PEQUENO MONSTRO

0

Para
Grace Giannoukas
e
Marcos Breda

1
NAQUELE verão, quando a Mãe avisou que o primo Alex vinha
passar o fim de semana conosco na casa da praia alugada, eu não
gostei nem um pouco. Não por causa dele, que eu mal lembrava a cara
direito, podia até ser qualquer outro primo, tio, avô. Mais por minha
causa mesmo, que tinha começado a crescer para todos os lados, de um
jeito assim meio louco. Pernas e braços demais, pêlos nos lugares
errados, uma voz que desafinava igual de pato, eu queria me esconder
de todos. Só tardezinha saía de casa, na hora que as empregadas
domésticas - as dosas, o Pai dizia - estavam voltando da praia. Então
caminhava quilômetros na beira do mar, me rolava na areia, vez
enquando chorava e repetia: pequeno monstro, pequeno monstro,
ninguém te quer. Não suportava ninguém por perto. Uma Mãe
insistindo o tempo inteiro pra tu ires à praia na mesma hora que todo
mundo normal vai e um Pai que te olha como se tu fosses a criatura
mais nojenta do mundo e só pensa em te botar no quartel pra aprender
o que é bom - isso já é dose suficiente para um verão. Como se não
bastasse a minha desgraça, agora ia ter que dividir meu quarto com o
tal de primo Alex. E não queria que ninguém ouvisse minha voz de pato
grasnando, visse meus braços compridos demais, minhas pernas de
avestruz, meus pêlos todos errados.
Fiz cara feia, a Mãe nem ligou. Falou que ele vinha e pronto, que
tinha estudado muito o ano todo, passado no vestibular não sei de que
e precisava descansar e tal e tudo e que ela devia aquela obrigação à tia
Dulcinha coitada tão só e que além do mais o Alex era um bom rapaz
tão esforçado o pobre. Isso eu odiava mais que tudo: aqueles bons
rapazes tão esforçados e de óculos sempre saindo com sacolas de lona
na hora do almoço para comprar cervejas e coca-colas e cigarros pra
todo mundo, ajudando a lavar pratos e jogando aquelas chatíssimas
canastras sobre o cobertor verde na ponta da mesa. Empurrei a
compota de pêssego argentino, a calda virou na toalha, armei a tromba.
Esse era meu jeito de dizer: não careço nem ver a cara dele para ter
certeza que é um coió.
Quase dormindo, mais tarde, naquela mesma noite que a Mãe
avisou que oprimo Alex vinha, eu tentava lembrar a cara dele e não
conseguia. Na verdade, não conseguia lembrar a cara de ninguém desde
uns dois anos atrás, desde que eu tinha começado a ficar meio monstro
e os parentes se cutucavam quando eu passava, davam risadinhas,
falavam coisas baixinho, olhando disfarçado pra mim. Eu tinha horror
deles, que achavam que sabiam tudo sobre mim. Sabiam nada, sabiam
bosta do meu ódio enorme por um por um de cada um deles, aquelas
barrigonas, aqueles peitos suados, pés cheios de calos. Eu nunca ia ser
igual a eles - pequeno monstro, seria sempre diferente de todos. Era
assim mesmo que ia me comportar com o primo Alex, decidi: pequeno
monstro cada vez mais monstro, até ele não agüentar mais um minuto
e dar o fora pra sempre. Fiquei olhando com força pro colchão sem
lençol da cama ao lado onde ele ia dormir, até encher o colchão com
todo o meu ódio, pra ele se sentir mal e ir embora no mesmo dia.
2
No dia que era o dia que ele vinha - e eu sabia porque a Mãe não
falava outra coisa, arrumou lençóis limpos na cama ao lado, mandou eu
empilhar os gibis, guardar no guarda- roupa a roupa da guarda da
cadeira -, saí de casa um pouco mais cedo e fiquei caminhando séculos
na praia. Eu gostava de ir até aquele farol no caminho de Cidreira, onde
tinha umas dunas e era bom ficar deitado na areia, olhando o mar sem
fim. Vez enquando passava um navio, eu perguntava pra onde vai? pra
onde vai? Bem besta mesmo, não pensava o lugar, só perguntava
assim: pra onde vai, sem pensar o nome nem nada. Depois pensava
também se eu saísse agora reto daqui e entrasse no mar e que nem
Jesus Cristo fosse capaz de pisar sobre as águas e fosse andando
sempre em frente sem parar - ia dar onde? Achava que na África, na
Índia, sei lá. Em algum lugar, ia dar. Longe dali, de Tramandaí. Aí
começou a sair do mar uma lua cheia bem redonda, e eu primeiro fiquei
tentando ver nela São Jorge e o dragão, depois lembrei que era besteira,
coisa de criança, e pensei crateras, desertos, quase via, Mar da
Serenidade. Ou era Fertilidade? Fui olhando as coisas, me atrolhando
por ali, até que de repente tinha anoitecido total, e eu tinha que voltar
pra merda daquela casa com aquele Pai e aquela Mãe. Ainda por cima,
fui lembrando no caminho, cada vez mais puto, e por causa disso
caminhava mais devagar ainda e ficava cada vez mais noite, agora com
aquele tal de primo Alex lá, enfiado no meu quarto.
