RUBRICA

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Fazia horas que ela rondava por ali. Horas não digo, mas uns bons quinze minutos, porque eu já tinha fumado um cigarro inteiro e lido todo um jornal. Todo não, só as manchetes. Mas já tinha folheado um jornal inteiro. Acho que fiquei de saco meio cheio de continuar fingindo que não estava vendo ela, e dei uma olhada. Ela foi se chegando. Eu tornei a baixar os olhos para o jornal. América-Latina-dominada-pelo-militarismo. Eu tinha um ar muito ocupado. Mas ela ficou ali bem pertinho e daí eu olhei bem pra ela, como quem diz tá certo, admito que você tá mesmo aqui — e daí? Ela remanchou um pouco, fez umas bocas mascando mais o chiclete, puxou uns fios do cabelo louro, e eu olhando duro pra ela. Agora você tem que dizer alguma coisa, eu pensei. E senti que ela entendeu perfeitamente, porque depois de algum tempo perguntou com muito cuidado:
— Sabia que o meu pai era artista?
Eu continuei olhando pra ela, sem dizer nada. Ela completou:
— Ele nasceu na Alemanha...
Eu acendi outro cigarro — o negrinho do carro de pipocas ficou todo assanhado e levantou o polegar direito pra mim. Eu também levantei o polegar direito pra ele, depois fiquei meio puto porque quando ele me pedia as vinte assim eu não conseguia fumar direito. Fumar atentamente, quero dizer. E o cimento do degrau tava me esfriando a bunda.
— Como é o teu nome? — perguntei, e fiquei ainda mais puto porque agora ela não ia mais largar do meu pé. Mas já tinha perguntado. Era muito tarde. Ela disse:
— Adriana.
Eu traguei bem forte e joguei a fumaça assim meio na cara dela, de pura sacanagem. Ela nem piscou:
— Adriana com a. Na minha aula tem uma guria que é Adriane com e.
Eu não pude me conter:
— Então o teu nome vem primeiro na chamada. Ela arregalou os olhos:
— Como é que tu sabe? Ácido-arsênico-caiu-no-mar-próximo-ao-Japão, eu li pela décima vez no jornal aberto. O negrinho tornou a levantar o dedo. Me dava um ódio. Cheguei a meio que me engasgar com a fumaça. Ela perguntou:
— Hein? Eu rosnei:
— Hein o quê? Ela recuou:
— Nada, ué.
Foi então que resolvi ser bem objetivo:
— Adriana, é o seguinte...
Ela esperou, meio suspensa. Mascou mais o chiclete. No canto da boca apareceu uma coisa rosada que eu não sabia se era língua ou chiclete gosmento de tanto mascar.
— Você quer parar de mascar tanto esse chiclete? Ela parou, mas ficou com a boca bem aberta. E não era muito agradável ver aquela massa rosada e viscosa no meio da saliva. Eu suspirei. Ainda-falta-redemocratizar-o-país, eu li. Achei melhor continuar sendo objetivo:
— Escuta, tu não quer ir ali naquela carrocinha de cachorro-quente e me trazer uma Coca-Cola?
Ela demorou um pouco, me olhando bem antes de perguntar, na maior inocência:
— O quê? Eu falei:
— Tá legal. Esquece. Torturado-até-a-morte-o-professor-de-sociologia, foi aí que eu me dei conta de que ela já tinha sentado no degrau bem embaixo do meu. Fiquei com vontade de me putear por ter permitido que a situação chegasse àquele ponto. Ela estava cheia de intimidades. Intimidade que eu tinha dado a ela. Eu, com estes olhos que a terra há de comer. Ia jogar o cigarro no chão e apagar com o calcanhar do tênis, mas me lembrei do negrinho na hora exata. Só que ele já tava do meu lado. Olha aqui, eu pensei dizer, me enche demais o saco que tu fique tirando a sustância do meu cigarro desse jeito. Mas não disse nada. Imposto-sobre-combustível-vai-atingir-outra-vez-o-consumidor, o vento virava as páginas do jornal. O vizinho de cima passou e eu tive que me arredar um pouco. Enquanto eu me dava conta de que a bunda já tava meio dormente, ele me olhava como se eu fosse um tarado total por estar ali de prosa com uma guriazinha. Ela disse:
— Eu também já fui artista.
Esperou um pouco. Confissão-não-foi-suficiente-para-esclarecer-homicídio, pisquei. Ela continuou:
— Sabe aquelas bicicletas de uma perna só?
— Perna não, roda. Quem tem perna é cavalo. Mordeu a unha do indicador:
— Pois é. Roda. Sabe?
— Sei — eu disse, mais para colaborar com ela. Ela se entusiasmou tanto que chegou a levantar um pouco no degrau sujo. Aí eu aproveitei e insisti:
— Tem mesmo certeza de que você não quer buscar uma Coca-Cola?
Ela fez que não ouviu.
— Eu andava nas costas do meu irmão.
— Que barato — eu disse.
Ela ficou entusiasmadíssima com o meu comentário:
— Eu fazia assim com as mãos, ó.
Fez uns bailados com as mãos no ar, depois ficou olhando pra mim e esperando o que eu ia dizer. Apunhalou-sete-vezes-a-mulher-ao-surpreendê-la-nua-com-a-vizinha.
— Era da minha tia.
— O quê? — eu resolvi perguntar, senão ela não ia acabar nunca com aquela história. Ela resmungou:
— O circo, ora. A minha mãe falou que eu não devia ficar de valde enquanto ela trabalhava.
Eu ia perguntar o que a mãe dela fazia, tinha que ter um jeito de apressar aquilo. Ela parece que percebeu, porque foi dizendo bem em cima do meu pensamento:
— Ela se amarrava no trapézio pelo cabelo e fazia também assim, ó, com as mãos. Foi ela quem me ensinou a fazer igual. Tem um cabelo triforte.
Eu ia acender outro cigarro, mas daí me lembrei do negrinho. Tinha umas cinco pessoas na carrocinha e ele tava triocupado. Se eu acendesse agora e ficasse fumando meio mocoseado ele não ia sacar nada. Só se visse a fumaça, mas já tava quase escuro. Demorei muito pensando nisso, e quando fui acender ele já tava desocupado de novo. Eu recém tinha tirado o maço do bolso e ele já tinha levantado o polegar direito. Epidemia-de-raiva-e- meningite-no-interior. Tornei a guardar o maço. Tava cercado de demônios. Já tinha acendido a luz no poste da esquina e eu continuava seco por uma coca-cola.
— Escuta aqui, Adriane — eu disse, carregando no e. Ela corrigiu, muito séria:
— AdrianA. Com a.
— Tá bem — eu falei. — Olha, se...
Mas ela parecia possuída. Ou possessa, não sei a diferença. Baixou a cabeça:
— Daí "eles" queimaram tudo e levaram meu pai.
— "Eles" quem, ora? E levaram pra onde? Ela furou a terra com a ponta do sapato:
— Não sei. Ninguém sabe.
— Mas o que ele fazia? — eu insisti.
— Não sei. Acho que nada. Só lia uns livros lá.
— Bem-feito — eu disse.
Ela fez uma enorme bola de chiclete. Mas não parecia prestar atenção, nem quando a bola explodiu e ficou toda grudada em volta da boca e na ponta do nariz.
— E os bichos? — eu perguntei. — Não tinha nem bicho nesse circo fajuto?
Me olhou com desprezo:
— Não era fajuto. Eu ri:
— Mas e os bichos?
— Claro que tinha, né. Era um baita circo.
Pensei que ela ia falar mais, mas parou de repente. Esfregou o chão com o bico do sapato. Um sapato branco, velho, com uma presilha rebentada em cima. Quadrilha-rouba-questões-e-vende-ao-Supletivo, eu li acho que pela última vez, porque já tava quase muito escuro. Ela disse:
— O elefante a gente deu pro jardim zoológico.
— Deu ou vendeu? — eu perguntei bem em cima. Ela não respondeu.
— Escuta — eu disse.
— A tia ficou com o ouriço.
— O quê? Ela esclareceu:
— Era um ouriço ensinado, o nome dele era Paulinho. Eu fiquei com os macacos, o Chico e a Chica. Mas a mãe deu eles porque eram muito bagaceiros e ela achava que podiam dar mau exempro.
— Exemplo — eu ia corrigindo. Mas foi aí que a mãe dela saiu de dentro da carrocinha de cachorro-quente. Acho que era a mãe dela, porque tinha cabelos muito fortes. Pelo menos de longe e meio no escuro parecia. Eu tava sentado no degrau e a carrocinha tava do outro lado da rua. E já tinha escurecido. A mãe dela botou uma mão na cintura, levantou a outra no ar e gritou Adriana, vem tomar banho. Ou vem jantar, Adriana. Eu não conseguia ouvir direito. Ela levantou. Eu olhei de novo pro jornal, mas já não conseguia ler mais nada. Tava escuro pra caralho. Ela disse:
— Então tiau.
Eu não respondi. Ela saiu correndo na direção da carrocinha. Eu dei um tapa num mosquito xaropento, essa hora eles começam a chegar, mortos de fome. Ou sede, sei lá. Olhei de novo pro negrinho. Ele tava meio encolhido de frio, mas triantenado nas minhas vinte. O degrau tinha gelado completamente a minha bunda. Acho que vou subir, me pelar todo, olhar o pôster da Sandra Bréa e bater uma boa punheta, pensei. Mas não consegui ficar de pau duro. Resolvi acender outro cigarro de qualquer jeito. Levei a mão no bolso pra apanhar o maço. Mas o negrinho não levantou o polegar direito. Acho que aquele papo tinha me brochado completamente. Merda, eu disse. Ou só pensei em dizer.

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