A PEQUENA RAIZ

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O mais interessante em tia Violeta é que ela não tinha um Canteiro de violetas. Em compensação, tinha um de moranguinhos. Tinha também broches representando morangos, morangos empalhados, bibelôs em forma de morangos, morangos bordados na barra de toalhas e colchas e vestidos, cabelos cor de morango. Seu doce preferido, compota de morango. Daí seu apelido Violeta Moranguinho, que a piazada da vizinha gritava em voz de falsete, com aquela maldade funda de que só a infância é capaz. Violeta sem violetas, também a chamava o pai, mas então ela gostava. Ria, e por um instante ficava tão feliz que Maurício tinha ainda mais pena dela. Mesmo assim, esse era um dos mistérios menos misteriosos da casa. Mas sempre que Maurício queria pensar sobre eles, era daí que partia. Talvez porque estivesse mais próximo de sua compreensão, mesmo sendo inteiramente incompreensível.
Mistério maior era o álbum que vovó abria devagar, certas noites, mostrando folhas e fotografias amareladas pelo tempo, roídas pelas traças. Brotavam dele homens de caras bigodudas, mulheres de cintura-parece-que-já-vai-quebrar, meninos de calças pelo meio das canelas, meninas com enormes laços de fita no cabelo. E todos ficavam respeitosos quando, depois do jantar, a avó sentava na cadeira de balanço e começava a folhear o passado. Tia Violeta conseguia chorar — e isso era também um mistério. A mãe ficava engraçada, queria consolar tia Violeta, mas estava na cara que também morria de vontade de chorar. Mesmo assim, resistia — e isso era outro mistério. Até tio Pedro, por trás da bigodeira, ficava diferente, e tia Mariazinha apertava o braço dele, repetindo a cada instante: “Que saudade, Pedro, que saudade!” De vez em quando, a mãe deixava de lado tia Violeta e, voltando-se para o pai, dizia as mesmas coisas que tia Mariazinha. E vovó sorria, fazendo Maurício pensar que ela era a avó mais bonita que ele conhecia, com aqueles óculos de tartaruga, os cabelos cor de cinza, as mãos iguaizinhas a folhas de papel de seda amassadas.
Só quem não mudava era Edu. Ou melhor, mudava sim, embora fosse uma mudança diferente da dos outros. Parecia que ficava com raiva, e a escondia por trás de um sorriso de superioridade. Maurício ficava confuso. Respeitava muito Edu. Talvez porque só o visse nas férias, mas de qualquer jeito Edu era o sujeito mais sabido que ele conhecia. Quando fosse grande, queria ser como ele. Queria falar aquelas mesmas coisas difíceis de entender. Queria rir igual àquele riso-de-canto-de-boca quando vovó abria o álbum. Talvez assim conseguisse desvendar o mistério que havia naquele ritual. Um dia, lembrava bem, enquanto vovó falava, Edu interrompeu-a para chamá-lo: — Maurício, vem cá. Eu quero conversar contigo.
Aproximara-se devagar, um sestro de felicidade enredando os movimentos. Gostava da maneira como ele dizia seu nome, sem acrescentar os inhos melosos de tia Violeta e tia Mariazinha. Mas enquanto caminhava, sentia que a voz da avó ia adormecendo no fundo da garganta, que tia
Violeta interrompia no meio um soluço e tio Pedro erguia uma sobrancelha. Tudo mudava, um silêncio de espera se estruturando lento. “Vai acontecer alguma coisa”, pensou. E achou-se um pouco importante por fazer parte daquilo que ia acontecer. Falou:
— Que?
Edu curvou-se para ele. Como é bonito, pensou, como é bonito. Os olhos azuis olhavam nos olhos dele, a mão de dedos longos apertava seu braço. Pensou com tanta força que quase não ouviu o que ele dizia:
— Maurício, sabes o que é uma burguesia decadente?
— Há?
— Burguesia decadente, sabes o que é? Um negócio completamente podre, ridículo, sem a menor razão de ser. Sabes o que é?
Maurício entortou de leve a cabeça. Podre, sabia o que era. Uma vez vira uma galinha assim, morta no fundo do quintal. Ridículo era uma coisa parecida com uma velha muito velha que pintava os olhos e os beiços para parecer mais moça, como o pai dissera na tarde anterior ao ver dona Picucha na janela. Mas havia outras coisas podres também, e outras tantas ridículas. E tantas mais que não sabia qual delas escolher para mostrar a Edu. Mas o primo tinha aquele jeito de quem já sabia a resposta. Então disse:
— Não. Não sei, não. O que é?
Edu jogou a cabeça para trás. Fez um gesto largo, abrangendo toda a sala e todas as pessoas que estavam dentro dela:
— É isto — mostrou. — Estas paredes, aquela porta, o relógio ali no canto. Esta cadeira onde estou sentado, essa roupa de veludo que tu estás usando, esse lustre de cristal. Principalmente aquele álbum que vovó tem na mão. — Pelo amor de Deus, Edu! — gritou tia Mariazinha, a voz desafinada pela indignação.
Tio Pedro veio vindo. Maurício encolheu-se no fundo de sua roupa de veludo. Era igual ao gigante das histórias que Luciana contava. E Edu parecia um príncipe. Um príncipe de espada na mão, cabelos ao vento, reflexos dourados dourando o azul dos olhos.
— Edu, é isso que tu aprendes com teus estudos na capital? É isso, me diz, é isso?
Os bigodes de tio Pedro tremiam. Vovó sorria vagamente, perdida atrás dos aros de tartaruga dos óculos. As mãos como duas rosas murchas segurando as folhas do álbum. Tia Violeta tinha a boca aberta, pronta para reiniciar seu soluço do ponto em que o interrompera. E a mãe o puxava pelo ombro, para perto de si, de um jeito que machucava um pouco.
— Responda, seu grandessíssimo filho de uma pu...
— Pedro! — O grito de tia Mariazinha cortou o palavrão em duas fatias que não chegaram a tomar forma.
— Responde: é isso que tu aprendes?
— É — Edu respondeu. — É isso que eu aprendo.
Tio Pedro levantou o punho, aproximou-o devagar do rosto imóvel de Edu. Por um momento Maurício pensou que ia esmurrá-lo, e desejou que o lustre de cristal despencasse sobre sua cabeça.
— Seu mal-agradecido! Filho de uma puta!
— Desta vez, tia Mariazinha não teve tempo de interrompê-lo. Maurício olhou para a cara dela, porque, afinal, Edu era seu filho. Mas estava impassível. Ninguém se mexia. Pareciam todos esperar que Edu dissesse ou fizesse alguma coisa, enquanto tio Pedro insistia:
— Peça já desculpas à sua avó e a seus tios, seu cachorro.
O primo curvou-se num simulacro de saudação. Como se tirasse um chapéu de penas, e as penas arrastassem no chão quando falou em voz de falsete, o rosto trêmulo, o azul dos olhos faiscando:
— O humilde cachorro Eduardo Mota de Araújo Lima pede desculpas ao nobilíssimo clã reunido em mais uma noitada de agradável sarau.
Olhou um por um e saiu da sala.
Tio Pedro sentou na cadeira de onde o filho levantara, escondeu a cabeça nas mãos. Imediatamente a raiva abandonou Maurício. Invadiu-o uma grande pena daquele homem tão grande, que agora parecia menor que ele mesmo.
— O Pedro e o Edu andam muito nervosos — tia Mariazinha tentou explicar.
Deve ser o tempo — ajudou tia Violeta. — Eu também ando um pouco assim. Imagine que ontem mesmo...
Mais o pai fez um gesto com a mão e ela se calou. Na porta apareceu de relance a cara assustada de Luciana. O relógio bateu dez pancadas. Tim-dom, tim-dom. Da rua chegou a voz de um bêbado cantando um tango. Mamãe suspirou, apertou com muita força seu ombro. Só vovó continuava a sorrir aquele sorriso empoeirado e sem tempo por trás dos óculos de tartaruga. O quarto de Edu. Paredes cheias de quadros, estantes desabando de livros. Um cinzeiro sempre cheio de pontas de cigarros que Luciana recolhia e jogava no lixo todo dia. O toca-discos com aqueles grandes círculos negros, de onde nascia uma música sem palavras, meio chata, arrastada, dava um bruto sono na gente. A lâmpada de cabeceira inclinada para o lado da cama. Tudo tão diferente do resto da casa, era como entrar num mundo novo, ali. Maurício tinha a mesma sensação de quando saia do pátio quase sem árvores para afundar no taquaral cheio de sombras.
Passava dias querendo entrar no quarto do primo, sem se atrever. Edu saía antes de ele acordar e, quando chegava a hora de dormir, ainda não tinha voltado. Ou então trancava-se e ficava ouvindo aquela música que ia amolecendo a gente por dentro. Maurício não sabia se era sempre a mesma, pareciam todas iguais, com aqueles pianos lentos e violinos fininhos. Agora abria a porta devagarinho, atento aos ruídos que na hora da sesta sempre pareciam maiores do que realmente eram.
— Edu? — chamou baixinho. — Edu, posso entrar?
O primo estava sentado à mesa, escrevendo. Voltou para ele o rosto coberto por uma barba castanha. Sorriu:
— Claro que pode, Maurício. Qual é o galho: seco ou verdolengo?
Maurício riu. Tão fácil conversar com Edu. Mesmo quando não entendia o que ele estava dizendo, mesmo quando tio Pedro gritava e tia Mariazinha chorava, mesmo quando todos ficavam falando mal dele depois que saía — mesmo assim, gostava de Edu e de tudo que ele dizia.
— Verdolengo — respondeu, sem saber exatamente por quê.
— Ih, são os piores. Mas vamos ver o que se pode fazer. Tome assento, seu moço.
Ele obedeceu. Uma coisa boa, um novelo de paz se desenrolando por dentro. Encolheu-se numa ponta de cama, escondeu debaixo dela os pés descalços, embarrados pela chuva do dia anterior. Deslizou os olhos pelas paredes. Os quadros, três. Uma cara muito triste, meio cinzenta, de olhos enormes e uma margarida no meio da testa (ele pensou que, se em vez de margarida houvesse um moranguinho, a cara seria igual à de tia Violeta); um enorme campo amarelo coberto por um céu escuro; e, no terceiro quadro, uma figura que ele não entendia e o assustava um pouco. Era como se o pintor tivesse colocado muitas tintas sobre a tela, depois passado as mãos por cima. As cores se misturavam, entrando umas por dentro das outras, loucas, esquisitas. No meio, aquela espécie de olho negro, meio oculto por trás de pálpebras avermelhadas pela febre. A pupila desvairada, em forma de ponto de interrogação, feito um furo no meio do olho que olhava para ele com raiva. Quase sentiu medo, e pensou que Edu devia ser muito corajoso para dormir com aquele mostrengo do lado. Isso aumentou ainda mais a admiração que tinha pelo primo. Levantou os olhos para Edu. Deparou com o olhar azul e aquele sorriso-de-canto-de-boca.
— Gostas dos quadros?
Mauricio sacudiu a cabeça.
— Gosto, sim.
— O que é que eles te parecem?
Entortou a cabeça, indeciso. Pareciam muitas coisas. Edu apontou para o primeiro:
— Aquele?
— Parece tia Violeta, né?
Edu sorriu. Apontou o segundo:
— E esse?
— Parece quando a gente acorda de manhã e não tem ninguém de pé ainda. Parece também quando vai ficando de noitinha, na fazenda. Parece quando um bêbado passa cantando de madrugada, e quando a gente ganha um presente no dia de Natal.
— E esse outro?
— Esse me dá medo. Me lembro de tio Pedro, quando briga contigo.
Os olhos de Edu entristeciam.
— Que mais? — perguntou.
— Não sei bem. Quando estou com muita raiva de uma pessoa, também. O primo acendeu um cigarro. Chupava a fumaça, depois soltava-a devagarinho pelo nariz. Saía um fio muito fino, depois ia subindo, subindo, e a cabeça de Maurício ia junto, sem poder parar, vontade de prender aquela fumacinha, guardar dentro de um cofre, para que só ele pudesse olhar. — Se eu te mandasse escolher um quadro, qual é que tu escolherias?
— Dado? Pra botar no meu quarto? Pra mim mesmo? Ou só o que eu gosto mais?
— Dado. Pra botar no teu quarto.
Apontou para o campo amarelo:
— Aquele.
— Por que, Maurício?
— Porque me dá vontade de ser bom, de ser como eu sou de manhã, quando não tenho raiva de ninguém. Acho que se eu olhasse um pouquinho para ele todos os dias, acabava ficando bom.
— Tu não és bom?
Baixou a cabeça, corado. Roeu uma unha, confessou:
— Não. Quer dizer, de manhã eu sou, mas... — hesitou um pouco e acrescentou: — Ontem eu matei um passarinho.
Sentiu que Edu o olhava de maneira estranha, sem sorrir nem recriminá-lo. Apenas olhava, com uma tristeza colada no fundo do azul dos olhos, brotando dos dedos compridos que avançavam até seu rosto, numa leve carícia.
— Achas então que é muito importante ser bom?
—Acho.
— E conheces alguma pessoa boa?
— Conheço — respondeu sem pensar.
—Quem? Vários rostos se misturaram em sua cabeça, em todos encontrava um defeito. Luciana contava histórias, mas às vezes ficava brava, dava beliscões na hora de dormir. A mãe, a mesma coisa. Na avó, não gostava daquele cheiro de coisa guardada há muito tempo dentro de um armário — e parecia-lhe que quem cheirava assim não podia ser uma boa pessoa. Tio Pedro... Encarou oprimo e disse:
— Tu.
Desta vez, sim, Eduardo sorriu um sorriso completo, mostrando os dentes muito brancos e parelhos. Mas foi breve. Em seguida, disse lento:
— Um dia tu vais compreender que não existe nenhuma pessoa completamente má, nenhuma pessoa completamente boa. Tu vais ver que todos nós somos apenas humanos. E sofrerás muito quando resolveres dizer só aquilo que pensas e fazer só aquilo que gostas. Aí, sim, todos te virarão as costas e te acharão mau por não quereres entrar na ciranda deles, compreendes? Maurício mordeu de leve os lábios, indeciso na resposta que deveria dar. Eduardo sacudiu a cabeça, enquanto seus dedos voltavam a acariciar-lhe o rosto.
— Não. Não compreendes, não. Mas não vai demorar muito para isso. Um dia...
Interrompeu-se, ficou olhando para o retângulo iluminado que o sol projetava sobre a mesa. Um silêncio caiu entre os dois. Maurício sentiu que ele escapava. Queria fazer uma pergunta, mas parecia um pouco falta de respeito ser o primeiro a quebrar o silêncio.
— Estás querendo perguntar alguma coisa — disse Edu. — O que é?
— Eu... eu não sei dizer bem o que é.
Tinha vergonha. Escondeu os pés por baixo da cama. A mancha de sol descia aos poucos da mesa, começando a espalhar-se também pela cama. A cara de Eduardo parecia também uma mancha de sol, pensou. As outras todas eram tristes, enfarruscadas. Só a dele era clara. Seria por causa dos olhos azuis? perguntou-se, e no mesmo instante ficou triste. Se fosse assim,
ele mesmo — Maurício — não teria nunca uma cara de mancha de sol, com seus olhos escuros. Endireitou o corpo e perguntou:
— Aquilo que tu falou outra noite, sabe? Aquilo de ser podre.
— Sei. Que que tem?
— Tem que tu parece que quis dizer que todo mundo era assim. Mas eu não sou, não é, Edu? Eu não quero ser...
O primo tornou a sacudir a cabeça, tão devagarinho que parecia estar muito cansado.
— Não é, não. Ainda não. Por enquanto, pelo menos, tu és o único que tem possibilidades.
— O que é possibilidade?
— É... assim uma coisa que pode ou que não pode ser. Mas é quase certo que pode.
— E o que é que eu posso fazer para não ser como os outros?
— Não querer ser — disse Eduardo. — Não querer nunca ser. Não deixar que pensem por ti. Que te ponham rédeas como se fosses um cavalo.
Levantou-se e começou a dar grandes passadas pelo quarto, mãos nos bolsos, um cigarro apagado esquecido no canto dos lábios. De repente ajoelhou-se ao lado dele, segurou-o pelo ombro:
— Não deixar principalmente que entrem dentro de ti e queiram arrancar isso que está aqui, entendeu? — levou uma das mãos até o coração de Maurício. Apertou com força: — Agora vai brincar. Eu preciso escrever uma carta.
Maurício começou a andar em direção à porta. Um gesto do primo o deteve. — Toque aqui — disse ele estendendo a mão.
Timidamente, Maurício encostou sua mão na dele. Os dedos de Eduardo fecharam-se com força sobre os seus.
Foi-se desprendendo devagar, as pernas meio trêmulas, a cabeça cheia de idéias que chiavam e pulavam como o doce de abóbora que Luciana fazia no tacho preto. Fechou a porta, encostou o corpo no trinco frio. Passou a ponta do dedo na palma da mão que ainda retinha o calor. Sorriu. E sentiu de repente que alguma coisa começava a nascer dentro dele.

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