Passaram uns bagaceiras com violão e uma garrafa de cinzano,
abraçados, cantando uma música de parque. Desviei deles, fui enfiando
os pés na água morna do mar, de cabeça baixa pra não mexerem
comigo. Vez enquando olhava pra trás e só ouvia aquelas vozes bem de
bagaceiras mesmo, cada vez mais longe, cantando a noite tá tão
escura/ a lua fez feriado/ estou sofrendo a tortura/ de não sentir-te ao
meu lado. Bestas, pensei, porque a lua não tinha feito feriado coisa
nenhuma, feriado era lua nova, não aquela luona enorme, redonda,
amarela, bem ali em cima do mar e da cabeça da gente. Quando eu. já
tinha caminhado um pouco em direção ao norte, e os bagaceiras tinham
sumido, olhando por cima do ombro direito pensei quem sabe agora,
saindo reto aqui eu dou justo ali, no sulzinho da África, cabo das
Tormentas. Ou era o da Boa Esperança? Aí de repente despencou uma
baita estrela cadente, quase do tamanho da lua, tão grande que cheguei
a parar pra ouvir o tchuááááááááááááááá da estrela caindo dentro do
mar. Não aconteceu nada, então falei bem alto, imitando aquela vozinha
de taquara rachada da dona Irineide, professora de Geografia: bó-li-dos,
isso que o populacho chama de estrelas cadentes na verdade são bó-lidos.
Me senti muito culto e tudo, mas meio sem graça, daí lembrei que
podia fazer um pedido, ou três, não sei bem, a gente podia. Então
peguei e fiz. Que já que o primo Alex tinha mesmo que estar lá naquela
merda de casa - e era impossível pedir que não viesse, porque já tinha
vindo - que pelo menos ele fosse legal e não me enchesse o saco.
Bem devagarinho, fui me distraindo com essas coisas pelo
caminho. Daí me atrasei tanto que, quando cheguei em casa, estava
armado um começo de alvoroço. O Pai já estava de chinelo e pijama, me
chamou de desgranido e disse que ia me proibir de ir à praia a essa
hora de louco e eu respondi que se me proibisse de ir nessa hora eu ia
ficar no quarto trancado e não ia em hora nenhuma nunca mais, e a
Mãe falou baixo, mas eu escutei, é a idade não liga, não implica com o
guri, criatura, e me deu uma janta meio fria com milho duro e eu
cheguei a abrir a boca pra falar que não era cavalo quando ela disse que
o primo Alex já tinha chegado e estava dormindo, podre da viagem. Nem
precisava dizer nada: sentado na ponta da mesa, eu já tinha visto
aquela campeira xadrez pendurada numa guarda de cadeira. Mesmo
que não pudesse ver nada, farejava um cheiro no ar. Nem bom nem
mau, cheiro de gente estranha recém-chegada de viagem. Polvadeira,
bodum, sei lá. Quase não consegui comer, de tanto ódio. O Pai foi
dormir azedo, falando que no quartel eu ia ver. A Mãe ficou mexendo no
rádio, mas só dava descarga no meio dumas rádios castelhanas êleêrre-
uno-êle-êrre-dôs. Nada de Elvis, que eu gostava e ela fingia que
não, só Gardel, que ela gostava e eu tinha certeza que não. Falei que ia
dormir também, a Mãe botou a mão no meu ombro e muito séria pediu
pra mim prometer que ia ser educado com o primo Alex coitado que o
pai dele tinha morrido e a tia Dulcinha passava muito trabalho e coisa e
tal. Até prometi, não custava nada. Mas fiquei torcendo os dedos,
rezando prela não repetir que ele era um bom rapaz tão esforçado o
pobre, senão meu ódio voltava. Ela acabou falando, bem na hora que
Gardel cantava sabia que nel mundo no cabía toda la humilde alegría
de mi pobre corazón, e eu fui dormir com muito ódio. Dela, do Pai, do
primo Alex, da tia Dulcinha, dos bagaceiras da praia, do Gardel, de
tudo.
3
Tirei a areia dos pés no bidê, lavei a cara e fiquei parado na
frente do espelho. Pequeno monstro, falei. Mais de uma vez, três, doze,
vinte, eu repetia sempre, me olhando no espelho antes de dormir:
pequeno, pequeno monstro, ninguém, ninguém te quer. Mijei, escovei os
dentes, gargarejei. Me deu vontade de vomitar, sempre me dava. Mas
não vomitei, nunca vomitava. Tive vontade de me encolher ali mesmo,
embaixo da pia, feito cusco escorraçado, e dormir até a manhã seguinte,
para que todos vissem como eu era desgraçado. Meu quarto agora não
era mais só meu, não podia ficar lendo até tarde nem nada, luz acesa
até altas: a droga do primo Alex estava lá, e eu tinha prometido ser bem
educado com ele, coitado.
Aquele quarto que agora não era mais meu, mas. meu e do tal de
primo Alex, ficava na parte de trás da casa de tábuas, numa espécie de
puxado, ao lado de um banheiro que antes dele chegar também era só
meu, mas agora era meu e dele, que nojo. Apaguei a luz, parei na porta
do banheiro e fiquei remanchando um pouco por ali, parado no corredor
escuro, antes de entrar. Eu tinha que estar preparado para enfrentar
aquele tapume de óculos, que certamente - eu conhecia bem essa gente
- tinha deixado seus óculos sebentos na minha mesinha de cabeceira, e
aqueles vulcabrás nojentos com umas meias duras no garrão saindo
pra fora e um fedor de chulé no ar, escarrapachado na cama, roncando
e peidando feito um porco. Que ódio, que ódio eu sentia parado naquele
biricuete escuro entre o banheiro e o quarto que não eram mais meus.
Abri a porta devagarinho. A janela-guilhotina estava levantada, a
luz apagada. Não tinha nenhum fedor no ar. A luz da lua entrando pela
janela era tão clara que eu fui me guiando pelo escuro até a minha
cama, sem precisar estender a mão nem nada. Sentei, levei a mão até a
mesinha de cabeceira e apalpei: não tinha nenhum óculos em cima
dela. Só meu livro Tarzan, o Invencível, da coleção Terramarear. Pelo
menos isso, pensei: a trolha não usa óculos. Fiquei de cueca, camiseta,
me deitei. Não tinha nenhum barulho de ronco, nenhum cheiro de
peido no ar, só aquele perfume meio enjoativo do jasmineiro ali no pátio
ao lado. Os meus olhos foram se acostumando mais no escuro, e eu
comecei a olhar para a cama onde o primo Alex estava deitado, do outro
lado do quarto.
A luz da lua batia direto nele. Ele estava deitado por cima do
lençol, completamente pelado. Meus olhos se acostumavam cada vez
mais, e eu,podia ver o primo Alex virado sobre o lado direito, as duas
mãos juntas fechadas no meio das pernas meio dobradas. Ele parecia
muito grande, tinha que encolher um pouco as pernas, senão os pés
batiam lá na guarda do fim da cama-patente. Ele tinha muitos pêlos no
corpo, a luz da lua batendo assim neles fazia brilhar as pontas dos
pêlos. Ele tinha a cara virada de lado, afundada no travesseiro, eu não
podia ver. Via aqueles pêlos brilhando - uns pêlos nos lugares certos,
não errados, que nem os meus - descendo para baixo do pescoço, pelo
peito, pela barriga, escondidos e mais cerrados naquele lugar onde ele
enfiava as mãos, depois espalhados pelas pernas, até os pés. Os pés
encolhidos do primo Alex eram muito brancos, o pai dele tinha morrido,
ele tinha estudado o ano inteiro e passado no vestibular não sei de quê,
lembrei. E não fazia barulho nenhum quando dormia, coitado.
Fiquei deitado na minha cama, olhando para ele. Depois de um
tempo, comecei a ouvir a respiração dele e fui prestando atenção na
minha própria respiração, até conseguir que ela ficasse igual à dele. Eu
respirava, ele respirava. Eu cruzei as mãos no peito e encostei a cabeça
na guarda da cama para poder olhar melhor. Ele tinha cruzado as mãos
no meio das pernas decerto para dormir melhor, o pobre, podre da
viagem. Fiquei olhando pra ele, respirando devagar, no mesmo ritmo.
Bem devagar, para não acordá-lo. Não sei por quê, mas de repente todo
o meu ódio passou. Ali deitado, olhando pro primo Alex dormindo
inteiramente pelado, embaixo daquela lua enorme, o cheiro enjoativo
dos jasmins entrando pela janela aberta, me dava uma coisa assim que
eu não entendia direito se era tontura, sono, nojo ou quem sabe aquele
ódio se transformando devagarzinho em outra coisa que eu ainda não
sabia o que era.
4
De manhã, fiquei na cama até quase meio-dia. Escutei uns
barulhos de gente acordando, mas não me mexi nem olhei, virado pra
parede. Aí vieram outros barulhos, descarga de privada, torneira aberta,
colher batendo em xícara na cozinha, a voz da Mãe dizendo que eu era
assim mesmo, dormia até o cu fazer bico, e uma voz mais grossa, que
não era a do Pai, falando outra coisa que não consegui ouvir. Depois
uns barulhos de porta batendo, e silêncio. Eu sabia que eles tinham ido
todos pra praia, e pensei em me levantar pra mexer um pouco nas
tralhas do primo Alex, ninguém ia ver. Mas comecei a cair naquela coisa
que eu chamava de entre-sono, porque não era bem um sono. Meu pau
ficava tão duro que chegava a doer, toda manhã, então eu apertava ele
contra o lençol, parecia que tinha uma coisa dentro que ia explodir,
mas não explodia, tudo começava a ficar quente dentro e fora de mim,
enquanto eu pensava numas coisas meio nojentas. Não sabia direito se
eram mesmo meio nojentas - um peito da negra Dina que eu vi uma vez
na beira do tanque, uns gemidos de gente e rangidos de cama no quarto
do Pai e da Mãe. Eu não sabia quase nada dessas coisas. Mas era justo
nelas que ficava pensando sempre no entre-sono, o pau apertado contra
o colchão, até tudo ficar mais sono do que entre. Daí eu caía fundo no
poço sem me lembrar de mais nada.
Só saí da cama quando a Mãe bateu na porta e falou que estava
quase na mesa. Olhei pra cama do primo Alex, toda desarrumada, e
pensei que o idiota devia estar na sala, sentado como se a casa fosse
dele, tomando cerveja com o Pai. Enfiei a bermuda, lavei a cara no
banheiro e remanchei o mais que pude, pra não ver a cara de ninguém
nem ninguém ver a minha. Mas quando saí e fui entrando pela casa, só
tinha a Mãe remexendo na cozinha e o Pai sentado no degrau da
varanda, lendo O Correio do Povo. Olhei em volta, não tinha nenhum
sinal do primo Alex além da campeira xadrez desde a noite passada ali
naquela guarda de cadeira. Não perguntei nada, fiquei sentado na
ponta da mesa, riscando a toalha com a ponta da faca. Até que a Mãe
disse:
- O Alex se encantou com a praia. O pobre nunca tinha visto o
mar. Precisava ver, parecia uma criança. Ficou lá, não teve jeito de
querer voltar.
Bem feito, pensei, vai ficar vermelho que nem um camarão. E de
noite vai ter que passar talco nas costas e pasta de dente no nariz e
ficar se rebolcando na cama sem conseguir dormir, porque quando a
gente tá assim queimado até lençol dói na pele. Vai gemer e encher o
saco a noite inteira e amanhã ou depois vai começar a descascar feito
cobra trocando de pele até queimar tudo de novo e a pele ficar grossa
que nem couro e ele começar a se sentir o máximo, de mocassim, calça
branca e camisa banlon vermelha, todo queimado e idiota idiota idiota.
Fui pensando nessas coisas enquanto a Mãe servia a comida e o Pai
nem olhava direito pra mim, só lia o jornal, sacudia a cabeça e dizia
barbaridade-mas-que-barbaridade, e eu nem conseguia comer direito
nem sentir muito ódio. Que era mais um exercício de ruindade minha
pensar aquelas coisas, precisava treinar todo dia pra não perder o jeito
de ser pequeno monstro. Tomei quase um litro de quis- suco de
groselha, puro açúcar, me deu um asco na boca do estômago, empurrei
o prato, sem fome. Disse que não estava me sentindo muito bem, e o
Pai falou também pudera, o lorde, dormindo feito um condenado, vai
acabar tuberculoso, a Mãe falou deixa o guri, também que implicância,
ele falou que era por isso mesmo que eu estava assim baseado, que ela
parecia uma escrava minha, ela disse que tinha alugado aquela casa na
praia pra ver se descansava um pouco, não pra ele infernizar ainda
mais a vida dela, que já era um martírio - e os dois estavam começando
a gritar cada vez mais alto quando eu aproveitei e peguei e fugi pro
quarto sem ninguém ver.
O quarto virava um forno depois do almoço. O sol batia no
telhado de zinco, ficava tudo fervendo. Pensei que se eu ficasse ali todo
aquele maldito quissuco ia começar a ferver na minha barriga, até sair
uma espuma vermelha pela boca e cair no chão babujando e me
batendo pelas paredes. Podia ser que pelo menos assim alguém no
mundo prestasse atenção em mim. Peguei o livro de Tarzan, passei pela
cozinha, onde eles continuavam berrando, fui deitar na rede embaixo
dos ema- momos onde batia uma fresca. Mas mesmo ali, na sombra
boa, não conseguia parar de pensar que a minha vida era um inferno. E
que se um dia eu saísse mesmo caminhando reto por cima do mar,
mesmo que não pisasse sobre a bosta das águas que nem Jesus Cristo,
ia ser ótimo pra todo mundo se eu afundasse de uma vez e ninguém me
encontrasse nunca mais afogado para sempre no fundo do mar igual ao
Titanic. Tentei ler, mas aquela lenga-lenga dos sacerdotes nas cavernas
de Opar estava me enchendo um pouco o saco.
5
Uma cara morena, de cabelo preto, me espiava por cima da rede.
Uma cara morena muito próxima, um cheiro forte de suor e de mar.
Quase gritei, porque logo que abri os olhos e dei com aquela cara e
aquele cheiro não lembrei que tinha deitado ali na rede, depois do
almoço. Acho que estava sonhando com Jad-bal-ja, o leão de ouro, e foi
nisso que pensei quando vi aquela cara morena me espiando por cima
da rede. Mas toda morena, meio de cigano, não era cara de leão - era a
cara do primo Alex, de sobrancelhas pretas bem cerradas grudadas em
cima do nariz. Ele sorriu pra mim, mas a cara estava perto demais, não
consegui sorrir de volta nem nada, por educação que fosse. Desviei os
olhos para o livro de Tarzan no meu colo, depois franzi as sobrancelhas
pra ver se ele se tocava. Mas parece que não se tocou. Empurrou a rede,
se afastou um pouco e ficou me olhando enquanto eu balançava feito
um idiota, com ele me olhando de braços cruzados e pernas abertas.
- A tia disse que tem um chuveiro aqui fora - ele falou com uma
voz meio rouca, mais grossa que a do Pai, e muito educada. - Pra mim
tirar a areia antes de entrar em casa. Onde que é?
- Ali, ó - eu apontei o fundo da casa. Ele me olhou mais um
pouco, os braços cruzados. Eu só podia ver a cara dele com os cabelos
duros de sal e areia e uns pedaços de corpo que subiam e desciam, com
o balanço da rede, as pernas abertas. Pelo menos não Jsa calção-saia,
pensei, aqueles calções de náilon todos largões que estava na cara que
uma pessoa que usava um calção desses nunca tinha ido à praia na
vida, calção de baiquara. Mas o dele era preto, bem decente até.
- Tu não gosta de ir à praia? - ele perguntou. - A tia...
- Não - eu falei. E já sabia: a Mãe tinha dito que eu não gostava
de ir à praia, que não falava com ninguém, que dormia até a hora do
almoço, que ficava trancado no quarto, que dava pontapés na porta e
tudo, tudo ela decerto já tinha contado pra ele: que eu era um monstro.
Depois achei que ele não tinha culpa, coitado, ela é que ficava falando
sem parar, e tentei ser mais educado: - Só gosto de tardezinha, na hora
do pôr-do-sol.
- Ah - ele disse. E achei bacana ele não dizer mais nada, que eu
devia acordar mais cedo, aproveitar o sol e todas aquelas besteiras. Eu
não conseguia olhar direito pra ele, aí estendi uma perna, finquei os
dedos do pé na grama e fiz a rede parar de balançar. Então olhei. Ele
tornou a rir, uns dentes muito brancos - ou só pareciam muito brancos
porque ele estava supermoreno. Não tinha ficado nem um pouco
vermelho do sol. Passou as mãos pelo peito, pela barriga, pelas pernas,
a areia caiu no chão. A voz da Mãe gritou lá de dentro pra ele ir
almoçar. Eu abri o livro, fiz que ia começar a ler, aí ele riu de novo e foi
caminhando devagar pro chuveiro. Parecia um leão, mesmo moreno,
pensei, andando daquele jeito, meio de lado. Eu comecei a ler.
Seus musculosos dedos de aço firmaram-se no centro de uma
das barras. De costas para mim, embaixo do chuveiro, as costas dele
eram retas, largas, com um pequeno triângulo de pêlos crespos e pretos
mais largos onde subiam para a cintura, mais estreitos quando desciam
em direção à bunda. Ele abriu o chuveiro, soltou um grito quando a
água gelada começou a cair. Com a mão esquerda segurou na outra e,
apoiando um dos joelhos de encontro à porta, vagarosamente dobrou o
cotovelo direito. Cada braço dele era assim quase da grossura da minha
coxa. A água começou a levar embora a areia da praia, e agora eu podia
ver melhor o corpo dele, escondido embaixo da camada de areia. Eu não
conseguia parar de olhar. Ondulando como aço plástico, os músculos
de seu antebraço e os bíceps cresceram até que gradualmente a barra
arqueou na sua direção. Ele virou de frente, com as duas mãos afastou
o calção e avançou um pouco o corpo, para a água bater na barriga e
descer por dentro do calção. Enfiou as mãos por dentro do calção,
depois olhou pra mim, entre as gotas do chuveiro, e virou a cabeça,
cuspindo água. O homem-macaco sorriu, enquanto agarrava de novo na
barra de ferro. Quando ele fechou o chuveiro, sacudindo os cabelos
molhados, quando as gotas do cabelo dele respingaram na minha cara e
a Mãe tornou a chamar lá de dentro - de repente e sem querer eu fechei
com força o livro, pulei pra fora da rede e saí correndo em direção à
porta da casa.
6
Pelo resto daquele dia, não consegui fazer mais nada. Até parece
que nos outros dias eu fazia alguma coisa mais, além de me atrolhar
pelos cantos, morto de calor, dormir ou caminhar vadio pela praia. Pois
nem isso consegui. Me deu assim um disparo no coração, feito susto
que não era bem susto, porque não tinha medo de nada. Ou tinha:
medo de uma coisa sem cara nem nome, porque não vinha de fora, mas
de dentro de mim. Uns frios, mesmo parado embaixo do sol de rachar,
olhando minha sombra achatada igual à de um marciano monstro
verde, e uns calorões, mesmo atrás da casa onde até lesma tinha, de
tão úmido. Eu só sabia que por nada desse mundo queria ficar perto do
primo Alex.
Escondido, vi quando ele entrou no quarto e encostou a persiana
da janela, porque decerto ia tirar uma sesta. Todos tiravam sesta no
mundo, menos eu, pequeno monstro. Fiquei acompanhando com a
ponta do dedo um rastro prateado de lesma, naquele lugar frio atrás da
casa, até passar um tempo. E, quando saí no sol outra vez, vi que o
tempo tinha passado, porque a minha sombra já não estava tão
achatada nem tão monstra. Então cheguei bem devagarinho perto da
janela do quarto e, sem barulho nenhum, empurrei a persiana. De leve,
como se fosse um vento. Ele estava nu, de costas para a janela. Um
pouco mais abaixo daquele triângulo de pelos crespos e pretos na
cintura, o calção tinha deixado uma marca branca, que parecia mais
branca ainda, agora que o vermelho do sol começava a acender. Ele
estava deitado em cima do braço esquerdo. O braço direito dele, que eu
só podia ver até a metade, estava dobrado na cintura, desaparecia na
frente do corpo. E se mexia. Todo parado o primo Alex, só mexia o braço
direito que eu não via inteiro, porque ele estava de costas para mim.
Cada vez mais depressa, eu tranquei a respiração, o queixo apoiado na
janela, e cada vez mais depressa, até que ele primeiro gemeu baixinho,
depois mais alto, suspirou, o corpo inteiro tremendo, virou de bruços na
cama e afundou a cara no travesseiro. O braço direito caiu ao lado da
cama. Da ponta dos dedos dele, que quase tocavam o chão, escorria
uma gosma meio branca, meio prateada, que foi deixando no piso um
rastro igual ao das lesmas nos fundos da casa.
Ainda era muito cedo, mas fui caminhar na praia. Saí correndo
pela areia em direção ao farol, e quando vi que não tinha mais ninguém
por perto comecei a gritar: Sumatra Tantor Zanzibar Bukula Mensahib
Nikima Jad-bal-ja. Umas coisas assim, que nem música. Podia até
cantar, e cantei. Cada vez que um dos pés batia na areia eu gritava
Sumatra ou Bukula ou Nikima, parecia louco de hospício. Não
conseguia parar. Só parei quando o coração disparou demais, e minha
cara ficou lavada de suor, bem na frente do farol. Então olhei em volta,
vi que não tinha ninguém, e fiz uma coisa que nunca tinha feito antes.
Tirei a bermuda e a camisa, larguei na areia e fui entrando na água
completamente pelado.
Abri as duas pernas, os dois braços, me joguei no meio da
espuma. Dei de bunda na areia do fundo do mar, mas não doeu. Aí me
virei de bruços e comecei a esfregar meu pau completamente duro na
areia molhada molinha. Ficava cada vez mais duro, parecia que tinha
uma coisa que queria sair de dentro dele, um fio prateado brilhante.
Mas não saía nada, a areia ardia, o sal queimava. Aí eu peguei e abri a
minha bunda com as duas mãos bem no lugar onde as ondas
arrebentavam, e fiquei assim, deixando as ondas arrebentarem e a
espuma morna do fim da tarde entrar pela minha bunda aberta.
Foi me dando uma tontura, eu sem querer pensei no braço
direito do primo Alex, cada vez mais depressa, parecia assim que ia
explodir alguma coisa. Não explodiu nada, eu cravei as unhas no braço,
falei quinze vezes pequeno-monstro-pequenomonstro-ninguém-te-quer e
não sabia mais o que fazer da vida, daquele medo ou coisa que queria
porque queria sair de dentro de mim sem encontrar o jeito.
Meu coração batia batia quando cheguei em casa. A Mãe já
estava botando a mesa da janta. Vai lavar as mãos, o Pai falou sem me
olhar, ele nunca me olhava. Deixei a água correr sem me olhar no
espelho. Quando voltei, o primo Alex já estava sentado, riscando o
xadrez da toalha com a ponta serrilhada da faca. Eu não olhei pra ele,
mas mesmo sem olhar dava pra ver que ele tinha vestido uma camisa
branca de banlon bem alvinha e penteado o cabelo. Eu não queria olhar
pra ele. Mas aí a Mãe foi colocar o ovo e o bife no meu prato e o Pai
falou tira as aspas do prato, guri, também que cosa, parece um bugre.
Eu fiquei vermelho de vergonha dele falar assim daquele jeito comigo na
frente do primo Alex, e sem querer ergui a cabeça, levantei os olhos. Ele
apertou aquelas sobrancelhas pretas grudadas em cima do nariz e
piscou pra mim. Como se a gente tivesse um segredo. Fiquei ali feito
besta olhando de vez em quando pra ele. Ele sempre olhava de novo pra
mim por cima da jarra de quissuco que na janta era de laranja, não de
groselha. Vez enquando piscava, vez enquando ria, sem ninguém ver.
Como se tivesse uma coisa que só acontecia entre ele e eu. Uma coisa
que era um pouco essa vontade minha de ficar olhando sem parar pra
ele? Podia ser essa vontade, misturada com aquele medo, aquele braço
se mexendo cada vez mais depressa, aquele fio prateado de gosma
brilhante estendido no chão. Parecido com a calda da compota de
pêssego que outra vez eu virei na toalha quando a Mãe parou um pouco
de falar e, antes que o Pai me chamasse de porco, perguntou assim:
- Tu não quer convidar o Alex pra dar uma volta na praça e
tomar um chope no centro?
Ficaram os três me olhando. Passei o dedo na calda do pêssego,
e lambi bem devagar quando olhei pro primo Alex e convidei:
- Vamos?
Ele sustentou o olhar. E disse que sim.
7
Azul, mas não era bem bem azul. Isso eu só vi na metade da
primeira cerveja. Azul-escuro que clareava aos poucos, meio
esbranquiçada nas partes em que encostava no corpo. Nos joelhos, na
bunda, na frente onde roçava no volume do pau, atrás do fecho. Tinha
fecho ecler que nem saia de mulher, em vez de botão igual à minha. Já
tinha visto umas assim, mais em filme de mocinho, e só umas poucas
nuns caras meio metidos ali na praia mesmo. Dava um jeito especial na
pessoa. Um jeito bonito, um jeito moderno. Eu não tinha falado quase
nada, mas depois daquele gole de cerveja tomei coragem e disse:
- Bacana a tua calça.
- É Lee - ele disse. - Americana, importada.
- Onde a gente compra?
- Só de contrabando. Quer que te consiga uma?
Perguntei se era difícil, ele disse que tinha jeito, conhecia um
faixa em Porto. Depois falou que novinha não era tão legal, mas a gente
podia desbotar com queboa no tanque. Melhor desbotar sozinha
mesmo, só que levava tempo. Perguntei se a dele era desbotada de
queboa ou de tempo. Ele estava distraído, não ouviu. Tirou o maço de
Minister do bolso, perguntou se eu queria um. Falei que não, se o Pai
soubesse. Ele acendeu, jogou a fumaça pra cima, erguendo um pouco a
cabeça. De novo, eu pensei no leão de ouro. Acho que eu estava ficando
meio borracho com aquela cerveja toda, porque de repente fiquei outra
vez olhando sem conseguir parar o primo Alex sentado ali ao meu lado
na mesinha da calçada do bar. Ele parecia enorme, ele parecia
brilhante, ele parecia bonito. Sem fazer nenhum esforço pra parecer
nada, ele não era exibido. Acho que ele nem sabia direito o jeito que ele
mesmo era. Ficava ali sentado do meu lado como se fosse um cara
comum, fumando, bebendo cerveja e rindo de vez em quando pra mim.
Achei que todo mundo que passava e nas outras mesas ficava olhando
pra ele e pensando mas quem será esse moço. De repente me deu assim
como uma vaidade daquelas pessoas todas estarem me vendo ali, ao
lado dele, e aí aconteceu uma coisa maluca. Por um segundo, parei de
me sentir monstro.
Olhei para o meu braço na mesa. Meu braço um pouco fino
demais, moreno de sol. Mas parecia bonito também. Eu olhei a minha
mão morena, quase sem pêlos, depois levei ela até o cabelo e pensei que
podia deixar ele crescer um pouco, que nem o do primo Alex. E quando
levei a mão desse jeito na cabeça, percebi que as minhas costas
estavam muito curvadas para a frente, como se eu quisesse sempre
defender do mundo alguma coisa funda escondida no meu peito. Então
forcei os ombros para trás, e não estava me sentindo nem um pouco
monstro quando olhei de novo para o primo Alex e vi a lua cheia
subindo por trás da cabeça dele e do telhado da Taberna do Willy.
O garçom chamou ele de senhor quando perguntou se queria
outra cerveja. Ele tinha um jeito de quem sabe sentar num bar, aquele
jeito que eu ia ter um dia. Ele perguntou se eu também queria, eu disse
que sim, apesar de estar meio borracho. Ele encheu o meu copo até
transbordar. Enquanto eu passava o dedo na espuma, ele falou assim:
- A tia me contou que anda preocupada contigo. - Eu pensei que
saco, ela já andou enchendo os ouvidos dele, agora vai ficar dando
opinião, conselho e tudo. Mas ele não deixou eu dizer nada. Só falou: -
Ela diz que acha que tu anda muito sozinho. Que tu não tem nenhum
amigo.
Foi o que bastou. Quando ele falou isso - como num Shazam! ao
contrário, que ao invés do cara virar super, ficava ainda mais coió -, eu
comecei a me sentir monstro de novo. Coitado coitado coitado de mim,
pensei, o meu olho ficou cheio de lágrima de pura pena de mim mesmo,
todo troncho. Estava meio enjoado daquela cervejada toda, tive vontade
de me levantar e dizer que ia embora já pra casa. Aí o primo Alex disse:
- Falei pra ela que é da idade. Que passa. Que eu mesmo era
assim que nem tu, meio arisco. Mas passa, tu vai ver que passa.
Eu quase disse que tinha certeza que, comigo, não ia passar
nunca. Que ia ficar para sempre e até o fim do mundo assim pequeno,
pequeno monstro nojento, diferente de todas as outras pessoas, todo
mundo rindo baixinho, falando coisas quando eu passava. Mas ele
disse:
- Eu sou teu amigo.
Parei outra vez de me sentir monstro. Nunca ninguém tinha me
dito isso antes. Foi aí que as coisas começaram a acontecer muito
depressa, me deu vontade de rir, comecei a falar sem parar, ele
começou a falar sem parar também no curso dele de Medicina, nas
coisas todas que ia estudar, umas coisas da cabeça das pessoas, de
nome complicado, psico não sei o quê, nuns livros duns caras de nome
complicado também, duns discos, duns filmes, e disse que ia me dar
umas coisas pra mim ler, pra mim ouvir, pra mim gostar, e eu fiquei
pensando que não ia dar porque eu ficava o ano todo lá naquele
cafundó do Passo da Guanxuma e ele em Porto Alegre e perigava então,
até a gente não se ver nunca mais, e comecei a ficar triste, aí ele contou
que a Mãe tinha falado que andava pensando em me mandar estudar
em Porto Alegre, e primeiro me deu um baita cagaço, depois foi me
vindo uma coragem boa e uma alegria no coração, ia ser que nem filme,
andar de bonde sozinho do centro até o tal de Partenon, onde ele falou
que morava, e eu ia lá todo domingo de tardezinha, ficava no quarto
dele ouvindo na eletrola aqueles discos que ele disse que ia me mostrar,
eu com a minha calça lee igualzinha à dele, no começo desbotada de
queboa mesmo, depois desbotada do tempo, do sol, da chuva, e todo
mundo olhava quando a gente entrava junto no cinema e falavam
baixinho de um jeito diferente, porque eu não era mais monstro, só
porque a gente era bonito junto, só por isso falavam e apontavam, eu e
o primo Alex, caminhando de tardezinha por uma praça ou numa
calçada mesmo ali daquele lugar onde eu nunca tinha ido chamado
Partenon, e Partenon era quase tão bonito e longe quanto Sumatra,
Zanzibar, Uganda, e eu criei coragem e falei pra ele que queria ser
músico, fazer rock que nem o do Elvis, que eu sabia de cor uns
pedacinhos dumas músicas em inglês mesmo e ele cantou rindo it ‘s
now or never, só um pedaço, depois passou a mão no meu cabelo e
disse que eu tinha que deixar um topete crescer pra cair na testa
quando eu fizesse yeah remexendo as cadeiras, e só de sarro eu fiz yeah
yeah yeah, e ele morreu de rir e eu morri de rir também, e ele pediu
outra cerveja e eu acendi um cigarro e tossi tossi e ele bateu nas
minhas costas, as pessoas em volta olhavam, e ele começou a contar
que depois de formado ia viajar muito de navio pelo mundo inteiro, e eu
perguntei se Zanzibar também e ele morreu de rir de novo e falou que
sim, se eu queria ir junto com ele pra Zanzibar, lógico eu disse e fiquei
imaginando tudo enquanto ele contava que ia ser um grande médico
desses modernos que curam a cabeça dos outros pra deixar todo
mundo feliz o tempo todo pra sempre sem nenhuma culpa, ele disse, ele
era tão bonito, todo mundo em volta olhava, eu ria, ele ria, e a gente
estava ficando cada vez mais bêbado quando eu tentei levantar pra ir ao
banheiro e quase caí em cima da mesa. Então ele me segurou pelo
braço, e rindo sem parar falou que tava na hora de ir embora se não o
Pai e a Mãe iam ficar umas feras.
8
A gente só parou de rir no caminho da porta de casa até o
quarto, pro Pai e a Mãe não acordarem. Passado de meia-noite, Alex viu
no pulso. Ele acendeu a luz, se jogou na cama e continuou rindo. Eu
fechei a porta, me joguei ria cama e continuei rindo. Vez enquando a
gente olhava um pro outro e ria mais ainda. Um tempão assim, feito
dois mangolões. A barriga doía de tanto rir, eu falei que ia no banheiro
mijar e já voltava. Demorei um pouco, parecia que tinha bebido um
açude inteiro. Quando voltei, ele tinha tirado toda a roupa e estava
deitado de costas na cama. Tu vai te gripar, pensei em dizer. Só pensei,
em seguida vi que não tinha vento nem nada. E fui andando pra minha
cama enquanto olhava pra calça lee, a camisa banlon, o mocassim e a
cueca dele jogados no chão, sem saber direito o que fazer com a janela
aberta, a lua cheia e o primo Alex completamente pelado na cama ao
lado. Tentei não olhar pra ele. Mas ele olhava bem pra mim quando
falou estranho, como se o que quisesse dizer não fosse o que estava
dizendo:
- Tá muito quente, tu não acha?
- É - eu disse. E aí não consegui mais parar de olhar pra ele. Fui
ficando meio descarado e comecei a olhar mesmo, porque tinha vontade
e era bom de olhar. Desci os olhos pelo peito dele, acompanhando
aqueles pêlos que se amontoavam lá em cima, pouco embaixo do
pescoço, em volta das mamiquinhas cor-de-rosa, depois se estreitavam
enquanto desciam pela barriga e ficavam assim um fiozinho crespo, até
começarem a encrespar mais e a aumentar de novo, no meio das
pernas. Ele estava com a mão no meio das pernas, lá onde os pêlos
encrespavam mais.
- Eu te espiei dormindo hoje de tarde - contei.
- Eu vi - ele disse. - Eu não estava dormindo, eu estava batendo
punheta.
Me deu um vermelhão. Desviei os olhos para o livro de Tarzan, o
Invencível, na cabeceira. Em cima duma árvore, Tarzan apontava uma
flecha para um bwana falando com dois negros pigmeus na frente de
uma barraca. E se ele disparar a flecha? pensei.
- Tu já esporrou? - ele perguntou.
- Não - eu disse. - Nunca, nem sei como é que se faz.
- Quer que eu te ensine? - Estava rindo outra vez. Aquela cabeça
de leão de ouro, dentes muito brancos.
- Quero - eu disse.
Ele tirou a mão do meio das pernas, bateu na cama ao lado dele
e chamou:
- Senta aqui, eu te mostro como é. Tira a roupa e senta do meu
lado.
Tirei, joguei no chão, em cima da roupa dele. Depois sentei na
cama dele, só de cueca. Uma cueca feia, toda esbragalada, não era que
nem a dele. Ele suava um pouco. O cheiro de suor misturava com o de
um perfume que acho que era colônia de barba, mais o do jasmineiro
entrando pela janela aberta. Eu podia ouvir o tum-tum do meu coração
no peito. Ele estava bem perto de mim. Eu cruzei as pernas, de costas
para ele, de frente para a janela.
- Vira pra cá - ele pediu.
Estendeu a mão, tocou no meu joelho. Fui virando, até ficar de
frente pra ele. Ele sentou na cama, ficou de frente pra mim, cruzou as
pernas também. Ele encostou umas das mãos na minha coxa, depois foi
subindo e puxou devagarinho a minha cueca. Estendi a perna para que
ele pudesse tirar e jogar no chão, em cima das roupas dele e das
minhas. Agora eu também estava completamente nu, de pau tão duro
quanto o dele, eu tinha visto. Ele não escondia, não era feio. Quase
fiquei com vergonha, mas ele segurava os olhos dele bem dentro dos
meus, sem sorrir nem piscar. Ele levou a mão direita até o seu pau
duro, enquanto com a mão esquerda pegava a minha mão direita e
levava até o meu pau duro. Ele segurou meu braço, mexendo devagar
para que eu movimentasse para cima e para baixo, que nem ele fazia.
Ele era tão bonito. Ele se torceu e gemeu um pouco. Fechei os olhos: se
sair reto daqui sempre em frente vou dar na África, pensei idiota.
Aquela coisa querendo explodir vinha subindo de novo. Eu abri mais as
pernas, joguei o corpo para a frente. Ele chegou mais perto. Então
pegou outra vez no meu, braço, cuspiu na palma da minha mão e levou
até o pau dele. Ele cuspiu na palma da mão dele e levou até o meu pau.
Quente molhado rijo macio. A cama rangia. Eu cheguei ainda mais
perto. Aquela coisa crescia dentro de mim feito louca de atar, como se o
meu corpo fosse arrebentar e de dentro dele saíssem balões,
bandeirinhas coloridas de Santo Antônio, penduricalhos dourados de
árvore de Natal, confete e serpentina de Carnaval, sei lá que mais. Mais
depressa, ele disse. Mais depressa, vem junto. Parecia que a gente
estava sozinho só os dois num barco solto no mar no meio duma
tempestade. Sumatra Tantor Bukula Nikima, eu ia gritar alto quando
aquela coisa começou a se juntar dentro de mim feito uma onda que vai
se armando longe da praia enquanto a gente espera que ela venha ali
na beira sem me importar nem um pouco que o Pai e a Mãe ouvissem e
a vizinhança toda e a cidade inteira acordassem. Ele chegou ainda mais
perto. Eu colei meu peito no peito dele. Ele afundou a boca na minha
enquanto eu sentia a palma da minha mão aos poucos ficar molhada
daquele fio de prata brilhante que saía de dentro dele e sabia que de
dentro de mim saía também um fio de prata molhado brilhante igual ao
que saía de dentro dele.
Vem comigo, ele chamou. E eu fui.
Ele passou as mãos molhadas nas minhas costas. Eu passei as
mãos molhadas nas costas dele. Ele afastou a boca da minha, depois
deitou a cabeça no meu ombro. Meu coração batia batia, ele podia
ouvir. O suor da gente se misturava, O coração dele batia batia, escutei
quando deitei a cabeça no seu ombro. Eu fiquei passando as mãos nas
costas dele. Elas ficaram todas meladas da água de prata que ele tinha
me ensinado a tirar de dentro de mim. Ele não se importava de ficar
melado da água de mim. Eu também não me importava de ficar melado
da água dele. Nojo nenhum, eu sentia. Ele passou a língua na curva do
meu pescoço. Eu enrolei os dedos naquele triângulo de pêlos crespos na
cintura dele. Não sei quanto tempo durou. Sei que de repente a gente se
afastou e, olhando um pro outro, começamos a rir feito loucos outra
vez.
9
Bem cedo, na manhã seguinte, fomos à praia juntos. Ele me
ensinou a mergulhar e a boiar, eu apontei o horizonte e mostrei o
caminho da África, das Indias. Depois do almoço, no forno quente do
quarto coberto de zinco, ele me ensinou outros caminhos. Na hora de ir
embora, de tardezinha, ajudei ele a arrumar suas roupas. Mas não fui
até a rodoviária. Espiei da esquina, escondido. Depois corri pela calçada
atrás do ônibus, até que ele saísse na janela e gritasse alguma coisa
que não entendi direito. Parecia Zanzibar, Partenon, qualquer o coisa
assim. Ele ficou abanando até o ônibus fazer a curva, na polvadeira
vermelha da estrada de Osório.
À noite, fiquei procurando umas músicas no rádio. Nem Gardel
nem Elvis: encontrei Maísa, que o Pai disse que eu não tinha idade pra
ouvir. Depravada, falou, e eu não sabia o que isso queria dizer. Na hora
de dormir, a Mãe olhou bem pra mim e disse baixinho:
- Parece que tu está sentindo muita falta do Alex.
Eu falei que não. E não estava mentindo. Eu sabia que ele tinha
ficado para sempre comigo. Ela foi dormir, apaguei o rádio. Sozinho na
sala, em silêncio, eu não era mais monstro. Fiquei olhando minha mão
magra morena, quase sem pêlos. Eu sabia que o primo Alex tinha ficado
para sempre comigo. Guardado bem aqui, na palma da minha mão.

Ler mais »

0 comentários: