de você. Ficou um vazio que ninguém (pre)enche. E
penso e repenso e trepenso em você por aí. Deve ser tão árido. Horizontes
infinitos? Mas fique tão tranqüilo — e humilde, e confiante — quanto possível. É
só uma fase, só um estágio. Vai passar. Lembro dos meses que passei em
Estocolmo, numa cidade universitária — Kungshambra — onde só havia suecos,
dinamarqueses, finlandeses, noruegueses. Teve uma noite de lua cheia
— e era midsummer, pleno verão, não havia noite, só duas horas de penumbra
crepuscular — que saí a caminhar em busca de alguém para conversar. Dizer ôi (ou
hei, em sueco), ou Inte präte svenska (“não falo sueco”) que fosse. E nada, não
encontrei ninguém. Caí (pode?) no meio do asfalto chorando. Arranhei as unhas no
asfalto de pura solidão. E aquela lua cheia enorme lá em cima, e os bosques atrás,
com o castelo de verão do rei — tudo parecia sinistro. Parecia que eu ficaria para
sempre lá, ao lado do Pólo Norte, e que isso não tinha o menor sentido.
Mas passou. Hoje te conto. E lembro daquela história zen, o rei que pediu ao
monge um talismã que o protegesse de qualquer mal. O monge deu ao rei um anel,
com a recomendação de abri-lo só em caso de extremo perigo. Um dia, o castelo
foi cercado pelos inimigos, e o rei encurralado numa torre. Ele abriu o anel.
Dentro, havia um papelzinho dobrado. Ele abriu o papeizinho e leu uma frase
assim: “Isto também passará”.
Tenho sofrido um pouco. R. veio de Porto Alegre, no sábado. Tivemos um
dia lindo — com direito a sauna Nikkei e massagem (Akira sapateou em cima de
mim, me virou para a esquerda e para o avesso). Jantamos num japa, saímos duas
xuxas para ver Drácula. E então, em casa, ele me rejeitou mais uma vez. Me adora,
morre de carinho & respeito & admiração. Mas: SEXO NÃO. Eu fiquei chorando
no escuro, enquanto ele decidia dormir na sala.
Eu fiquei olhando aquelas estrelinhas no céu do quarto, sem entender nada.
Tive vontade de ir de mansinho até a cozinha e abrir o gás. Talvez matá-lo
também? Tive vontade de pegar uma faca na cozinha e enfiar no coração dele,
depois no meu. Tive vontades Maria Bethânia, vontades Maysa, vontades
Fassbinder — teatrais, melodramáticas. Me limitei a escovar os dentes, me
masturbar pensando nele, e dormir. No dia seguinte, joguei um I Cbin, e perguntei
o que fazer. Saiu o abismal, Agua sobre Água: a imagem de um abismo. Como no
fundo do abismo, a água escorre, você deve escorrer sem parar, para a frente.
Mantenha a sinceridade no fundo de seu coração. Mantive. Tenho mantido. Nos
dois últimos dias me baixou o irresistível & simpático Tio Caio. Aquele serviçal,
paciente, tolerante — que compra flores e frutas, lava a louça, quebra galhos. Você
sabe.
Faço o papel sem dificuldade. A água flui, vai para a frente. Isto também vai
passar. Mas não compreendo. Então um lado meu pensa: é sina, é fado, é destino, é
maldição. Outro lado pensa: não, é mera neurose, de alguma forma sutil devo
construir elaboradamente essa rejeição. Crio a situação, e ouço um não. Desta vez,
eu tinha tanta certeza. E penso: os deuses me traíram, os búzios me atraiçoaram, as
cartas me mentiram. E me sinto velho e cansado, e tiro toda a roupa preta guardada
nos armários — e tudo não deixa de ser teatral, meio engraçado. Mas há também
uma dorzinha verdadeira no fundo. A pequena gota de sangue, como um rubi.
