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Para Dante Casarini


Irreconhecível
Me procuro lenta
Nos teus escuros.
Como te chamas, breu?
Tempo.
(Hilda Hilst: Da Morte, Odes Mínimas)



Ele chegou devagar e sentou-se na varanda coberta de begônias empoeiradas, sem uma palavra. Ninguém perguntou de onde vinha. Naquela casa cheia de gentes e barulhos cotidianos, um inesperado silêncio respeitou sua chegada. As crianças o olharam com curiosidade — a mesma curiosidade que os adultos continham brotava nelas, espontânea, e cercavam o homem sem medo, achando apenas estranha aquela figura esfarrapada, mas muito limpa, de pés descalços semelhantes a raízes. O homem parecia não reparar nelas, nem nos outros. Olhava para longe sem se mover, olhava para longe com alguma coisa determinada e fatal guardada nos olhos. Alguns suspeitaram nesse olhar sabedorias trazidas dos lugares por onde andara, compreensões maiores, aprendizados tão amplos que voz nem gesto expressariam. “O que mais sabe é o que mais cala”, sussurravam numa aceitação de seu silêncio. E passavam como se não o vissem, sequer comentando entre si a chegada dele, estabelecendo tácitos que ele ali estava, e nada modificaria essa situação. Os mais antigos olhavam o retrato pendurado na sala, investigando semelhanças: o retrato amarelado pelo tempo, o homem amarelado pela vida. Mas embora os traços fossem os mesmos — a curva no nariz adunco, o vinco duro e fundo no canto da boca, o rosto encovado e longo —, embora mais castigados pelos anos, havia no homem da varanda uma claridade que o retrato não tinha. Havia no homem como uma aura quase insuportável de lucidez e ausência. Então eles todos, menos as crianças, sentiam- se toscos e evitavam passar perto. Sabiam que não se atreveriam jamais a chegar perto daquele homem.
Aceitaram-no pelo dia afora, a casa aos poucos se enchendo de tensões pelos cantos. Elas se amavam, as pessoas daquela grande família, embora fosse um amor cotidiano, distraído, não de palavras e gestos mas de lençóis trocados em dias certos, refeições nas horas exatas, roupa lavada, delicadezas um pouco mecânicas. Mas com o dia avançando, as sombras ampliavam a presença do homem pela casa inteira. Essa sombra se infiltrando devagar em cada quarto jogava no rosto de cada um tudo aquilo que não haviam sido, que não haviam feito, tudo aquilo que tinham apenas ameaçado ser, intensos e cheios de sangue, para depois se amoldarem num dia-a-dia feito de automatismos. Quieta, remota, a presença do homem era uma afronta.
A hora do jantar, comeram em silêncio, trocando os pratos sem gentileza, os tinidos do metal na louça substituindo o afeto entre as paredes caiadas. E pela primeira vez, Valentina não riu. Distribuía os pratos rápida, ordenada, a boca endurecida depois de anos de riso aberto.

II
As crianças foram postas mais cedo na cama, conscientes apenas de que havia um desconhecido sentado na varanda. Os outros permaneceram na sala. Valentina tricotava enquanto as mulheres remexiam na cozinha e os homens fumavam cigarro após cigarro, todos em silêncio. Não se atreviam a formular as perguntas soltas no ar — viera para ficar, o homem? seria preciso arrumar uma cama para ele? e no quarto de quem? o que queria, depois de tanto tempo? Esqueceram de levar o chá para a avó inválida, esquecida na cama. E às dez horas, respeitando as batidas do velho relógio, recolheram-se a seus quartos em passos medidos e boas-noites medrosos.
Apenas Valentina ficou na sala, as agulhas trabalhando numa enorme trama azul-marinho, quase negra, que já escorregava de seus joelhos para atingir o chão, encaminhando-se como uma serpente lenta para a porta da varanda. Por duas horas ainda trabalhou, até que toda a sala estivesse coberta por aquele tapete, ou rede, ninguém saberia dar nome. À meia-noite levantou-se e espiou.
O homem continuava lá, na mesma posição desde que chegara. Como um faraó na cadeira dura, as duas mãos pousadas sobre as coxas, as palmas voltadas para baixo, os olhos fixos além de tudo. Escondida atrás das cortinas, Valentina viu que seus pés descalços pareciam raízes grossas ameaçando entrar pelo chão de tijolos, viu que suas unhas eram longas, ovaladas e quase verdes, feito folhas, e que seu rosto pétreo parecia um fruto sendo aos poucos esculpido, ainda verde, mas cheio de sementes que transpareciam no olhar. Desejou aproximar-se, tocálo, saber até que ponto aquela carne que tinha sido sua e lhe plantara filhos de carne também dentro de sua própria carne continuaria quente ao toque. Até que ponto continuavam mornas aquelas mãos que haviam despertado regiões desconhecidas de seu corpo, até que ponto continuava vivo aquele membro que fizera germinar cinco filhos em seu ventre. Não se atreveu. Chegou a ensaiar alguns passos na fronteira da varanda, pensando em ternuras, solidões há muitos anos caladas. Mas em tcomo do homem, como um ímã às avessas, alguma coisa repelia qualquer tentativa de aproximação.
Lenta, então, Valentina voltou para o próprio quarto e, embora não fosse o dia, escolheu os lençóis mais brancos e os travesseiros mais macios para fazer cama nova. Sacudindo panos, a janela aberta, fez com que o cheiro de alfazema se desprendesse para avançar até a varanda de begônias empoeiradas. Abriu a porta do quarto para que o homem percebesse o convite, trouxe da cozinha um caldo quente e colocou-o sobre a cômoda, dobrou uma toalha limpa e colocou-a dobrada sobre a cama com um sabonete de benjoim. Depois de tudo pronto, abriu leve a porta dos quartos dos filhos e noras, dos netos, da mãe, viu que dormiam em paz e voltou para o próprio quarto. Então olhou sua própria sombra projetada na parede:
um pouco curva, os seios murchos, caídos, as mãos cheias de rugas, as articulações nodosas, e aquele riso permanente durante os quase trinta anos que ele se fora, aquele riso que de mero dissímulo passara a ser verdade, aquele riso agora pesava, pesava, pesava.

III
No dia seguinte, os filhos no trabalho, as noras espalhadas, os netos na escola, espreitou o quarto, a cama, o caldo, a toalha, o sabonete. Permaneciam intocados, e o homem na varanda na mesma posição do dia anterior. Estaria morto? perguntou-se sem susto, quase tranqüilizada. Morto o homem, a casa voltaria a ser como antes e ela teria seu riso de volta. Mas, mesmo visto de longe, embora imóvel, o homem transpirava e pulsava na manhã escaldante de janeiro. Procurou então a mãe, no quarto. Abriu as cortinas enquanto um cheiro de mofo e dois olhos brilhantes saltavam do fundo da cama.
— Mãe, ele voltou.
— É tempo — disse a velha.
— Mãe, o que faço?
— Você está velha.
— Mãe, o que faço?
— Você está feia, Valentina.
— Mas o que faço, mãe? Ele está lá fora, na varanda. Ele está lá, no meio das begônias. Desde ontem, ele está lá, mãe.
A velha levantou o braço e mostrou o espelho amplo, de parede inteira. E num susto Valentina viu sua própria pele cor de terra, seu vestido desbotado, sua boca de riso morto parecendo costurada, as mãos como dois pergaminhos crispados, uma teia de rugas espalhada por toda a pele. Naquele dia, esqueceu do almoço, da limpeza da casa, do pó sobre os móveis, de tudo que fazia todas as manhãs. Debruçada na janela olhava com olhos parados a rua enchendo-se de cores e movimento, sem responder aos cumprimentos dos vizinhos. Quando os outros voltaram de suas ocupações, jogou um pedaço de came sangrenta numa panela com água e não arrumou a mesa nua. Sentada à cabeceira, olhava e agradecia. Os filhos eram bons. Mesmo o filho viúvo era alegre e bom e trabalhador, nunca o vira lidar com mulheres, bebida, jogatina. Quis sorrir para todos eles e para suas mulheres e para suas crianças, mas a boca costurada não obedecia. Então Valentina chorou. Todos compreenderam seu choro, e não perguntaram nada, nem tentaram consolá-la. Os traços de seu rosto pareciam desfazer-se com as lágrimas, caindo líquidos na madeira marcada. Mas os ombros não tremiam, e não havia nenhuma contração em sua boca, nenhum som em sua garganta. Sem revolta, ela aceitava. E chorava pela perdição de aceitar o que não pode ser modificado.

IV
Na varanda, o homem continuava. Dois dias se passaram, uma semana, um mês, muitos meses. E o homem lá, em meio às begônias cada vez mais emaranhadas, sem comer nem falar. O homem já esquecido pelas crianças, indiferente a todos os chamados que Valentina inventava. O tricô azul, quase negro, agora cobria a casa inteira — tapete, cortina, toalha de fios grossos onde todos se enredavam sem compreender, sem perguntar.
Certa noite Valentina ouviu risos no quarto do filho viúvo. Suspendeu o trabalho das agulhas e, pelo buraco da fechadura, espiou. Estavam lá, todos os filhos, mais duas mulheres e dois homens desconhecidos, todos nus, entre garrafas vazias, cartas de baralho manchadas de vinho, camas desfeitas. Alguns dos homens abraçavam as mulheres, outros abraçavam os homens, e todos juntos se abraçavam e beijavam e rolavam e gemiam feito animais. A madrugada vinha chegando. Ela saiu para o pátio e embaixo do umbu de tronco apodrecido observou a casa. O reboco caía em placas, a pintura das janelas descascava, teias de aranha pendiam do teto, morcegos esvoaçavam, ervas daninhas tramavam-se na terra. Num dos quartos, a velha mãe apodrecia morta e esquecida sobre a cama, as cinzas transbordavam do fogão até a porta da cozinha, as crianças comiam terra junto com os porcos. Olhou para si mesma, e sentiu o cheiro de suor antigo de seu próprio corpo, viu o vestido sem cor, as unhas enormes, os cabelos soltos despencando duros e sujos ao lado do rosto. O sol recém-nascido agora crestava as plantas, a terra se abria em rachas secas, um vapor fétido se evolava das coisas e milhares de moscas voavam tontas sobre os montes de lixo.
Valentina cruzou os braços sobre o peito, procurando dentro de si algum recanto úmido capaz de amenizar aquela secura das coisas. Mas dentro dela havia o mesmo deserto, as mesmas gretas, os mesmos vapores e moscas. Espiou a rua por entre os cacos de vidro do muro, e além dos portões de ferro o mundo inteiro era também vazio, árido, seco. Nos quartos os homens riam cada vez mais alto, mulheres nuas pintavam unhas de vermelho na cozinha, os pés apoiados sobre a mesa, e passeavam todos nus pela casa sem se importar que ela os visse com as mulheres, com os outros homens, com os animais, com as crianças, com eles mesmos, enredando-se bêbados nas tramas azuis muito escuras do tricô que cobria tudo.
Endurecida, Valentina olhava sem choque nem nojo. E de repente, como uma salvação possível, lembrou-se do homem que permanecia esquecido na varanda de begônias empoeiradas. No homem havia umidade quando estava seco, havia calor quando estava frio, no homem havia tudo o que precisava e um dia tivera e o que se fora para sempre e o que não voltaria nunca mais a ser. Correu para a varanda, atravessando seu próprio quarto onde o cheiro forte da alfazema antiga dava tonturas, tropeçando nos pratos espalhados pelo chão, enredando-se nas malhas que ela mesma tecera. Falaria, falaria agora, falaria enfim
— dizia para si mesma, rindo outra vez, os lábios descosturados outra vez.
Ao atingir a soleira da porta, percebeu que o círculo de repulsão em tomo do homem já não existia. Avançou, estendeu a mão. Tocou de leve no tronco da figueira que crescera arrebentando os tijolos do chão, esmagou entre os dedos um dos frutos verdes que deixou na sua pele um sumo pegajoso, adocicado, ardido. Bebeu daquele líquido, água, esperma, leite. Depois deixou a cabeça pender entre as samambaias e avencas tramadas nas begônias, os cabelos confundiram-se na poeira das plantas, o corpo foi rodando lento e oscilou precário até encontrar o frescor do chão de tijolos. Deixou que tudo acontecesse sem um grito, sem espanto. E quando finalmente sentiu-se protegida e úmida, e limpa e sorridente outra vez, e confortável e em paz, deixou que seus movimentos se espaçassem, suspirou e morreu.

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