CAIXINHA DE MÚSICA

0

À memória de Rachel Rosemberg

Como e estivesse com a cabeça inteira dentro d’água e alguém começasse a tocar realejo na beira do rio. Pequenas bolhas de som explodiam sem choque contra seus ouvidos, nota após nota, até formar-se também por dentro aquela melodia tão remota e lenta que parecia vir não mais da margem, mas do fundo. Onde haveria quem sabe pedras verdes de limo, peixes coloridos, conchas, estranhos vegetais entrelaçados. Movimentando cada membro ao som de cada nota, ela tentou mergulhar em direção à areia clara do fundo. Sabia a origem de cada gesto: brotava de um centro como que desperto pela nota musical e assim, musicado, o movimento irradiava-se através dos músculos, espalhando-se sem pressa na superfície da pele até atingir as pontas dos dedos que agora movia, abrindo e afastando leve a água para mergulhar. Mas em vez de afundar, peixe, de repente foi içada para cima, para fora, para uma penumbra cheia de contornos onde divisava vagamente qualquer coisa como as costas de um homem grande sentado.
À beira da cama, à tona, no escuro, ele girava lentamente a manivela da caixinha de música.
Ela não disse nada, observando-o sem pensamentos girar muitas vezes a manivela, às vezes acelerando, outras diminuindo, fazendo a meio-dia correr mais rápida, notas subitamente amontoadas, ou esgarçar-se feito nuvem soprada pelo vento. Fiapos coloridos varavam em todas as direções a penumbra cada vez mais nítida do quarto. Perdidos pelos cantos, brilhavam fracos antes de apagar tão lentos e leves que, se quisesse, ela poderia fechar os olhos para afundar novamente. Talvez sereias, liquens, corais, grutas de nácar. Com esforço, esfregou as pálpebras. E suavemente, só depois que ele tinha repetido e repetido a música da caixinha, como para não quebrar um encanto difícil, foi que ela apoiou o busto contra a guarda da cama e perguntou em voz baixa o que tinha acontecido.
Era um homem grande, um homem quieto e sem camisa sentado à beira da cama. Costas curvas, cabeça baixa. Nas mãos, uma caixa tão pequena que ela não conseguia ver. Parecia para sempre, pensou, aquele homem de repente desconhecido, parado como um quadro, um enorme manequim, uma estátua de sal ou gesso, tão brancas eram suas largas costas quase cintilando no escuro do quarto. Ele parou de tocar. Menos que pelo movimento do braço, ela soube disso através do silêncio aumentando entre duas notas. Vermelhos, os números do relógio digital brilhavam a seu lado, tão próximos que bastaria virar a cabeça para saber as horas. Não queria saber, não se moveu. Quase estendeu a mão para tocá-lo, mas conteve-se a tempo, recolhendo os dedos no ar. Não havia hora, repetiu para dentro sem entender, não havia tempo, não havia barulho, não havia gesto. Como se estivesse do lado de fora e espiasse pela janela do próprio quarto, viu um homem sentado à beira da cama e uma mulher deitada, cabeça ereta, tensa, imóvel, para sempre à espera de algo que não acontecia.
- Foi um pesadelo? - perguntou então, mas súbita demais, percebeu, a voz áspera, rouca de sono. E como para consertar estendeu mecanicamente a mão para a mesinha-de-cabeceira, apanhou o maço de cigarros.
- Quer fumar? - ofereceu, mas sabia que era como se dissesse qualquer coisa feito “não se dilacere sem necessidade, meu bem, é madrugada alta, fuma e relaxa, estou aqui, pode falar”, estabelecendo as regras de um jogo onde não haveria vencedor nem vencido, apenas um gentil fracasso final compactuado e compartilhado amável por ambas as partes. Absolutamente secretos no meio do quarto, no meio do edifício, no meio da cidade, no meio do país, no meio do continente, do hemisfério, do planeta. No centro da imensa noite do universo. Eternamente, ela arrepiou-se.
Ele continuava sem dizer nada. Quase com raiva, ela acendeu o cigarro com um dique seco do isqueiro de plástico que jogou, junto com o maço, ao lado dele. E sabia que ao tragar dizia ainda qualquer coisa como “está bem, se você não quer ajuda fique aí sozinho, meu bem, vou fumar o meu cigarrinho e esperar que ou você ou eu cansemos, e se você cansar primeiro, você fala, e eu cansar primeiro, durmo outra vez e amanhã acordamos e tomamos café como todas as manhãs, meu bem, e não se fala mais nisso, está o.k. assim?”. Apanhou o cinzeiro sobre o rádio e bateu com força a cinza. Agora, além dos números vermelhos, havia a ponta também vermelha do cigarro brilhando no escuro. Ainda que nada dissesse, era sempre como se dissesse alguma coisa. E parecia tão tarde que ruído algum de automóvel perfurava o silêncio. Por favor, quase pediu, por favor, recomece a tocar. Calada, começou a girar o cigarro no escuro até que a brasa viva no final do círculo vermelho tornasse a encontrar o início. Quando parou, percebeu: ele mudara de posição e olhava fixo para ela.
