A QUEDA

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—Vamos ter que fazer uma forcinha e subir pela escada mesmo — disse o homem passando por ele, apenas a silhueta destacada na escuridão. Maurício retardou o passo, mas o homem parou para esperá-lo. —É — disse.
O homem continuou:
— Pouca vergonha, faltar luz bem na hora que a gente está voltando do trabalho. — Arquejava, as pernas curtas vencendo com dificuldade os degraus. — O sujeito dá duro o dia inteiro, quase morre nesse transito infernal... — interrompeu-se, lutando contra a falta de ar. Venceu-a e completou de uma só vez, medo que o fôlego tornasse a faltar — ...edepoisaindatemquesubirabostadestasescadas... a pé... — Tirou o lenço do
bolso e passou pela calva, onde os reflexos do dia moribundo vinham brincar, como num espelho. E repetiu: — Pouca vergonha.
Maurício observou a calva multicor. Ainda bem que a luz estava apagada: no escuro não podia ver a cara do homem nem era preciso afetar uma expressão interessada. Bom também que ele morasse no terceiro andar, e falasse tanto que não era preciso sequer responder. Apertou a pasta de livros contra o peito. Caminhara sem destino a tarde toda. Não conseguira concentrar-se na leitura, na biblioteca da faculdade. O silêncio excessivo, quebrado apenas por sussurros e pelo rangido da portinhola de ferro, a sensação inquietante das dezenas de estantes cheias de livros ainda não lidos — tudo isso dava-lhe dor de cabeça. Pior ainda seria voltar para casa, a presença dos parentes escorregando pelas frestas da porta fechada de seu quarto, como um mau cheiro. Caminhara pelas ruas horas, e a vaga dormência nas pernas tinha um gosto amargo. Gosto de fuga.
— E a mamãe, como vai? — A voz do homem tornava-se subitamente amável, melada, nauseante. — Está nas últimas, não é?
Aquele nas ú1timas fez Maurício sorrir. Era assim que o pai se referia às vacas da fazenda, quando estavam para dar cria.
— É. Está nas últimas.
— Pra este mês, não é?
— É, sim. Estamos esperando quase todos os dias.
— E o papai já veio da fazenda?
— Já. Semana passada.
— Ah — o homem parou, remexendo os bolsos à procura da chave. Não a encontrou, e começou a tocar a campainha. Depois lembrou-se de que não havia luz, sorriu desajeitado, começando a bater com o punho fechado. Enquanto esperava, tentou uma brincadeira: — Quer dizer que mais dia menos dia teremos um novo morador no edifício, não é? — Sorriu satisfeito consigo mesmo, depois completou: — Ou moradora, claro.
— É. Ou moradora.
“Se for mulher”, dissera a mãe, “se for mulher vai se chamar Virgínia”. Mãos sobre o ventre, olhos baixos. E verdes, cor de campo, Virgínia teria
olhos verdes. De repente a pasta cheia de livros pareceu muito fria contra o peito. Afastou-a do corpo, com um arrepio.
— Pretende derrubar a porta, é?
Um cheiro de comida quente nasceu de dentro do apartamento. A cara da mulher no vão da porta era mal-humorada e tristonha. O homem entrou rapidamente, cabeça baixa com um “até logo” inaudível. A porta fechou-se sobre ele. A fresta da luz de uma vela no chão do corredor desapareceu.
Maurício recomeçou a subir as escadas. Através da poeira dos vidros via o céu de cores transparentes, mais vagas ainda pelo pó e pelo vagar de seus passos, como se as visse através de lágrimas. Passou os dedos no corrimão da escada, de pedra fria. A frieza entrava pela ponta dos dedos, espalhava-se pelo corpo todo. Apertou a pasta contra a coxa, sentindo o relevo dos livros e cadernos. Parecia um corpo estranho, uma massa recoberta de plástico. Vagarosos, seus pés venciam os degraus. Procurara Marlene à tarde, e a porta fechada, o tilintar sem resposta da campainha lá dentro, deixaram nele uma sensação de ausência. Uma ausência interna, como se dentro de si mesmo não encontrasse resposta. Pensou vagamente que sempre, de muitas formas, encontraria portas fechadas e campainhas soando inutilmente. Então, do fundo da consciência, brotou uma frase: “Não tenha o tempo todo tanta pena de si mesmo.” De que livro, de que filme, de que boca?
Enquanto subia no escuro, os ruídos da rua iam ficando mais diluídos. O rumor dos bondes nos trilhos parecia coberto por uma camada de algodão. E os novos ruídos, dentro dos apartamentos fechados, eram frágeis como as cores do céu. Espiou de novo pela janela. O roxo dava lugar a um azul profundo, um pouco antes do negro da noite. Teve vontade de ficar parado ali, no vão da janela, sem pensar em nada, apenas formas e cores passando esquivas pelas pálpebras abaixadas, como quando ouvia música. Venceu com raiva os degraus finais. Empurrou a porta. Dentro, a escuridão era a mesma do corredor. E o silêncio. “Mãe”, teve vontade de chamar. Mas limitou-se a pisar devagar, como se houvesse por perto uma criança dormindo. Entrou na sala e viu Maria Lúcia debruçada na mesa, o
rosto voltado para a rua. “Carliiiiinhos!”, gritou uma mulher lá embaixo, e o grito vinha misturado a sons de pratos e talheres. Maria Lúcia parecia distante e só, prestes a dissolver-se no escuro. Maurício suspirou. Foi então que ela se voltou. Encairou-o durante muito tempo, sem dizer nada, como se custasse a reconhecê-lo.
— Cadê o resto do pessoal? — ele perguntou. Mas ela continuava calada. Aproximou-se mais, e viu que ela tremia. Foi nesse momento que teve um pressentimento estranho. Tornou a perguntar, a voz rouca e oca: — Cadê o resto do pessoal?
Maria Lúcia moveu os lábios, mas nenhum som saiu. Ele insistiu, mas quase desejava que ela não respondesse. Então ela falou:
— A tia.., quer dizer, a sua mãe, compreende?
— Que é que tem a minha mãe?
— Caiu, compreende? Ela estava lá embaixo quando apagou a luz, ficou nervosa, esperou, a luz não vinha. Ela ficou muito nervosa, entende? E subiu pelas escadas mesmo. Ela ficou nervosa, escorregou, caiu, entende? — Mas ela se machucou, me diz, Maria Lúcia, ela se machucou? E a criança? — Não... Quero dizer, não sei. Eles saíram todos, mamãe, o tio, Edu. Foram levar a tia no hospital. Pediram que eu esperasse você para nós irmos até lá.
Ele começou a andar pela sala. “Carliiiiiiinhos”, a mulher gritava lá embaixo, ruído de pratos e talheres e copos, e até da toalha sendo posta na mesa, um ruído macio, algodoado como o barulho do bonde, como pés de ratos, a noite, na fazenda, como folhas caindo dos plátanos na praça, ruído morno, flácido, o medo crescendo dentro dele. Medo sem forma, medo com medo de ser medo, mas grudado nos seus passos, indo e vindo pelo meio da sala. Se for mulher, vai se chamar Virgínia. Talvez nem fosse, nem Virgínia nem ninguém. Pouca vergonha, faltar luz a essa hora, repetiu, sem notar o olhar assustado da prima. Sentou no sofá, sem saber se o tremor se espalhando pelo corpo era seu ou dela. Precisava fazer alguma coisa.
— Sabes onde é o hospital? — perguntou, mas a vontade que tinha era de ficar ali, à espera, mudo, trêmulo, assustado.
Ela estendeu um pedaço de papel onde alguém rabiscara um endereço.
dele.
—Precisamos ir até lá — ele disse, mas continuou sentado. A prima esperava, sem se mexer. Parecia respeitar o medo
— É grave? — perguntou. Depois acrescentou: — Quer dizer, ela se queixou? Doeu muito?
Maria Lúcia sacudia a cabeça em silêncio.
— Faz tempo?
— Mais de uma hora.
— Vamos? — ele disse, levantando-se. Ela obedeceu.
Desceram rapidamente as escadas. De um dos apartamentos vinha um choro de menino. Carlinhos deve estar apanhando, o pensamento absurdo varou o cérebro de Maurício. Corriam, ele e Maria Lúcia. Pararam na porta do edifício. Os bondes eram como grandes peixes amarelos, recheados de pessoas. Atravessaram a rua, subiram num taxi. Maurício deu o endereço. Olhou para trás, teve a impressão de que nunca mais veria os plátanos da praça, os longos braços estendidos para o céu, as folhas atapetando o chão em volta. Peixes amarelos cruzavam por eles, misturados a peixes menores, de outras cores. As primeiras luzes nasciam nos postes, as pessoas pareciam diminuir o passo, atentas ao anoitecer, fazendo tempo pelas vitrines, pelas esquinas. Olhou para Maria Lúcia e teve pena dela — mais do que pena, uma ternura estranha, uma intimidade.
— Será que ela vai ficar boa? — perguntou, chamando-se baixinho de idiota, idiota, idiota. Queria que a prima passasse por cima das palavras para compreender seu medo.
Ela voltou o rosto para ele. Por instantes, as luzes dos postes que passavam revelavam os traços, que logo voltavam a mergulhar na penumbra. — Vai, sim. Ela tem que ficar boa.
Não havia nenhuma segurança nas palavras dela. Medo, também. — Este trânsito está uma porcaria — disse o motorista. E eles olharam dentro dos olhos um do outro.
— Tu gostas daqui? — perguntou Maurício.
— Acho que gosto.
— Mas tu nem saíste, não foste a lugar nenhum.
— Você tinha que estudar latim — ela disse. — Mas gosto assim mesmo. Do ar, acho, sei lá.
As mãos dela deviam estar frias, e agora mexiam na saia, criando novas pregas no tecido. Ia se chamar Virgínia, ele pensou. E teria olhos verdes. Segurou com força, de repente, na mão da prima. Ela estremeceu, mas a mão não estava fria. O leve calor um pouco suado passava para a mão dele. Maurício olhou pela janela, esbarrou no mistério das árvores do parque. A noite enegrecia o verde das árvores. O motorista ligou o rádio, a música perdeu-se pela janela aberta. Um vento frio entrou, despenteando-o. Os cabelos de Maria Lúcia voaram para trás. Sem sentir, aproximaram-se mais um do outro. O motorista assobiava, acompanhando uma música que eles não ouviam. Maurício não conseguia imaginar o carro parando, eles descendo, entrando no hospital, os corredores brancos, o silêncio branco. No fundo dos corredores, a mãe. E Virgínia.
Então o carro parou. Ele pagou. Parada na calçada, Maria Lúcia esperava, as mãos enfiadas nos bolsos do casaco. Maurício viu o casarão cinzento, as palmeiras do fundo, os automóveis parados, as luzes através das vidraças abaixadas, o silêncio branco atravessando as paredes ate a rua onde estavam. Devagar, começaram a subir as escadas.

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