O afogado

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Para Augusto Rigo

“Sim, nada é mais difícil e delicado, até mesmo sa-grado, quanto o ser humano. Nada pode igualar o poder voraz desses misteriosos elementos que, sem grandeza ou finalidade, nascem entre desconhecidos para acorrentá-los pouco a pouco com elos terríveis”
(Witold Gombrowicz: Bakakai)

I

— Há um morto jogado na praia!
De repente ele interrompeu tudo que fazia para prestar atenção no grito. Despiu o avental enxugando as mãos úmidas de suor, deu dois passos sem direção no meio da sala pesada de mormaço — e só depois de um tempo relativamente longo é que se deu conta de que alguém gritara no meio da praça. Então abriu a janela e ficou olhando o burburinho lento que se armava, as pessoas maldespertas da sesta movimentando-se molemente em direção ao menino que fazia sinais desesperados sob a estátua do general. Palavras soltas chegavam a seus ouvidos, algumas janelas se abriam, os vidros faiscando bruscos para depois chocarem-se contra as paredes caiadas de branco, passos na escada, aqui e ali algum cão espantado, as moscas esvoaçando tontas — e pouco a pouco intensificava-se o movimento em torno do menino de pés descalços, abrigado nas sombras escassas da praça sem árvores. O chão de terra crestada.
Aconteceu alguma coisa, pensou entediado, como se aquilo se repetisse há muito tempo, e como se qualquer curiosidade ou acontecimento fossem antigos e conhecidos, embora inesperados. Como se não houvesse mais nada a surpreender — pensou lentamente que alguma coisa havia acontecido. No mesmo momento ouviu que batiam – há quanto tempo? – à porta do quarto, e uma voz gorda de mulher repetia:
– Doutor, aconteceu alguma coisa na praia.
Abriu a porta e desceu as escadas contando degraus, a mão amparada pelo corrimão de madeira descascada, sem a menor pressa. Porque na realidade — dizia-se, e estava tão acostumado a esse diálogo consigo mesmo que movia os lábios como se falasse, embora sem produzir nenhum som —, porque na realidade jamais acontecera alguma coisa naquele lugar. Alguma estrela cadente durante as noites comprimidas entre o cheiro vagamente apodrecido da maresia e o calor viscoso que vinha das montanhas — e nada mais que isso. As cadeiras dispostas em desordem sobre as calçadas, um sem-número de olhares de repente acompanhando o roteiro daquela chispa brilhante que cessava de existir e, ao mesmo tempo em que morria, permitia-lhes fazerem três pedidos, remotas superstições, velhos mitos: três desejos. Como se fosse possível desejar alguma coisa naquele lugar, suspirou antes de transpor a soleira da porta para ganhar a rua cheia de passos e gritos. Quase cambaleou com o sol pesando súbito no topo da cabeça, precisou apoiar o braço contra os tijolos de uma parede sem reboco e, abrindo lento os olhos, divisou por entre lágrimas ofuscadas o brilho da calça branca do menino. Aproximou-se impaciente, os braços afastando pessoas que se esquivavam respeitosas, chamando-o doutor e dizendo coisas sobre o que o menino dizia:
– Um morto... um morto na praia...
Frente a frente com o menino, tomou-o pelo ombro sentindo a pele queimada em contraste com seus dedos muito brancos — e de repente viu no menino todo um desesperançado crescimento no meio daquelas duas dúzias de casas. Então, com súbita delicadeza, perguntou:
– O que foi que você viu?
O menino encarou-o com olhos verdes ainda capazes de algum espanto:
– Um morto.., lá na praia... jogado na areia...
– Me leve até lá — pediu. E tomou da mão do menino como se fosse capaz de salvá-lo daquelas duas dúzias de casas, algumas caiadas de branco — as mais ricas —, a maioria simplesmente sem reboco, o barro aparecendo endurecido entre os tijolos escuros. As outras pessoas acompanharam-no em silêncio, para vencerem sem pressa a extremidade da praça, as últimas casas, o caminho circundado de pedras que conduzia ao mar, às primeiras dunas e, logo após, a uma baixada onde o menino parou, apontando qualquer coisa na faixa de areia molhada:
– Lá.
Todos os olhares convergiram para a mesma direção. Sem conseguir evitar, novamente o médico pensou nas estrelas cadentes e nas prováveis cismas daquelas cabeças queimadas, quase uniformes em seus olhos esverdeados de sol, suas roupas esfarrapadas, seus gestos precisos e poucos, embora marcados pela lentidão do cansaço — o cansaço dos que esperavam por um acontecimento indefinido, capaz de fazê-los movimentarem-se subitamente com mais vontade, talvez com medo. Precisavam do temor como quem precisa de um sentido. Uma voz rouca cortou o pensamento:
– Como é que você sabe que ele está morto?
– Cheguei perto.
– Muito perto?
– Não. Fiquei com medo. Só sei que não se mexe. Fiquei muito tempo olhando e ele não se mexeu nem uma vez.
Alguns pescadores começaram a descer a encosta, os pés afundados na areia quente, dois ou três meninos os seguiram — mas um gesto do médico os deteve:
– Esperem — disse, e quase num sussurro sinistro, para amedrontá-los: – Pode ser a peste.
A peste. Os mais velhos encolheram-se atemorizados e vivos, lembrando aquele tempo de portas fechadas com trancas, todo dia alguns cadáveres alimentando a terra e ampliando a pequena extensão do cemitério sobre a colina. Rodearam-no, esperando uma decisão. Sem dizer nada, ele e o menino começaram a caminhar em direção ao corpo, enquanto os outros entreolhavam-se indecisos entre segui-los ou permanecer no alto das dunas. Avançou trôpego pela areia, desdobrada à sua frente a sombra de um homem alto e magro, os cabelos esvoaçando ao vento. Mordeu os lábios salgados. A água verde do mar. Algumas gaivotas em círculos estonteados sobre a água verde do mar. Um mergulho súbito: a água partia-se em borbulhas cintilantes, gotas de vidro e luz, soltas no ar.
Aos poucos, os contornos foram ficando mais nítidos: qualquer coisa escura como cabelos destacados sobre a areia, depois a extensão de um tronco de onde saíam dois braços abertos em cruz, duas pernas unidas e molhadas pelo movimento repetido das ondas. Julgou enxergar algumas algas envolvendo o corpo, mas depois de alguns passos percebeu não serem mais que placas de areia, coladas à carne nua e branca. A vastidão despida de uma carne branca ao sol pesado das três horas da tarde. Antes de curvar-se para tocá-lo, voltou-se e viu os homens formando uma massa imóvel no alto das dunas. Apenas o menino olhava-o com olhos enormemente verdes, subitamente sérios, como se esperasse. Esperas uma solução para esses teus olhos que não nasceram assim verdes e que dia a dia se farão mais claros até que não consigas mais olhar o mar sem pensares que de certa forma essa cor te foi dada por ele e até não saberes mais distinguir outra coisa que não seja verde e até que essa claridade deixe um dia de te cegar para que mergulhes no escuro irremediável da morte? Abanou a cabeça, afastando uma mosca, e curvou-se. Estendeu a mão para tocar muito de leve no corpo, mas antes de completar o gesto percebeu um ruído feito um sopro, uma respiração. O menino esperava. Os homens esperavam. O corpo esperava, de bruços. Rapidamente voltou-o sobre si mesmo e, sem fixar o rosto, colou o ouvido no peito do homem.
– Está vivo — disse, e podia sentir contra a aspereza da barba não-feita as batidas tênues dentro do peito do outro.
O menino começou a fazer sinais agitados para os pescadores, que desceram em bandos sôfregos pelas encostas das dunas. Então o médico ergueu os olhos e viuo rosto do afogado. E o rosto de homem não era ainda um rosto de homem: uma adolescência indefinida, permanente e talvez cruel guardada nas sobrancelhas espessas, escuras, nos maxilares fortes, nariz curto, reto, a boca entreaberta com lábios partidos, ressecados pelo sal, o queixo levemente vincado, os cabelos crespos pesados de areia. A testa queimava. Subitamenteo médico apertou-o com força, e enquanto pressentimentos sombrios se desenrolavam no espaço que separava seu peito do peito do afogado, manteve-o junto de si, como a protegê-lo dos homens que continuavam a correr pela praia, aproximando- se. Como a protegê-lo do sol, do mar, do menino que dava voltas em torno deles, exigindo uma participação naquilo que descobrira. Tirou a camisa para cobrir o rosto dele, depois ergueu-o suavemente pelos ombros e ficou esperando que alguém o ajudasse.

II

Sentou com cuidado ao lado da cama, para não despertá-lo. Era quase dezembro. Aproximou o lampião e examinou mais detido o rosto agora limpo, mas ainda marcado pela febre. Quem te trouxe dessa quase morte para um lugar que é a própria antecipação da morte tu que pareces para sempre imobilizado nessa postura que não é tua porque não te imagino assim abandonado entre lençóis mas em constante movimento tu que fazes dessa ausência de movimentos de agora a tua enorme e falsa fragilidade? Estalou os dedos, inquieto. Sentia necessidade de algum terror, mas não se apressava porque sabia que ele viria, breve e denso. Suspendeu os óculos deixando-os em repouso sobre a cabeça, depois pousou-os devagar na mesa. Andou até a janela e ficou a ver os homens e as mulheres largados nas cadeiras, as brasas dos cigarros, pontos vivos na escuridão, alguns curiosos postados sob a janela da pensão, sem ousarem fazer perguntas.
O céu muito escuro: naquela noite, não haveria estrelas cadentes. Passou as mãos pelos braços. Não conseguia aterrorizar-se, e há muito tempo não sentia frio. Fizera seu aprendizado de solidão enquanto as coisas sentidas a cada dia tornavam-se mais e mais semelhantes, para finalmente permanecerem numa massa informe a escorrer monótona por dentro dele, alterando-se apenas em insignificantes cintilações cotidianas. Apenas reagia. Tudo ali estaria para sempre excessivamente silencioso para que se pudesse soltar um grito ou chorar sozinho no escuro, como nos primeiros tempos. E ainda que gritasse: o silêncio seria maior e mais desesperado que qualquer grito, porque todos gritavam e agiam da mesma forma, calada e idêntica. Mesmo o respeito com que o cercavam não chegava a ser exatamente o reconhecimento de uma superioridade: não passava de um frio constatar do ser do outro. Encarar sem emoção a perdição alheia e a própria perdição, porque não havia distinções nem individualidades: eram todos o mesmo grande e triste monstro humano, uma única cabeça, tronco, membros. Numa noite de quase dezembro, a alma deserta. A estátua do general no meio da praça e um desconhecido no quarto. Voltou- se e encontrou dois olhos fixos nas suas mãos. Foi-se aproximando enquanto falava:
– Há dois dias que estavas desacordado.
Esperou algum tempo. Os dois olhos percorriam o quarto, inventariando a pobreza dos móveis poucos e arrebentados, as paredes gretadas, a bacia de louça num canto. As mãos se moviam: dez dedos torcidos sobre o lençol de tecido áspero.
– Quer alguma coisa?
Os lábios ressecados se abriram com dificuldade — a percepção dessa dificuldade fez com que os dedos se crispassem lentamente, aos poucos criando tramas estranhas no tecido grosso do lençol. A cabeça oscilou em direção à mesa, os olhos piscaram algumas vezes, e finalmente qualquer coisa como uma voz entremeada de sal e algas murmurou:
– Água.
Estendeu-lhe o copo e, sem nenhum pensamento na cabeça um pouco dolorida, ficou observando a avidez do outro. Tornou a servi-lo, e mais uma vez, e ainda outra, até que o desconhecido levasse dois dedos à boca, como a pedir silêncio, mas evidenciando uma saciedade que, por sua nitidez, quase assustou o médico. Ele então recuou para trás do lampião, onde sabia-se protegido pela sombra. Isento, e praticamente ausente, sondou-o mais uma vez. Ausente o outro, também — havia uma insólita ausência naquele rosto.
Devia ter uns vinte anos, decidiu. E com o cuidado extremo de quem sabe que começa a penetrar no conhecimento de alguma região muito frágil, permitiu que seu próprio olhar fosse descendo do rosto para o pescoço e o peito coberto de pêlos claros, ensolarados, até onde o lençol permitia a visão. E de repente um impulso que não chegou a compreender exigiu que falasse, como se falando conseguisse evitar uma reação indesejada, talvez dura, do outro. Mas teve uma consciência tão grande da própria necessidade de apenas preencher um momento perigoso que, mal abriu a boca, sentiu-se extremamente falso. Mesmo assim, perguntou com uma espécie de carinho seco:
– Sente-se bem?
O outro acenou afirmativamente. A sombra na parede acenou afirmativamente. O médico tornou a perguntar:
– Quer alguma coisa?
O outro não respondeu. Havia uma dissimulada ferocidade no jeito como cerrava os maxilares, uma contida agressividade nos dedos fortes esmagando o lençol, uma sede além daquela água que bebera: certa vibração que exigia, intimidava e penalizava, abandonada. Entrelaçou os dedos. Queria paz. E deixou a cabeça apoiar-se no encosto da cadeira. Muito tempo depois acordou com batidas na porta. Ainda tonto, abriu-a e deparou com a mulher gorda espiando para dentro:
— Ele acordou faz pouco — explicou, perguntando-se há quanto tempo teria acontecido aquilo que chamava, cuidadoso, de o despertar. – Bebeu muita água, depois dormiu novamente. Está fora de perigo. Não tem nenhum ferimento. A febre também baixou. Talvez amanhã já esteja em condições de levantar — objetivo, acumulava informações no desejo não revelado de ficar a sós com o que incompreendia.
– Mas o senhor não perguntou quem era, de onde vinha, como veio dar na praia? Deus me livre, pode ser algum criminoso, a gente nunca sabe.
– Não, não perguntei nada — disse secamente. E acrescentou: – Ele não está em condições de falar.
A mulher sacudiu os ombros:
– Está bem, mas não me responsabilizo por nada. O senhor é que sabe — deu alguns passos em direção à escada, subitamente voltou-se e encarou-o com ar de dúvida.
– Sabe o que dizem na vila? Que o senhor já conhecia ele, quero dizer, que o senhor cuidou bem demais dele para um desconhecido. Que o senhor não deixou ninguém ver o rosto dele.
Não respondeu. Fez um rápido sinal com a cabeça, como se a despedisse ou concordasse, e fechou a porta. Encostou a cabeça na madeira, e por um momento temeu que o descobrissem. Mas não tenho nada a esconder, espantou-se. Partia-se todo em pedaços incompreensíveis: o terror voltava. A espessa camada: quebrando-se, cascas finas. Acendeu um cigarro e tornou a sentar-se na beira da cama do outro.

III

As noites passadas na cadeira doíam nas costas. Esticou o corpo, o sol já alto da manhã estendendo um feixe de luz por sobre a mesa e o piso riscado. E imediatamente envolveu-se em ocupações matinais, a bacia de louça num dos cantos, a água fresca nas têmporas devolvendo, lentamente, uma espécie de lucidez. Do canto, olhou para a cama: pela janela aberta, o feixe de luz do sol clareava ainda mais os lençóis. O corpo adormecido, pesado, os cabelos crespos espalhados sobre o travesseiro. A poeira dourada suspensa no ar. Evitou aproximar-se. Caminhou até a porta e, antes de dar duas voltas na chave, virou-se ainda mais uma vez para dentro. E só depois de pensar com desgosto em outro dia repleto de queixas e feridas, o cheiro de álcool, o nojo contido, só depois de lembrar da cara endurecida das mulheres, a pele gretada dos homens — só depois é que ele fechou a porta e desceu as escadas. Comeu o pão em silêncio enquanto a mulher observava-o da porta, o ar vagamente agressivo. Percebia nela o curso tenso das dúvidas, em contraponto com uma curiosidade quase obscena, embora calada. Não havia necessidade de palavras para expressar o que brilhava com suficiente intensidade nos braços cruzados em expectativa. Falou apenas quando ele começou a preparar café, pão e algumas bananas numa bandeja — simulava uma doçura de mulher gorda, pronta a assumir seu ofício de servir:
– O senhor não precisa se preocupar. Pode deixar que eu mesma levo o café dele. Qualquer jeito, tenho mesmo que arrumar as camas e varrer os quartos.
– Não é preciso — disse seco, e mal havia falado arrependeu-se.
Ele pressentia: se não fizesse nenhuma concessão à mulher, se continuasse a negar-lhe qualquer possibilidade de contato com o desconhecido, a cada dia ela se faria mais e mais ávida, tornando-se talvez perigosa. Já se referia ao outro em termos velados, chamando-o de ele, em voz baixa, como nomearia qualquer coisa que não lhe fosse permitido conhecer. Ele era aquele homem lá em cima — toda a distância de outras terras, paisagens feitas não só de mar e montanhas, mas de outros elementos que ela não conseguia sequer supor, a não ser por velhas histórias, tão esgarçadas quanto inverossímeis. Ele era o inverossímil. Ele era a possibilidade negada de ampliar a visão.
O médico pesou o rosto astuto da mulher, os cabelos repartidos ao meio e presos atrás, desnudando uma testa estreita sobre dois olhos miúdos, vivos e verdes: até que ponto ela seria capaz de avançar? Hesitou por momentos em conceder — e portanto quebrar o início de um clima que anunciava insuportável — e negar, e portanto jogar-se numa rede a se fazer cada vez mais sutil: as tramas cresceriam entrelaçadas como folhagens, até que ele não pudesse mais controlá-las? A sala calma e contida. Decidiu:
— Eu mesmo levo.
Subiu as escadas, a bandeja na mão. Depois depositou-a leve na mesinha de pernas tortas, ao lado da cama. Curvou-se para tocar a testa do afogado: era fresca e lisa, sobre a fisionomia repousada. Evitou qualquer pensamento. Tomou da pequena maleta e saiu para a rua.
Fora: o sol começando a pesar, acentuado ainda mais por um vento morno que vinha do norte, as pessoas cumprimentando dissimuladas, sem perguntas, mínimas quebras de suspeita nos gestos. Visitou algumas casas, os doentes escassos, nunca houvera muito a fazer por ali, tratava-os com uma seca cordialidade que, para todos, era a marca de um homem bom, embora incógnito. Não se permitia excentricidades, e por excentricidades abrangia uma série infindável de atitudes, desde dividir a cachaça do entardecer no bar dos pescadores, mostrar a si mesmo ou evidenciar carências. Alguns, talvez, o julgassem orgulhoso. Era. Carregava com alguma dificuldade uma aceitação tão grande e silenciosa, tão absurda no seu quase mutismo e absoluta desnecessidade de comunicá-la ou demonstrá-la, sobretudo tão óbvia, lhe parecia, que parecia também que nenhuma daquelas pessoas seria capaz de compreendê-lo, da mesma forma como não compreenderiam a sua própria e pesada, intransferível, indivisível carga. Passava com sua roupa branca, todos os dias — e não era nem mais nem menos assustador que qualquer outro dos homens, ou qualquer das casas. Ninguém se indagaria em profundidade, e vistos superficialmente eram todos iguais. Apenas aceitavam — ele, como todos —, e aceitar era uma forma de compreender.
Foi no meio da praça que encontrou com o padre. Cumprimentou-o, disposto a passar adiante, quando percebeu um movimento diverso do costumeiro a se fazer num gesto nascendo da batina negra. Ainda assim tentou continuar, mas a voz obrigou-o a deter os passos e olhar fixamente para a calva lustrosa ao sol de quase meio-dia.
– Precisava falar com o senhor.
– Pois não.
– Trata-se... bem, trata-se do homem encontrado na praia.
– Sim?
– Bem, o senhor sabe, o povo está curioso, quer saber quem é o homem, se houve algum naufrágio. Os paroquianos estão todos um pouco... como direi?... bem, o senhor sabe... é perfeitamente natural essa curiosidade... Afinal, a vila é tão pequena, todos sabem ao mesmo tempo de tudo que acontece, ontem mesmo todos ficaram sabendo que o desconhecido está fora de perigo. Eu mesmo...
Atalhou-o, ríspido. Detestava aquela preparação, as justificativas dissimuladas e rodeios tontos para chegar a um único ponto.
– O que é que o senhor quer saber?
O padre pareceu notar as farpas atrás das palavras. Imediatamente empertigou-se, passou o lenço sobre a calva encharcada de suor e respondeu no mesmo tom:
– Quero saber quem é esse homem, de onde veio, o que quer aqui.
– Ele não quer nada aqui. Ele nem sequer sabe que está aqui.
– O que quer dizer com isso?
– Não quero dizer nada. Estou apenas cuidando de um doente.
– Mas pode ser uma criatura de maus costumes, O senhor sabe que a nossa comunidade, graças a Deus e aos meus modestos mas desvelados esforços, a nossa comunidade prima pela decência, pelos bons costumes e a moral elevada.
– Não acredito que um desconhecido seja capaz de abalar a sua decência, os seus bons costumes e a sua moral elevada.
– O senhor não acreditar é uma coisa. Do que ele é capaz ninguém sabe. Falo em nome de Deus — apontou para a estátua do general — e em nome do nosso mais ilustre antepassado. Esse homem pode ser um criminoso.
– Não acredito que seja.
– Mas o senhor tem que me prometer que falará com ele, tão logo seja possível. E que me comunicará de qualquer perigo.
– Não prometo nada.
– Mas ele pode ser um criminoso! Devo zelar pela segurança dos meus paroquianos! O senhor está assumindo uma responsabilidade muito grande.
Com um aceno breve da cabeça, o médico saiu caminhando sob o sol escaldante. O padre ofegava, o rosto avermelhado pela cólera. Nas casas em volta da praça, o médico observou, portas e janelas se abriam para mostrar rostos curiosos. Pequenos grupos se formavam pelas esquinas. Uma tensão ainda mais nítida que o calor sufocante ampliava-se por toda a vila, como uma corrente elétrica. Ainda ouvia a frase do padre: – “Mas ele pode ser um criminoso!” Um criminoso. Criminoso.
Inúmeras suspeitas atravessaram-lhe súbitas a mente: ele mesmo não chegava a compreender por que agia daquela maneira. Sabia apenas, cegamente, que precisava protegê-lo. Ao atravessar a rua mediu bem o passo para que não percebessem alguma alteração. Era preciso ser natural. Surpreendia-se precisando construir uma naturalidade, quando nada seria mais natural do que essa naturalidade — e no entanto precisava aplicadamente construí-la em cada passo, em cada movimento de braço, cada respiração, cada olhar. Uma agulha fina penetrou na têmpora esquerda, lentamente varando carne, músculos, ossos, para comprimir um recôndito ponto. Que doía. Depois de muito tempo. Um ponto doía, inacessível. Quando entrou no quarto, o desconhecido esperava. Estava em pé, ao lado da bacia de louça, a mão esquerda levantada na altura do rosto.

IV

— Alfa é meu nome — disse.
E ele perguntou:
— Esse é teu nome de guerra?
E ele respondeu:
— Não. Esse é meu nome de paz.




V


— mas o que chamas de paz se pressinto em ti essa coisa mansa que se faz nos outros e em cada momento que te olho inúmeras coisas escuras escorrem dentro de mim pois se a paz não é uma coisa escura pois senão não continuarei não te farei nenhuma pergunta embora precisasse não para te definir ou para te compreender não preciso saber de onde vens assim como para me definires ou me compreenderes não precisas de nenhum dado concreto mas eu não te defino nem te compreendo apenas sei que chegaste e que esta tua chegada modificará em mim todas as coisas que se tornaram suaves todas as cordialidades ou amenida des que construí nesse tempo de absoluta sede ansiava por ti como quem anseia pela salvação ou pela perdição porque qualquer coisa poderia me salvar desta imobilidade que me devasta por dentro te direi apenas para sobreviver mas já não quero sobreviver já não quero apenas ir adiante é preciso que qualquer coisa abata esta letargia porque já não admiro precariedades por que não sei o que digo nem o que sinto mas persistirei no que pressinto ainda que tudo isso seja um lento processo de morte um enveredar em direção ao mais terrível vejo em ti o meu roteiro de agonia além disso nada sei mas não fujo foram muito poucas as coisas que vivi percebo que não cheguei a existir exatamente mas não sou forte apenas construí de minhas fraquezas essa coisa que talvez chamasses força há muito tempo eu permanecia esquecido de mim mesmo foi preciso que chegasses para eu perceber que somente destruindo se pode construir agora eu quero a destruição que me propões mas não propões nada deixas que eu enverede sozinho é assim sei que não me deixarás sozinho sei que te recusas a te definires em palavras não por que eu me atemorizasse mas por que as palavras não te dizem te mos muito pouco tempo nesse pouco tempo é preciso que todos percebam em ti o que nunca viram e somente no último momento possam ver a tua face essa face terrível que todos suspeitam terrível mas eu reivindico a posse desse terrível porque me sei capaz de suportá-lo não falta muito tempo agradeço por me teres dado a consciência da minha inutilidade mas eu de nada sei nada conheço do que falo mesmo assim estou pronto embora sem compreender inteiramente sim semearemos a fome e a discórdia semearemos o que eles não seriam capazes de viver se não chegasses não me esquivarei vejo a tua mão estendida em direção a mim e estendo a minha própria mão e minha mão e tua mão se tocam e a minha espera e a tua conduz sim preparo-me para o grande mergulho no desconhecido:




— antes que tentes aviso já te disse tudo não sou nada além de meu nome meu nome é minha essência mais profunda assim como a tua talvez seja a que vivas no momento talvez nada sejas além destas paredes descascadas destes móveis poucos esta bacia de louça naquele canto mas não te julgo pelo que vejo em ti externamente não julgo a ninguém nem a mim mesmo vim duma coisa que ainda não conheces vim duma coisa enorme da es curidão e de luz mais absolutas que possas imaginar a um só tempo vim duma coisa sem medo mas não sabes que trago em mim o princípio e o fim de todas as coisas sabes por ventura que te farei meu cúmplice e despertarei teu ódio esse ódio calado que consome as vísceras por que de todos és o único que sabes da absoluta inutilida de de todas as coisas e sa bes dessa vontade incon tida de ser maior que todas essas coisas sabes dessa vontade amarga no peito de cada um e esquecida duran te a trivialidade sabes de tudo isso e por saberes é que te escolhi te digo que o acaso não existe e que aconteci no momento exato em que não suportavas mais embora não soubesses da tua exaustão é preciso que as coisas se intercalem exatamente como está sen do feito esses momentos de luz aparentemente banais é preciso essa linearidade para que subterraneamente escorra um fluxo intenso e te digo que subitamente os homens enlouquecerão e perpetrarão o que ja mais seriam capazes de perpetrar te digo dessa loucura tão próxima te digo da proximidade de tua própria destruição e sei que não temes porque eu não te escolheria se não soubesse embora saiba que temerás no momento exato e que mais tarde julgarás que foste fraco mas eu te digo ainda que todas as coisas estão sendo feitas e que não podes fugir delas porque a partir do momento em que alguém é escolhido faz-se necessário assumir essa escolha os temores não serão infundados nem mesmo esses obscuros pressentimen tos que te assaltam é preciso que alguém faça penditar a ordem das coisas por que essa ordem permane cena inabalável se não houvesse a minha chegada pois quem provou do ódio desejará provar coisas cada vez mais intensas e o mais intenso que o ódio só pode ser essa região sombria à qual os homens deram um nome mas esses de nada sabem mesmo tu de nada sabes eu vim dessa região para semear a fome e a discórdia e não preciso te convencer de nada quero apenas que te deixes conduzir toma a minha mão e vê como ela é leve toma da minha mão e pensa nos lugares para onde te levarei nesta noite de quase dezembro e agora prepara-te para o grande mergulho no desconhecido:


VI

Por volta das duas da tarde uma aglomeração se fez no meio da praça. Era o sétimo dia. Rumores diluídos de vozes humanas misturadas ao barulho do vento norte que varria a vila há vários dias, levando para longe o cheiro dos animais apodrecidos, latas velhas chocavam-se contra paredes, árvores libertavam folhas que ficavam soltas no ar, frutos caíam pesados no chão, janelas batiam com força espatifando vidros. A princípio não chegou a compreender o que se passava: parecia impossível que alguém ou alguma coisa voluntariamente quebrasse o silêncio estabelecido tácito e imutável, perdurando sempre do meio-dia às quatro da tarde. Com esforço, afastou da testa os cabelos empastados de suor e aproximou-se da janela.
Então distinguiu os homens amontoados sob a estátua do general, em torno do padre, cuja batina esvoaçava estranhamente leve com o vento. Tão logo sua presença foi notada, um brusco silêncio se armou: voltaram-se todos para observá-lo, os pescadores com os chapéus nas mãos, as mulheres com os filhos dependurados na cintura, mesmo os cães cessaram os movimentos e, atentos ao que se preparava, olhavam-no imóveis. Sentiu medo. Aquilo que se desenrolava há tempos, tão de leve que não conseguira ainda nomeá-lo, de repente se concretizou, estampado em sua fisionomia. Não o recusou: descobria no mesmo instante que o medo era matéria de sobrevivência, como o eram todas as coisas, mesmo as esperas frustradas e as inúmeras sedes e os espantos e pequenas descobertas que em si nada significam mas que juntas formavam lentamente camadas superpostas e densas demais, sim, as densidades insuspeitadas e as estrelas cadentes e a queda de estrelas e a cadência dos passos todas as manhãs a aspirar a maresia e atravessar a praça e muitas coisas e todas as coisas — e finalmente o estar ali parado na janela olhando fixamente a massa que exigia, não permitindo que alguém se individualizasse ou protegesse um mistério qualquer — pois que era fundamental para a sobrevivência de todos que as vidas fossem identicamente claras — tão claras que o sol pudesse vará-las como varava as janelas constantemente abertas — finalmente comprimir os dedos contra o parapeito empoeirado da janela, enfrentando o que ele próprio construíra, as costas molhadas de suor, os olhos ofuscados pela luz intensa, os pés descalços sobre a madeira — cara a cara com o seu invento.
Mas não é verdade que nunca tivesses suspeitado desta tarde e desta fome: não é verdade que por um momento sequer tivesses tentado fugir à tua trágica determinação: não é verdade que alguma vez tivesses sequer pensado numa possibilidade de salvação: sabias desde o começo da consistência ácida do que tecias, e no entanto persistias nela, como quem penetra num beco sem saída, caminhando pela estreita dimensão que sabias desde sempre intransponível: sim, tu sabias deste momento a construir-se desde o começo, e não fizeste nenhuma tentativa de evitá-lo: agora é necessário que enfrentes: embora talvez não soubesses do depois deste momento que se faz agora e portanto não possas estar preparado para o próximo momento: mas deste sabes: tudo se encaminhou para ele, e já não podes fazer mais nada, a não ser enfrentá-lo: tens ainda no peito a chama que te consumia nessas noites paradas de verão: tens ainda o que convencionaste chamar força: tens ainda todas as partículas de tua determinação: tens ainda a tua integridade, embora saibas que ela pode te destruir: pois então toma dessa fibra que a si mesma se construiu em solidão sob teu olhar espantado e impassível: toma dessa fibra feita de algo tão denso quanto o ódio: tomado teu ódio: e agora enfrenta.
Suspirou exausto. Conservou as duas mãos crispadas no parapeito da janela, enquanto o padre se aproximava: sentiu o contato da outra mão em seu ombro, como a ampará-lo. E disse:
– Volta para dentro. Espera. Eles não podem te ver.
Fora do círculo formado pelos pescadores, destacava-se o padre, avançando. Ouviu:
– Queremos que o senhor desça.
E já não era um pedido, já não eram mais aquelas tímidas aproximações cheias de justificativas, não era sequer um convite, nem mesmo uma ordem — mas um fato irreversível.
– Não tenho nada a dizer.
– Não queremos que o senhor diga alguma coisa. Queremos ver o desconhecido. O senhor não nos pode explicar. Queremos que ele nos diga por que depois de sua chegada os pescadores não trouxeram mais peixes, por que o leite coalhou todas as manhãs, por que morreram as crianças nos ventres das mulheres prenhes, por que todas as donzelas perderam a pureza, por que sopra esse vento desde a sua chegada, por que não caíram mais estrelas, por que todas as plantações secaram e os animais morrem de sede pelas ruas, por que esta sede. Esse homem traz a destruição e o demônio dentro de si. O senhor protege esse homem. O senhor é cúmplice da destruição. Um hálito de morte percorre a vila. E o senhor é o culpado disso. Por que não o deixou morrer? Por que não nos deixa ver a face dele? Por que ele não sai às ruas se já está recuperado? Por que o senhor deixou de visitar seus doentes? Por que o senhor está encaminhando estes homens pacíficos para a violência? Queremos saber dos estranhos poderes desse desconhecido.
– Não sei do que o senhor fala. Todas as coisas são as mesmas há muito tempo.
Um murmúrio cresceu na praça. O padre tornou a falar:
– Não queremos usar a força. É melhor que o senhor desça.
Voltou-se para dentro, escrutou-o detidamente, mas sem conseguir perceber nenhum sinal.
– Não tenha medo — disse. – Eu te protegerei.
– Não tenho medo. E não preciso de tua proteção.
– O que há em ti que não compreendo?
– O que há em mim e não compreendes é o mesmo que há em ti, e tampouco compreendes.
Sorriu. Os dentes muito claros. Os olhos azuis. Punhalada de luz.
– Eles são capazes de tudo.
– Eu sei. Também eu sou capaz de tudo.
– Preciso descer. Não quero que morras.
– Também eu não quero que morras. Mas morreremos.
O médico encaminhou-se para a porta. Os ombros curvos. Hesitava entre sair e permanecer no quarto. Então voltou-se e disse:
– Foge pelos fundos enquanto falo com eles — e acrescentou apressadamente, como se precisasse dar forma a uma idéia inesperada antes que ela se desfizesse: – Sim, foge pelos fundos e me espera na praia, no mesmo lugar onde te encontrei, mais tarde irei encontrar contigo, então...
– Então fugiremos?
– Sim, sim. Fugiremos.
– Mas não vês que é impossível?
– Não, não é impossível. Fugiremos para qualquer lugar, não importa onde, não importa qual.
– Havias falado que daqui ninguém foge.
– Não tem importância, não sei mais. Agora vai. Preciso descer.
Desceram juntos a escada, no final separaram-se. O médico abriu a porta e encarou o padre.
– Podem subir — disse. – Ele foi embora. Não há ninguém lá em cima.
Os pescadores entreolharam-se surpresos, subitamente desarmados. Pareceram não saber para onde ir ou o que fazer, até que o padre fez um sinal com a cabeça, encaminhando-se para a porta aberta. O médico recuou, esperando que todos entrassem. De baixo, viu-os subirem rapidamente as escadas, os pés empoeirados marcando os degraus. Depois ouviu o barulho da porta aberta com violência, exclamações de espanto, rumor de móveis despedaçados, gritos. De repente um silêncio e a voz da mulher sobrepujando ruídos, nítida:
– Não é verdade. Ele enganou vocês. O homem está na praia.
Permaneceu estático por um momento, o vento batendo nos cabelos, os olhos voltados para cima. Depois saiu correndo em direção ao mar.

VII

Do alto das dunas, viu-o no mesmo lugar onde o encontrara pela primeira vez. Os cabelos esvoaçavam ao vento: parecia um menino assim, de longe, um menino qualquer construindo castelos na areia. Correu para ele, os braços abertos, seu corpo oscilava precário, para depois enristar-se feito uma seta, as agulhas finas penetrando as têmporas — seu corpo inteiro: uma agulha fina em direção à pequena mancha. Os pés afundavam e queimavam na areia.
– Eles nos descobriram — gritou.
O desconhecido abanou a cabeça. E novamente o médico pensou em que estranhas marcas, sem serem propriamente marcas, pois não deixavam traços, havia naquele rosto queimado e ainda em preparo, na introdução de alguma coisa que não viria a ser.
– É muito tarde.
– Não. Ainda é tempo. Podemos fugir.
Tentou tomar da mão dele, mas o outro se esquivou num movimento perfeitamente definido, embora suave. Ficaram a encarar-se durante um tempo que o médico julgou longo demais, incompreensível demais — como tudo. Não conseguiu compreender exatamente o que se passava: sabia apenas que precisavam fugir. Embora desde o começo tudo estivesse previsto, não conseguira perceber essa obstinada negação que se faria. Insistiu ainda. E outra vez. Até que ouviu vozes sobre as dunas. Não precisou voltar-se para saber que eram os pescadores: o padre, a mulher e o menino à frente, conduzindo a massa que descia rápida, armada de paus e pedras. Gritavam.
– Não quero ir sozinho — disse. – Vem comigo.
– Mas não irás sozinho, embora eu não vá contigo.
Sem saber exatamente o que fazia, começou a correr pela praia, sem saber também para onde. O sol cegava-o. Pequenos vermes se movimentavam na areia úmida, esmagada sob seus pés. Correu durante muito tempo, depois deixou-se cair exausto sobre os próprios joelhos. Então voltou-se e viu-o, no meio da multidão enfurecida, os braços baixavam e abatiam-se sobre sua cabeça repetidas vezes. Podia ver o sangue escorrendo, misturando seu vermelho com a brancura da areia. Mas não havia gritos. Tudo estava muito quieto.
Esperou que todos se afastassem e voltou. Escurecia aos poucos. Quando alcançou o corpo, uma chuva fina começou a cair. O vento tinha cessado. A chuva pouco a pouco adensada: tomou entre as mãos a cabeça destroçada e ficou olhando durante muito tempo para dois olhos azuis escancarados. O sangue ainda escorria. Quente. Quando a noite baixou, arrumou cuidadoso o cadáver lavou as manchas de sangue do rosto, depois foi entrando lentamente no mar. Antes de mergulhar olhou para cima e, embora chovesse, inúmeras estrelas cadentes riscavam o céu de ponta a ponta.

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