Venha comigo para o reino das ondinas

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Para Luciano Alabarse

Ele veio vindo pela beira do mar, as luzes da cidade longe às suas costas. As vezes escorregava tentando segurar-se em alguma coisa, mas na praia deserta não havia mais nada para segurar-se além das ondas que fugiam sempre. A areia molhada umedecia as calças pretas do smoking, salpicava as fraldas soltas da camisa, respingava o cravo vermelho pendendo da lapela. Viu-a de longe, e parecia linda com os cabelos longos soltos naquela brisa com cheiro de mulher,
algas e sal.
— Betinha — chamou, tropeçando outra vez nos sapatos de verniz.
Ela continuou a correr pela praia como se não ouvisse, como se não o visse. Descalça, braços erguidos acima da cabeça, saltava alto, redondo, depois deixava-se cair como num desmaio, e, quando o coração dele começava a bater mais forte pensando em ajudá-la, tomava a levantar-se leve feito essas pandorgas que os meninos empinam pelas tardes e mantinha-se no ar por alguns segundos, projetada para a frente. Folha, pluma branca, ave. — Betinha — ele chamou de novo, mais perto. Então ela olhou e sorriu. Não era Betinha.
— Olá — a voz dela era tão clara que o fez pensar que a maioria das pessoas não devia falar à beira-mar. A voz humana sempre parecia tosca demais entre o rumor das ondas, mas a dela, a voz da moça descalça, de branco, era sonora e limpa e de certa forma verde como as próprias ondas. Fundia-se com elas, e como elas também parecia crescer aos poucos, explodir num tom mais alto, depois fugir outra vez.
— Está procurando alguém?
— Betinha — repetiu. — Onde está Betinha?
Ela riu alto sem responder. Estendeu o braço para tocá-la, mas aconteceu alguma coisa no momento em que seus dedos alongaram-se em direção ao vestido branco transparente. Ele estava bêbado, estava sem óculos e muito bêbado, portanto não saberia dizer se aquilo chegara mesmo a acontecer. A impressão — a impressão era de que seus dedos tinham atravessado o corpo dela. Não só o tecido leve do vestido, mas o próprio corpo de carne, como se atravessa uma névoa sem ver a névoa quando se está dentro dela.
— Você viu a lua? — ela perguntou.
Só então ele olhou para cima, para a lua cheia no céu de dezembro. Ficou olhando quase esquecido dela, entendendo devagar por que fosforesciam a areia, a crista das ondas, o vestido, a pele, os cabelos da moça. Tcomou a olhá-la, elajá não estava onde pensou que estaria. Continuava a dançar mais longe dele, como se cumprisse algum ritual profano para o mar e a lua. Deve estar drogada, pensou, chegando bem perto. Nos olhos dela as pupilas eram remotas ilhas no horizonte e alguma coisa, alguma coisa ele não entendia.
— Quer um gole? — perguntou tirando a pequena garrafa do bolso interno do paletó. Ela sacudiu a cabeça e ele bebeu sozinho, o líquido escorreu pelo queixo, pelo peito rendado da camisa até gotejar na areia formando poças miúdas que começaram também a fosforescer. Só depois de enxugar a boca nas costas das mãos estendeu a garrafa para ela. Com suas mãos claras de unhas curtas sem pintura, a moça apanhou- a e jogou-a ao mar.
— Veja, ela voa — ela gritou enquanto a garrafa brilhava no ar. E quando caiu nas ondas, riu mais alto, começando a correr. Começou a persegui-la pela praia, mas estava tão completamente bêbado e ainda, como se não bastasse, sem óculos, e sempre acontecia outra vez aquela sensação de névoa, o corpo dela como que atravessando seus dedos para depois projetar-se mais longe no espaço. Ele caiu muitas vezes, placas de areia grudavam na roupa, e quando um fio de saliva escorregou do canto da boca, lembrou-se de repente de um desenho em algum livro de mitologia, o sátiro perseguindo uma ninfa. Só não tinha flauta, nem pés de bode, verificou, tirando as meias, depois os sapatos, o paletó, camisa e gravata. Molhado de suor, puxou as calças até os joelhos e ficou jogado de costas na areia enquanto eia dançava sem parar à sua volta.
— Você consegue vê-las? — ela apontou o mar.
— Hein — ele disse, sem acompanhar o gesto.
Ela repetiu, olhando fixo para onde as ondas quebravam, mas já não parecia uma pergunta:
— Você consegue vê-las.
— As ondas? — ele esticou o pescoço, apoiando- se no topo da cabeça para olhar o mar lá atrás, e ficou ainda mais tonto. Foi assim, oblíqua, que a viu aproximar-se das ondas, curvando-se para tocar na superfície das águas. Estranho, pensou, estranho como ele a via de longe, desse ângulo — as ondas cercavam-na sem molhar seus pés, circundavam os tcomozelos como guirlandas até explodirem em espuma no ar em tcomo do corpo, feito uma aura de gotas. Ela colheu essa espuma ainda mais brilhante nas palmas das mãos e estendeu-as abertas para ele. Parecia uma oferenda.
— Não, não as ondas. As ondas todo mundo vê. Essas moças todas, vestidas de espuma branca. São tantas, você não vê? Aproveite agora, as ondinas só aparecem no apogeu da lua cheia. Você não consegue mesmo vê-Ias?
— Eu não consigo — ele disse. Via apenas o balanço das ondas, para baixo, como se estivesse no convés de um navio, para cima, muitas vezes, para baixo, sem parar, para cima. Deixou a cabeça tombar para a frente: — Acho que vou vomitar.
Ela ajoelhou-se ao lado dele, as mãos de dedos abertos em tomo da sua cabeça tonta, sem tocá-la. Tão rápida, pensou, lá no meio das ondas e de repente aqui ao meu lado outra vez.
— Você não devia beber tanto — os dedos frescos dela passavam a um milímetro da testa suada. Nesse milímetro entre a pele dele e a dela estava o frescor, feito um sopro. — Desse jeito você nunca conseguirá vê-las.
Ela uniu os indicadores e os polegares em triângulo apontando o vértice para o centro exato da testa dele, naquele ponto justo, centro da cruz entre o horizontal das duas têmporas e o vertical dos pêios unidos das sobrancelhas no alto do nariz até o início dos cabelos.
Então uma coisa amarga contraiu-se no estômago dele, depois derramou-se morna sobre as calças, as pernas, a areia. Antes, antes de novo, pareceram atravessar o vestido dela sem sequer respingá-lo.
— O seu vestido — começou a dizer.
— Não tem importância — ela puxou o vestido para cima, despiu-o, rodou-o no ar ejogou-o nas águas. Olhou-a mais uma vez, e ela não usava mesmo nada por baixo, inteiramente nua, inteiramente branca, sem marca alguma no corpo liso, seios de adolescente.
— Você nunca toma sol? — perguntou.
— Eu sou filha da lua — a moça disse.
Ele não ouviu. Cabeça baixa, vomitava concentrado sobre os próprios pés. Depois deitou-se na areia e olhou para a lua cheia ao lado da estrela brilhante, Vênus talvez, ficou pensando enquanto ela desabotoava suas calças, puxava-a pelos pés melados depois amontoava rindo numa trouxa com as cuecas roxas, o paletó, sapatos, camisa, meias, e jogava tudo no mar. Ele também ficou inteiramente nu, mas só a pele branca em torno do sexo fosforescia à luz da lua, o resto era tão moreno de sol que quase não via a si mesmo assim, fundido ao escuro.
— Quem é você? — perguntou.
Ela ergueu-se num único impulso e caminhou novamente para o mar. Os anúncios luminosos da cidade longe refletiam-se nos seios, as ondas cavalgavam o ventre raso para explodirem primeiro no sexo liso de pêlos, depois nos bicos dos seios à medida que entrava mar adentro.
— Quem é você? — tornou a perguntar, tentando levantar-se.
— Venha — ela gritou do meio das ondas, as águas cobriam metade do corpo. — Venha logo, venha comigo para o reino das ondinas.
Ele tentou e tentou outra vez a tentar levantar-se enquanto via o mar arrastar suas roupas cada vez mais para longe. Preciso pegá-las, pensou, as chaves do carro, a carteira, e com grande esforço conseguiu parar em pé. Entrou na água, as ondas envolveram os tornozelos, lamberam as coxas. Curvou-se, molhou as pontas dos dedos, passou-as na altura do coração, como a mãe ensinara naquela remota primeira vez em que viu o mar. Quando a água chegou ao pescoço, mergulhou de repente para encontrá-la no fundo, as pupilas guardando pérolas negras, navios submersos, grutas de coral. Ao emergir, a cabeça dele estava lúcida como se tivesse bebido apenas daquela água salgada que cuspia em volta.
— Olha — ela brotou do meio das águas apontando o céu. Dezenas de estrelas cadentes cruzavam-se em todas as direções sobre suas cabeças.
Numa vertigem, ele baixou os olhos, e foi quando pela primeira vez deu-se conta que eram um homem e uma mulher inteiramente nus naquela praia deserta. Plena madrugada, quase verão. Avançou, os dois braços estendidos e a voz tosca de quem não sabe estar junto ao mar, percebia. Mesmo assim, in sistiu:
— Como é mesmo o seu nome, gatinha?
— Ondina — ela disse. Ou qualquer coisa assim, ele jamais teria certeza. Suspirou fundo, parecia triste, e acrescentou antes de desaparecer: — Que pena, você não está preparado.
Os ouvidos dele estavam cheios d’água, as ondas explodiam barulhentas. Tomou a mergulhar procurando, mas não havia nada nas águas frias. Ao voltar à tona olhou para cima e já não havia também estrelas cadentes, nem sequer estrelas no baço céu de lua álgida. Só o cinza das águas, o visgo de formas vivas enleadas em suas pernas. Nada mais fosforescia. Saiu tremendo do mar, jogou-se de bruços na areia e outra vez olhou para o céu. A nuvem negra cobria a lua cheia. Na praia deserta ele estava nu e bêbado, o estômago voltou a contrair-se, alguém gritou ao longe, no lado das luzes da cidade, parecia seu nome, Betinha, lembrou, procurando as roupas, a carteira, as chaves, encontrou apenas um sapato de verniz preto todo enlameado e um cravo vermelho murcho. Foi-se dobrando sobre os joelhos lembrando daquela primeira vez, a mãe, o mar, tanto tempo, Vênus talvez, bem perto da lua cheia, tinha frio, o sapato numa das mãos, restos do cravo na outra, a vontade de vomitar que voltava. Que porre infernal, ele gemeu
arquejando sobre a areia opaca, nunca vão acreditar.
— Ondina — pediu para ninguém, sozinho na praia, nu no meio da noite. — Ondina, por favor, me ajuda.

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