- A árvore - ele disse.
- Hein?
- Uma árvore, eu vi uma árvore.
-Você sonhou - ela se debruçou um pouco, como para alcançá-lo ou, de alguma forma, demonstrar com o corpo que estava atenta. Mas isso parecia não ter importância para ele. Falava sem vê-la, olhando através dela para qualquer coisa além da guarda da cama, da parede, do espaço vazio de um décimo segundo ou terceiro andar.
- Que importa? - Ele colocou a caixinha de música ao lado do maço de cigarros e do isqueiro. A manivela roçou o plástico soltando uma nota brusca que ficou ressoando no ar. - Que importa se sonhei, se vi, se foi hoje ou amanhã? Se nem sequer vi, só imaginei, que importa? Acordei pensando nessa árvore.
Falava devagar, sem irritação. Mas levantou a mão decidido quando ela avançou mais o corpo, como a interrompê-la antes mesmo que ela falasse. Ainda assim, ela perguntou, esmagando o cigarro:
- Que árvore era essa?
- Não era uma, eram duas. Espera, eu conto. Você quer ouvir?
Apressada, ela fez que sim com a cabeça. Sem ver direito o rosto dele, percebeu que sorria talvez irônico. Ou amargo, ou triste, ou apenas distante, compreendeu melhor, encolhendo-se contra a guarda da cama. E aquilo de repente pareceu talvez respeito, submissão ou interesse, porque ele começou a falar:
- No começo, achei que era uma árvore só. Eu a vi de longe, eu vinha caminhando e lá estava ela, enorme, toda florida, assim com pencas de flores de todas as cores, mas acho que principalmente roxas e amarelas, despencando até o chão. Não parecia de verdade, parecia uma coisa desenhada, assim meio de quadro, de ilustração de história infantil, filme de Walt Disney. Sabe Branca de Neve? - Ela sorriu também, cruzando os braços sobre os seios tranqüilizada. Ele não percebeu. - Uma árvore assim, de fantasia. A mais bonita que eu já tinha visto em toda a minha vida. Aí eu parei e fiquei olhando. Tinha uma coisa forte ali me chamando e eu não conseguia ir em frente, eu devo ter hesitado muito tempo antes de chegar cada vez mais perto, e de repente eu estava dentro dela. Não, espera, não foi assim. Entre os ramos cobertos de flores havia uma espécie de vão, uma fresta, uma porta, e eu fui entrando por ela até ficar dentro daquela coisa colorida. Era escuro lá dentro. Era cheio de galhos trançados e torturados, e muito escuro, e muito úmido, parecia assim ter feito uma grande dor ali cravada naquele centro cheio de folhas apodrecidas e flores murchas no chão. Pelo vão, pela fresta, pela porta eu conseguia ver o sol lá fora. Mas aquele lugar era longe do sol. Era uma coisa, uma coisa assim desesperada e medonha, você me entende? Então pensei em sair lá de dentro imediatamente, sem olhar para trás, mas ao mesmo tempo que queria ir embora, queria também ficar para sempre lá, e se me descuidasse, se alguma coisa mínima em mim perdesse o controle eu me encolheria ali naquele chão frio, olhando os galhos tão emaranhados que não passava nunca um fio daquela luz do sol lá de fora. Eu fui embora, eu não queria olhar para trás, mas sem querer olhei e lá estava ela de novo como eu a tinha visto da primeira vez.
Uma árvore encantada, dessas que você pode fazer pedidos e talvez entrar num estado especial embaixo dela e ver, como se chamam, como é mesmo? os devas, isso, os devas, as ninfas, os faunos. Vista de fora, de onde eu estava, era uma árvore assim, com um lindo deva que eu quase via, roxo e amarelo como as flores, meio que dançando, quem sabe tocando flauta em volta dela. Então lembrei do escuro e achei que entendia e sem querer formulei com dificuldade uma coisa mais ou menos assim: é daquele emaranhado cheio de dor e angústia fria e solidão escura que ela arranca essa beleza que joga para fora. - Ele parecia muito cansado quando parou de falar e perguntou: - Você entende?
- Foi lá? - ela perguntou bruta. Ele não respondeu. Ela estendeu a mão para o maço de cigarros, acendeu outro que tragou quase com fúria. Passou-o para a mão esquerda e estendeu a direita para ele, cravando as unhas em seu braço. - Foi lá? - repetiu. - Eu preciso saber. Me diga, foi lá, naquele lugar? Meu Deus, você ainda não esqueceu aquele maldito lugar?
