O PASSEIO

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“Erant omnino itinera duo, quibus itineribis domo exire possent; unum per Sequanos, angustum et difficile, inter montem Juram et flumen Rhodanus...” Maurício afastou para longe livros e cadernos, misturando-os aos papéis que enchiam a mesa. Afinal, pensou,teria sido mais agradável sair com a prima.
Olhou o relógio. A tarde no início, a noite ainda não viera: um dia inteiro pela frente. Bocejou, atirando os braços para trás. O sol espalhava-se aos poucos por dentro do quarto, e seu lento avançar era uma espécie de convite mudo, insistente. Maurício empurrou a cadeira, aproximou-se da
janela. Espiou sem ver a monotonia quieta do domingo, depois voltou-se para dentro, ficou ouvindo o silêncio. Pareciam todos mortos e se estivessem? A idéia brincou preguiçosa na cabeça: e se estivessem todos mortos, se ele fosse o único ser vivo em toda a cidade? Tornou a olhar para fora. Não era preciso muita imaginação para sentir-se assim. A larga avenida desdobrava-se vazia até o viaduto; na praça deserta, a única presença viva era a dos platanos, pequenos gigantes quietos. Os táxis pareciam abandonados no meio-fio, e a fila que até há pouco aguardava na frente do cinema da esquina tinha sido digerida pela sessão das duas. Apenas num edifício em frente alguém brincava de fazer reflexos com um espelho. Mesmo assim, o corpo e o rosto da pessoa permaneciam escondidos pelas cintilações dos raios de sol contra o vidro e, ainda assim, era como se não houvesse ninguém. Subitamente, Maurício apanhou o casaco na guarda da cadeira e saiu do quarto pisando na ponta dos pés. “Estou me esgueirando”, pensou, e a palavra tinha uma carga estranha e antiga de mistério. Lembrava passos muito leves, corpo apertado contra a parede, olhos esgazeados, respiração contida. E, sem querer, um esbarrão em algum móvel, um objeto qualquer despencando com estrondo no assoalho. Desviou-se cuidadosamente da mesinha com o vaso em cima, passou pela porta do quarto dos pais, depois do quarto de hóspedes onde estavam a tia e Maria Lúcia. Escutou um barulho diluído de vozes, coado pela madeira da porta. Pensou em deter-se, colar o ouvido à fechadura, mas isso era absurdo, e seguiu em frente.
Na sala estava Edu, estirado no sofá-cama, um jornal caído no chão. Os pés nus, de dedos grandes e unhas rosadas, voltados para o teto. A camisa desabotoada expulsava um punhado dos pêlos meio grisalhos do peito, um dos botões da braguilha oscilava comicamente, suspenso por um fio de linha. As pálpebras fechadas escondiam o azul dos olhos. “A única coisa que restou”, pensou Maurício. E deteve-se. Contudo, foi pensando, contudo havia ainda certa dignidade, até mesmo certa beleza no corpo grande abandonado sobre o sofá. Ele não podia esquecer que aquilo um dia fora Edu, que aquilo um dia fora Edu, um dia, aquilo fora, Edu, não podia esquecer — não podia esquecer Edu. Ficou repetindo os pedaços da frase
enquanto apertava o botão do elevador. Mas eram já palavras sem sentido quando o elevador parou. Apertou o botão com a letra “tê” destacada contra o fundo branco, e disse alto:
— Térreo.
Era estranha a sensação de ouvir a própria voz ressoando dentro da caixa de madeira que descia. Leu os palavrões encravados nas paredes. O canivete ferira fundo, como se a pessoa estivesse realmente furiosa e convicta do que escrevia. Tornou a falar alto:
— Merda.
Mas o elevador já parava, e ele era empurrado para longe dos dois corações entrelaçados em meio aos nomes feios: Geraldo e Elizabeth. Embaixo, uma data, um dia qualquer, quando um casal certamente havia se beijado ali dentro. Segurou a porta para a mulher que entrava, carregada de pacotes. “Um sobrevivente”, pensou, alcançando a porta do edifício sem cumprimentar o porteiro que parecia dormir, debruçado no balcão.
Na calçada, o sol bateu com força na cabeça. Os olhos recém-vindos da semi-escuridão vagamente úmida do elevador apertaram-se, reagindo à luz. Deu alguns passos meio tonto, depois parou e voltou-se, tentando enxergar a janela de seu próprio quarto. Não conseguiu localizá-la em meio a tantas e tantas vidraças e pastilhas idênticas. Precisou contar os andares, desde baixo, até chegar ao sétimo. Era lá, então. Apenas um retângulo insignificante, igual a dezenas de outros. No entanto, lá dentro estavam Edu, deitado no sofá-cama como botão da braguilha suspenso, tia Clotilde e Maria Lúcia discutindo no quarto, o pai provavelmente dormindo e a mãe ao lado, com o ventre enorme. Lá estavam seu quarto, seus livros, seu diário — suas angústias e revoltas cotidianas como guardadas nas paredes verde-claras. Mas perdidas, perdidas e insignificantes entre as inúmeras janelas do edifício. Humildade, pensou, seria humildade o que sentia? Recomeçou a caminhar. Subindo em direção ao viaduto, a avenida Borges parecia saída de um quadro ou de um filme. Imaginou que uma câmara, numa daquelas sacadas, acompanhava cada um de seus movimentos, e pisou com mais segurança. Os cartazes do cinema mostravam mulheres nuas contra letreiros
berrantemente coloridos e títulos espalhafatosos. Na esquina o sinal funcionava para ninguém, tentando disciplinar os carros que não passavam. Logo alcançou o viaduto, onde as sombras e o cheiro de urina sempre lhe davam a sensação de estar fazendo alguma coisa errada. Mas o que seriam essas coisas, as errada? As mulheres nuas dos cartazes vieram à mente, cedendo lugar à imagem de Maria Lúcia e, ao mesmo tempo, à de Edu. Passou a mão pela testa, transpirava um pouco. Ah, se fosse possivel livrar-se de idéias como de fios de cabelo caindo sobre os olhos... E havia a mãe, as mãos colocadas sobre o ventre crescido, os olhos baixos, a boca trêmula, naquele dia em que a surpreendera dizendo à empregada: “E se for menina vai se chamar Virgínia. Sempre tive loucura por Virgínias.” Ele cortara a confissão pelo meio, ela calara-se imediatamente, fingindo que tossia. Agora aquela frase saltava novamente, seus passos a ritmavam contra o calçamento arrebentado. Sem-pre-ti-ve-lou-cu-ra-por-Vir-gí-ni-as-sem-pre-ti-ve-lou. O rosto da mãe misturava-se às palavras, um rosto envergonhado, como se “gostar de Virgínias” fosse um luxo excessivo a que ela não pudesse se permitir.
E seria menina?, perguntou-se, sem pretender. A sua irmã, era difícil pensar isso. E se fosse, teria olhos verdes? Era fascinado por olhos verdes, como se as pessoas de olhos verdes nunca revelassem tudo, escondendo por trás daquela cor uma vida secreta, profunda, como a dos gatos. Seria bom ter uma irmã de olhos verdes chamada Virgínia?
Um casal de namorados cortou o pensamento. Eram feios e pobres, o vestido dela parecia desbotado, justo demais, os cabelos estavam duros de laquê e os dele empastados de brilhantina, penteados para trás, como um capacete. Mas caminhavam devagar, as mãos dadas. Na parede, o sol projetava a sombra de um único corpo, com duas cabeças monstruosas. Ele dizia alguma coisa no ouvido dela; a moça ria deliciada, atirando a cabeça para trás, um tanto exagerada, num gesto copiado de algum filme. Eram assim, os outros. Aqueles rapazes que paravam no meio-fio, encostados nos automóveis, soltando piadinhas para as moças que passavam. Não sentia raiva nem inveja, um certo alívio e só.Porque conhecia a maioria dos pensamentos existentes dentro de si e, embora o assustassem tanto que às
vezes nem sequer lhes dava nomes, era bom caminhar a sós com eles. Estava no seu papel. Eles estavam nos deles. Isso trazia uma sensação que poderia, talvez, chamar de serenidade.
Serenidade, repetiu.
Mocinhas suburbanas passavam falando muito alto, em grupos aflitos. Havia também casais mais velhos, mais lentos. E casais de jovens, levando crianças pelas mãos, que davam uma espécie de pena. Pena como uma tristeza fina, sem palavras nem motivos aparentes. Tentou ouvir o que as pessoas diziam, seria divertido caminhar assim, à toa, com um gravador.
— Quem, o Paulo Alberto? Mas ele não quer nada com ela, minha filha. A mocinha de vermelho sacudia a cabeleira loura, num gesto de desprezo, enquanto a morena arregalava os olhos:
— Mas eu jurava que estavam namorando.
Outras pessoas, outras conversas:
— Depois que a gente passa duma certa idade, tudo meio que perde a graça. — De banana, não. Quero de creme, já disse. Duas bolas.
— Três a dois? Só se o juiz roubou.
— E de repente um dia ele se matou e não deixou nem um bilhete.
— Filme de correria não, prefiro então ir numa confeitaria.
— O dia está tão claro que dá pra ver as ilhas, lá longe.
— Quando eu morrer, eu disse, tu hás de ficar te rebolcando em cima da terra do meu caixão.
Na praça da Alfândega as árvores erguiam os grandes braços verdes para o céu. Pensou em parar, mas havia gente demais ali. Queria ficar só: água até perder de vista e um céu inteiro. Um céu que se espalhasse azul até encontrar a água, no horizonte, sem nenhum obstáculo.
A estátua amarela da mulher nua na rua da Praia parecia sustentar todo o peso da parte superior da casa nas costas. Os grandes seios derramavam-se pelo peito, as pernas entreabertas sugeriam um grande esforço, mas no rosto voltado para as pessoas lá embaixo desenhava-se um sorriso doce. E agora a igreja de portões entreabertos, as Dores, repetiu, a
enorme escadaria que uma mulher vencia lentamente, de joelhos. Que milagre teria merecido o ferimento dos joelhos, as gotas de suor nascendo debaixo do lenço na cabeça, a boca contraída? A figura anônima, toda de preto, não respondia. Talvez nem ela mesma soubesse. Limitava-se a avançar penosamente em direção às portas escancaradas, uma imensa boca mostrando a garganta feita de vitrais. E agora era a rua dos Plátanos, estendendo-se até os armazéns amarelados, à beira do rio. Maurício não sabia o nome da rua. Bastaria erguer a cabeça e decifrar as letras brancas na placa azul-marinho da esquina, mas não queria saber. Chamando-a assim — rua dos Plátanos — era como se ela fosse só dele, de ninguém mais, e esperasse ansiosa por vê-lo passar. Olhou com carinho para as duas fileiras de plátanos em ambas as calçadas e, no meio, os quatro coqueiros de braços esfiapados. Uma tentação de sentar ali, na sombra que convidava. Mas queria ver água, água e céu, muito. Não o satisfaziam os retalhos de rio que apareciam ao longe, nas esquinas, nem os farrapos de céu entre os edifícios. Precisava vê-los inteiros, inteiros e azuis.
Duas prostitutas batiam com força na porta da casa que anunciava, em grandes letras verdes: Comprasse e vendesse roupaz uzadaz. E mais embaixo, em letras maiores: Atendesse a domissi1io. Seus pés afundavam entre a grama que avançava calçada adentro, sem respeitar os velhos e enferrujados trilhos de bonde. As casas baixas de cores escuras pareciam cães de rabo entre as pernas. Cachorros magros, famintos, a observá-lo, sentados à beira do caminho. Os edifícios começaram a ficar para trás, o céu aumentava lentamente. Os portões da velha cadeia abriram-se para a rua. Maurício pensou que por ali haviam saído homens que tinham ficado durante muito tempo trancados lá dentro. Mas a cadeia estava destruída, e aqueles homens saindo devagar, a barba por fazer, um embrulho nas mãos, os olhos desacostumados à luz do sol, e aquelas mulheres esperando na calçada, a caminhar de um lado para outro, os filhos pelas mãos — esses homens, essas mulheres e crianças eram lembranças mortas.
De repente, então, o céu e o rio se mostraram inteiros, juntos, atrás da praça cheia de balanços e crianças. Maurício parou. O casaco pesava nas mãos, o corpo úmido de suor. Imagens entravam em massa pelos olhos, sem
dar tempo de pensar, analisar, talvez sentir. A menina vestida de branco corria, fugindo da senhora de cabelos grisalhos, provavelmente vingando-se da longa clausura num apartamento. Um homem de terno amassado e chapéu gasto acariciava inutilmente as costas de uma mulata imóvel, vestida de preto, olhando o rio. O vento, ali, tinha um cheiro quase de mar. Acentuava as cores, meio obscenas de tão vivas, e os movimentos. Frementes, ele pensou, era uma palavra engraçada e era assim que tudo parecia: fremente.
Pedras pequenas, escuras, encravavam-se em seus sapatos. Atrás, a chaminé do Gasômetro ameaçava furar o céu, tão alta que sua ponta quase perdia-se no azul. Do outro lado do rio, as torres de televisão erguiam-se sobre a colina — eram sete, diziam, sete colinas verdes. Verde mais intenso era o da pequena ilha, recortada no horizonte. Maurício avançou. À medida que se aproximava do rio as pedras davam lugar a uma grama rala e suja, que depois cedia à areia grossa, onde confundiam-se papeis amassados, pedaços de tijolo, garrafas vazias. Na beira do rio, escurecidas pelas águas, espalhava-se uma infinidade de pedras redondas, carcomidas pelas marés. Curvou-se, apanhou uma das pedras. Os dois buracos pareciam órbitas vazias, o furo no meio assemelhava-se a um nariz e, mais abaixo, o orifício um pouco rasgado sugeria um sorriso — uma caveira. To be or not to be, brincou, a pedra nas mãos. Não, não ser, escolheu, e atirou a pedra no meio do rio. As ondas suaves avançavam até seus pés, quebrando-se numa espuma rala, amarelada. O sol colocou um reflexo mais forte na asa de um pássaro, numa curva. Respirou fundo e recomeçou a caminhar, costeando a margem do rio.
De vez em quando, detinha-se para olhar alguma coisa. Um sapato de mulher, rasgado e cheio de musgo, o salto enterrado na areia. Uma concha quebrada, mostrando o interior branquicento que parecia leite de magnésia. A sombra dele projetava-se na água, e o movimento das ondas a fazia tremer de leve. O vento despenteava seus cabelos, enfunava o casaco nas mãos, como uma bandeira. Havia mistérios miúdos no fundo do rio. As colinas e as ilhas ao longe traziam um impulso de fuga. O vento, o céu, a água: tudo era fácil, livre, belo, limpo. O desejo de voar, de perder-se, ser maior e mais forte
que tudo aquilo misturava-se ao desejo de não passar de uma daquelas pedras carcomidas, um daqueles grãos de areia, daqueles talos de capim. Um menino caminhava devagar por dentro da água. O sol batia no corpo queimado. A areia tornava-se subitamente flácida, seus pés afundavam, deixando marcas fundas, que depois eram sulcos e valas e enormes fossos barrentos. Uma planta estranha, como um polvo, estendia suas ramificações embolotadas pela aridez, onde não havia possibilidade de comunicação. “Isto é solidão”, pensou. E no mesmo instante viu a água suja do canal de esgoto despejando-se no rio. Travava-se uma pequena luta entre as duas águas, e ele desejou que a do rio vencesse, empurrando a outra de volta para o cano. Lembrou de uma professora antiga de geografia explicando a pororoca, as duas mãos chocando-se como aranhas no ar. Bruno sentava a seu lado naquele tempo, e tinha uma expressão distante nos olhos. Um navio cortou a água do rio — outro navio, igual àquele, flutuando naquelas mesmas águas, levara um dia Bruno para longe. Sacudiu a cabeça e começou a correr até as ruínas da cadeia.
Os tetos côncavos mostravam celas subterrâneas, úmidas e apertadas. Ubirajara, alguém escrevera numa das paredes, em letras vermelhas. Descendo mais, Maurício escorregou e um fio de sangue nasceu da esfoladura na mão. Levou o machucado aos lábios, bebeu devagarinho o próprio sangue. Precisava caminhar de cabeça baixa, caso contrário a cabeça bateria no teto.
O corredor estreito ramificava-se em outras celas. Entrou numa delas: a imagem de um cálice pintado na parede invadiu seus olhos. Ad infinitum estava escrito embaixo, e a hóstia suspensa sobre o cálice era como um sol branco. A escuridão era quase completa. Um cheiro ruim, fezes antigas e coisas apodrecidas, entrava pelas narinas. O contato com as paredes era áspero, mas sugeria maciezas, reentrâncias e pêlos inexistentes. O ar faltava. Estava enterrado vivo. Uma vestal, um faraó. Fora havia o rio, o céu e o ar, mas ele estava preso ali. E o medo. A cabeça latejava. Não conseguia atinar com a saída.
Foi então que duas meninas de vestidos amarelos surgiram de uma das celas. Seguiu atrás. E lá no fim do corredor havia uma meia-lua de luz
clara. Fora, suspirou aliviado, enxugando o suor com a manga da camisa. Atrás dele, a cadeia semidemolida parecia um enorme dinossauro sem pele, revelando as entranhas feitas de cárceres vazios. Tufos de grama saltavam entre os buracos do muro. Olhou para cima, para as vigias que em noites de chuva haviam abrigado os soldados, e a plataforma em forma de U, quase totalmente destruída. Algumas mulheres caminhavam entre as ruínas, recolhendo coisas. Crescia um calor no seu peito, a que ele não sabia dar nome, e no entanto crescia mais. Era aquela sensação de humildade que as coisas destruídas lhe davam, mas misturada a outras coisas. Desejo de voar e correr e cantar e compreender e perdoar. Afundar naquela água, naquele céu, desaparecer naquele ar. Seria o que chamavam de — revelação? Havia uma espécie de espírito presente ali, que entrava por dentro dele, deixando-o com os braços suspensos, boca seca e olhos úmidos.
Apertou o casaco nas mãos, começou a descer o monte de escombros onde estava. Caminhou até a praça outra vez. As pessoas já não eram as mesmas, os balanços vazios oscilavam não se sabia se empurrados pelo vento ou pela mão de alguma criança que já não estava mais ali. Pelos buracos do muro, via a cadeia. Os tijolos quebrados e o cimento, em montes esparsos. Na parte intacta do muro, leu a frase escrita em letras amarelas: Sou ladrão pela palavra, mais sou bom de coração, se a polícia me pegar, vou direto pra prisão. Embaixo, a assinatura: Cacalo. Mais adiante, cartazes anunciavam que Batman vinha aí. Viria? E Cacalo, teria ido direto para a prisão? Tentava apegar-se àquelas coisas externas para escapar de dentro de si — uma vaga vertigem, uma vaga náusea, vagas sensações, como se todo ele fosse impreciso, indefinido, frágil, remoto.
Tentou equilibrar-se sobre um dos trilhos do bonde. As pernas recusaram-se a obedecê-lo. As duas prostitutas estavam debruçadas na janela da casa de roupas usadas. Sorriram para ele, ele sorriu de volta para elas, achando-as quase bonitas sob aquele arco arredondado com vitrais por cima. Mais adiante um grupo de homens jogava bocha numa cancha de chão batido. Sem camisa, os peitos peludos, suados. Um deles tinha um violão, resmungava uma melodia sem palavras, feita só de murmúrios. Ao longe, os contornos dos edifícios voltaram a limitar o céu. Pensou em voltar até o rio,
mas já estava saciado. As pernas doídas, a boca seca. Nas mãos, o casaco parecia de chumbo.
Entrou num bar, sentou, pediu um guaraná. Debruçado no balcão, o homem demorava a atender, nas mãos um pano afastando moscas. Maurício encostou-se à coluna que havia atrás da mesa e bebeu. Então percebeu que a coluna era feita de inúmeros pedacinhos de vidro. Multifacetado, seu rosto refletia-se ora sem olhos, sem boca, sem cabelos — vários pedaços de rosto que piscavam, surpresos. Passou a mão pela coluna, os pedaços de vidro ferindo levemente a palma da mão. Além do barvazio, a rua cheia de sol. No mármore encardido da mesa havia vários nomes escritos, entrelaçados. Pensou em decifrá-los, mas teve preguiça: seriam somente letras unidas umas às outras, formando o nome de alguém que ele não conhecia e provavelmente não conheceria jamais. Jamais, repetiu, parecia trágico, misterioso. Desejou ter um lápis na mão, desenhar seu próprio nome junto com os outros, para que alguém, como ele lia agora, lesse um dia sem saber quem era. Pensou em pedir ao homem do balcão, mas ele bocejava, espantando moscas. Quis ficar ali muito tempo, as pernas estendidas, na boca o gosto açucarado do guaraná. E o contato frio do mármore na palma das mãos, para sempre.
Encostou novamente a cabeça na coluna de vidro. Por trás, mil faces partidas o observavam, como se não fossem ele. Vontade de ter alguém ali do lado, fazer confidências entre as mesas do bar. “Parece letra de tango argentino”, pensou, e repetiu: “Entre as mesas do bar.” Havia uma frase assim, dentro de um tango antigo que tia Violeta cantarolava, regando os morangos. Tentou lembrar, não conseguiu. Batucou na mesa. Samba, podia compor um samba numa mesa de bar, a mesa teria parceria. Ociosos, os pensamentos se multiplicavam como os rostos da coluna. O tempo parecia ter parado, abandonando-o petrificado a frente daquele homem que era como uma estatua, não fosse o movimento do pano afastando moscas. No almoço do dia anterior, uma mosca pousada sobre a mancha de vinho. Era assim que se sentia. Uma mosca com as patas presas no vinho que o pano da toalha ia sugando para dentro de si. “Mas é preciso reagir”, pensou. E quis levantar-se. Antes, lembrou de deixar uma lembrança sua, qualquer
coisa que marcasse a sua passagem. Deixou o casaco sobre a cadeira, ergueu-se. Estendeu o dinheiro para o homem, que devolveu lentamente o troco, nota por nota. Já na rua, ouviu o chamado:
— Ei, moço.
Voltou-se. O homem estendia o casaco:
— Tu esqueceu.
— Ah, obrigado.
Correu para apanhar o ônibus, entrou ofegando. Tinha a impressão de que o que lhe escorria dos poros era o caldo amarelo adocicado do refrigerante, não suor. Sentou num banco vazio, na janela, estendeu o dinheiro para o cobrador.
— É cem, meu. Aqui só tem cinquenta.
Encarou o homem que o chamava de meu, sem cerimônia. Desejou prende-lo, conversar sobre qualquer coisa.
— Ah, é mesmo. Desculpe.
Estendeu outra nota, e enquanto o homem remexia à procura de troco, perguntou: — Como é, muito trabalho?
— Que nada, meu. Hoje é domingo. Pouca gente. Dia de semana é que é brabo.
Havia um brilho de ouro dentro da boca. O boné empurrado para trás, grandes círculos de suor nas axilas, manchando a camiseta.
Maurício abriu a boca para continuar a conversa, mas o homem já se afastava em direção a outro passageiro. Espiou pelas janelas os edifícios que passavam, sem cor nem forma. Ir embora, um dia, para qualquer lugar. E não voltar nunca mais. Puxou o cordão da campainha e desceu.
Na porta do edifício, deteve-se. Vontade de voltar, voltar correndo até a praça, até o céu, até o rio. Anoitecia, O céu tinha tons de roxo, folhas de papel voavam pela rua. Entrou, subiu pelo elevador e lentamente empurrou a porta de casa. Da cozinha chegava um cheiro de café novo e a voz de tia Clotilde, em vigorosas marteladas. O apartamento ainda estava imerso na escuridão. Os objetos pareciam não ter contornos, massas amontoadas pelos
cantos. Desfolhado, jazia no meio da sala o jornal de domingo. Estendido no sofá, Edu continuava dormindo.

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