E me baixa o peso do tempo, e dos meus 38 anos, e dos cabelos caindo, e de tudo
indo embora e fugindo e se perdendo — e o amor sem acontecer, quando estou
assim todo maduro, e limpo, e pronto, e luminoso como uma maçã no galho,
pronta para ser colhida. Ninguém estende a mão para a maçã, pouco antes de
começar o processo de apodrecimento.
Você conhece essas queixas, e eu não peço nenhuma palavra de consolo
sobre elas. Tá tudo bem assim. Só que me rouba o sentido — entende? — ou a
ilusão de sentido que quero ter da vida, e que é essencial para a minha
sobrevivência. Não faz sentido ouvir esse não. Ou eu não estou vendo — agora —
esse sentido? Pode ser. Mas eu tinha/tenho tanta sede dele. Me sinto o camelo do
poema de Cecilia Meireles, mastigando sua imensa solidão.
E penso: sou feio, então, sou desagradável, é isso, é isso — é só isso, sou
incapaz de inspirar qualquer erotismo em alguém. Fico me ferindo, mas também
dou voltas e penso: não, não é nada disso, sou legal, sou mansinho, sou até
bonitinho. E penso tantas e tantas outras coisas, mas o real não se modifica. E o
real, parece meio grosso dito assim, mas no fundo é isso mesmo — o real é: R. não
quer trepar comigo de jeito nenhum.
Como dói.
Mas tenho anotado histórias, anotado sem parar. Está vindo algo por aí, está
se avolumando. Talvez seja o único jeito, não? Minhas ficções não me rejeitam.
Talvez seja sina, essa de escrever, e então ter as respostas da vida real na vida
recriada, nunca na própria vida real — como as pessoas que não criam costumam
ter. E deve estar certo assim, deve haver uma ordem e um sentido nisso.
Terminei As brumas. Tive um impulso quase incontrolável de ligar pra você
às três da manhã. Mas tua mãe me disse que o telefone é na portaria, precisam te
chamar no quarto. E eu achei que ia ser muita barbarização, fiquei quieto. Mas não
encontrei ninguém para falar sobre. Fiquei impressionado, fiquei machucado com a
decadência, a loucura, a solidão do final. E tenho medo de ter a sina de solidão de
Morgana. E lindo demais, e terrível. Fico filmando na minha cabeça. Isabelle Adjani
como Morgana, Christopher Lambert como Arthur, Kim Basinger como
Guinevere — não encontro Lancelot, mas podia ser Richard Gere? Muito pêra,
talvez Sean Penn, com os cabelos tingidos de preto? E Harrison Ford teria que ter
um papel. Penso em Irene Papas como Viviane (ou Raven). Te parece bom? Claro
que seria caríssimo. E muito chique, ‘magináh!
Quando você vem? Quando te vejo? Quando jantamos juntos em qualquer
lugar? Manda teu mapa logo, te mando um cademinho de trânsitos. R. descobriu
que a hora de nascimento dele estava errada: portanto ele é Libra, ascendente em
Touro, Lua em Touro, Vênus em Virgem. A combinação perfeita para mim, que
tenho Sol em Virgem, ascendente Libra, Lua em Capricómio e o nó lunar em
Touro. Touro é a minha casa VII e VIII, a do casamento, e da sexualidade. E por
tudo isso, entendo ainda menos.
Pense em mim, me mande mentalmente coisas boas. Estou tendo uns dias
dificeis — mas nada, nada de grave. Penso em você com carinho, com amor, com
saudade. Me deram trabalho. Tenho que parar.
Te amo muito. Beijo,
Love
Love
Love
Caio F.

PS 1 — Maurício vai amanhã — mando por ele. É ótima pessoa: curtam-se.
PS 2 — Falei com sua mãe, Ela mandou dizer que está morrendo de saudade — e
só não liga todo dia pra não ficar ainda mais saudosa.
PS 3— Não se preocupe comigo. Ontem, eu tava meio amargo. Tá tudo bem!
Afinal, o que é SEXO?
Beijos
Beijos
Beijos
Beijos
Beijos

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