Como se não tivesse escutado, ele tocou de manso as unhas cravadas em seu braço com a mão também grande e quieta.
- Você entende?
Ela relaxou a pressão.
- Entendo, claro que entendo. - Recolheu a mão, baixou a voz. - É uma história bonita. E tão... tão simbólica, não é? - Suspirou, exausta. - É assim que você se sente? Eu entendo, claro que eu entendo muito bem, melhor do que você possa imaginar. Muito melhor, meu bem. - Passou devagar os dedos sobre os pêlos crespos do peito dele. Se houvesse mais luz, agora poderia ver os pêlos se adensando grisalhos em direção ao umbigo, e quem sabe até mesmo sentir então o que sentia sempre: aquela espécie de piedade comovida, semelhante a algo que tinham dito, certa vez, chamar-se carinho, ternura, amor ou qualquer outra coisa dessas. Mas no escuro, apenas sentindo os pêlos macios e frágeis cedendo sob a pressão das pontas de seus dedos, assim, agora: não sentia nada. Uma secura como a do cigarro que tragou novamente, queimando com raiva a garganta. Tossiu.
- Mas não acabou - ele disse.
- O quê?
- Não acabou, a história ainda não acabou.
Ela percebeu que ele ria. Mas já não havia tristeza nem ironia no riso. Qualquer coisa mais densa, localizou. E retirou a mão do peito dele ao descobrir. Era um riso silencioso e mau, um riso de canto de boca, dentes cerrados que não se mostram. Ele estava próximo agora, inteiramente ali, entre o corpo dela e a porta do quarto dando para corredores e salas subitamente tão desertos que ninguém os ouviria se gritassem. Mas não gritariam, ela acalmou-se, que era tanto tempo, tanta coisa vivida juntos, não, não gritariam. Ele continuou a falar:
- Voltei lá no dia seguinte. Eu estava frio, eu não sentia coisa alguma, eu não tinha mais aquele horror de estar dentro da árvore nem aquele encantamento de estar fora dela, entende? Então fiquei andando em volta dela e olhando bem, até perceber que eram duas árvores. Sabe uma dessas árvores que dá na beira dos rios? Essa caída, de galhos até o chão, uma árvore grande que parece sempre cansada e triste.
- Um chorão - ela falou. - Um salgueiro. - E soltou os ombros, quase leve.
- Isso. Um salgueiro, um chorão. A outra, aquela cheia de flores, era uma primavera. Eu lembrei então de uns versos que você gostava de dizer, faz muito tempo. Como eram mesmo aqueles versos que falavam em primaveras, em morrer, em nascer de novo? Como eram, você lembra? - ele perguntou subitamente ansioso e meio infantil, puxando-a pelo pé como fazia às vezes nas manhãs de domingo, quando ela demorava a acordar e ele insistia cantando cantigas inventadas num ritmo de caixinha de música: Venha ver o sol oh meu amor! vista sua saia, vamos para a praia! o dia está tão lindo oh meu amor! hoje é domingo lindo de sol.
Uma onda quente feito uma alegria subiu desde o pé onde ele tocava até o rosto dela, fazendo os seios arfarem um pouco ao dizer:
- Cecília Meireles, era Cecília Meireles, era um poema assim que eu dizia: “Levai-me por onde quiserdes! aprendi com as primaveras a deixar-me cortar! e a voltar sempre inteira”.
Ele apagou o cigarro. Depois bateu palmas como uma criança:
- Que bonito, que bonito. Como é mesmo? - E recitaram juntos, como uma professora séria e um pouco velha e paciente e vagamente apaixonada por um aluno rebelde: “Levai-me por onde quiserdes! aprendi com as primaveras a deixar-me cortar! e a voltar sempre inteira”.
De repente ele deu um salto sobre a cama e ficou em cima dela, rindo enquanto enfiava a língua morna nas suas orelhas. Sobre a camisola, ela podia sentir os músculos duros das coxas dele apertadas contra as suas.
- Era um caso de amor - ele disse baixinho no ouvido dela. - O salgueiro e a primavera, era um lindo caso de amor entre duas árvores.
Ela trançou as mãos nas costas dele, aquelas costas largas de homem grande, aquele cheiro bom de bicho limpo que ela conhecia fundo, há tanto tempo. E enquanto ele roçava lento uma boca móvel e molhada pelo seu pescoço, ela abriu suave as pernas, rodando a bacia como numa dança oriental, até sentir o volume do sexo dele enrijecendo aos poucos sobre seu ventre. Desceu a mão pela cintura dele, para enfiá-la sob o tecido fino do pijama, acariciando a bunda que se movia sobre ela. E lambeu aquelas orelhas grandes de homem tão profundamente e há tanto tempo seu, intensificando os movimentos até o membro dele ficar tão rígido que escapou de dentro do pijama para roçar, quente, a barriga dela.
- Vem - pediu. - Meu menino louco.
Mas ele levantou-se tão brusco que a súbita ausência de peso fez com que ela sentisse uma espécie de tontura.
- Não - ele disse. - E recuou outra vez até a ponta da cama. - A história ainda não terminou.
- Ai, Deus, a maldita árvore de novo?
- A maldita árvore - ele repetiu lentamente.
- Mas ainda? - ela tentou rir, mas ele estava distante outra vez. De repente alguma coisa tinha se transformado em outra, e percebendo a transformação só depois de falar como se nada tivesse se transformado, ela sabia apenas se comportar de acordo com um momento antigo, não com este novo, desconhecido. - Então conta - pediu, sabendo de maneira obscura que não era assim, que não era mais assim, que de alguma forma nunca mais seria assim. Cruzou os braços como quem fala com uma criança. - Mas conta rápido.
- Bem rápido, não se preocupe. No outro dia, o terceiro dia, eu voltei lá. Foi a última vez que voltei. Não foi preciso voltar mais. E dessa última vez, eu vi tudo. Eu descobri.
A claridade cinza do dia nascendo varava as frestas da persiana.
- Então? - ela perguntou. - E aí?
O homem pegou a caixinha de música e ficou com ela entre as mãos, como se fosse tocar. Com a luz mortiça da manhã iluminando o rosto dele, ela agora podia ver os olhos muito abertos, fixos em algo que ela não via, a barba por fazer, a mão parada no ar e o grisalho dos pêlos no peito. E continuava sem sentir nada, a não ser um calor fugindo entre as coxas.
Ele não dizia nada.
- O que foi que você descobriu?
Ele sorriu sem mover músculo algum do rosto. Apenas os cantos da boca ergueram-se rápidos, como se alguém apertasse um botão ou puxasse um fio oculto. Girou nas mãos a caixinha.
- Descobri que não era um caso de amor, O salgueiro estava seco, morto. A primavera tinha assassinado ele. Não era um caso de amor. Ela estrangulou, vampirizou, assassinou ele. Aquela escuridão de dentro era a fraqueza dele, o fracasso dele, a morte dele. Você está me entendendo? Eu vou falar bem devagar para que você compreenda: aquela loucura de flores e cores do lado de fora era a vitória dela. A vitória da vaidade dela às custas da vida dele. Uma vitória louca, você está ouvindo?
Como se tivesse frio, ela encolheu-se violentamente. Sem querer, olhou para o lado e viu o relógio. Eram cinco e quinze da manhã. Ele repetiu:
- Uma vitória louca, uma vitória doente. Não era amor. Aquilo era solidão e loucura, podridão e morte. Não era um caso de amor. Amor não tem nada a ver com isso. Ela era uma parasita. Ela o matou porque era uma parasita. Porque não conseguia viver sozinha. Ela o sugou como um vampiro, até a última gota, para que pudesse exibir ao mundo aquelas flores roxas e amarelas. Aquelas flores imundas. Aquelas flores nojentas. Amor não mata. Não destrói, não é assim. Aquilo era outra coisa. Aquilo é ódio.
Muito calma e um tanto casual, acendendo outro cigarro, afastando uma mecha de cabelos da testa um pouco fria, um pouco suada, mas nada de grave, a mulher ergueu levemente a sobrancelha esquerda, num gesto muito seu, um gesto cotidiano, habitual e sem novidades, que usava muito ao fazer compras, indagando preços, ao estender uma xícara de chá, ao dar ordens à empregada, ao girar o botão ligando o televisor, e perguntou absolutamente tranqüila, absolutamente controlada, absolutamente segura de si:
- Você está querendo dizer que acha que eu o destruí?
Depositando com extremo cuidado a caixinha de música, ele disse alguma coisa em voz tão baixa que ela não chegou a entender.
- Como?
Não ouviu a resposta. As duas mãos grandes e fortes do homem fecharam-se rápidas e precisas em volta da garganta dela. A mulher estendeu a perna como se chutasse algo no ar, derrubando a caixinha no chão. O dia estava quase claro quando uma nota de corda arrebentada ficou ressoando aguda no ar. Entre o som e a luz, ela ainda conseguiu ver o sorriso iluminado do homem, e se pudesse falar diria então que era exatamente: como se estivesse com a cabeça inteira dentro d’água e alguém começasse a tocar realejo na beira do rio.

Ler mais »

0 comentários: